Diante da crescente intensificação da crise climática, o conceito de justiça climática emerge como uma lente, revelando as desigualdades que permeiam a distribuição dos impactos e das responsabilidades. Mas, afinal, o que significa justiça climática e por que ela se tornou tão essencial em nosso tempo?

A justiça climática mergulha nas raízes sociais, econômicas e políticas da crise climática, expondo como os mais vulneráveis, aqueles que menos contribuíram para o problema, são os que mais sofrem as consequências. Embora o conceito esteja se tornando cada vez mais conhecido, ainda há múltiplos entendimentos sobre o que significa.

Neste artigo, traçamos um panorama histórico do uso do conceito e seu significado, explorando desde a evolução histórica, no movimento por justiça ambiental, até a emergência da transição justa, além de pontuar a aplicabilidade da abordagem no contexto nacional.

O que é justiça climática e por que ela importa?

Justiça climática é uma abordagem ética e política que emerge como evolução da justiça ambiental, focando nas desigualdades sociais amplificadas pelas mudanças climáticas. Ela conecta os direitos humanos, a equidade e a sustentabilidade, propondo medidas para reduzir os impactos climáticos nos grupos mais expostos e vulnerabilizados, como as populações periféricas e povos indígenas. Esse conceito é sustentado por dimensões distributiva, de reconhecimento e procedimental, que orientam a identificação de riscos e benefícios no contexto climático.

O ano de 2024 terminou como o mais quente da história e o primeiro a ultrapassar 1,5°C de aumento na temperatura média da Terra em relação aos níveis pré-industriais. No Brasil, ocorreram diversos eventos climáticos extremos, como as enchentes históricas que atingiram centenas de municípios no Rio Grande do Sul. É mais um caso que ajuda a ilustrar o impacto da desigualdade. Uma pesquisa realizada pelo Datafolha revelou que a população mais pobre, negra e com menor escolaridade foi a mais atingida. Quase metade (47%) das famílias que ganham até dois salários mínimos respondeu ter perdido casa, móveis, eletrodomésticos ou o próprio sustento. Já entre aquelas que ganham de cinco a dez salários, só 13% relatam algum tipo de prejuízo. A proporção de pretos que relatou algum tipo de perda com as enchentes foi de 52%; entre os pardos, 40%; e entre os brancos, 26%.

Alguns dados de acesso a serviços básicos também mostram isso. Embora representem 56% da população brasileira, pretos e pardos correspondem a 66% das pessoas sem acesso ao abastecimento de água, segundo o Instituto Trata Brasil. Já a população indígena é a mais impactada proporcionalmente, com 19 a cada 100 pessoas nessa situação. Mais de 70% das pessoas que vivem sem água tratada estão abaixo da linha da pobreza.

As mudanças climáticas aprofundam injustiças sociais, tornando urgente uma abordagem de justiça climática que considere tanto a intergeracionalidade quanto as desigualdades estruturais. Dados do Retratos da Desigualdade de Gênero e Raça, do Ipea, e do relatório Quem Precisa de Justiça Climática no Brasil, do Observatório do Clima mostram que, das 38 milhões de pessoas em situação de pobreza no Brasil, 27 milhões eram mulheres negras em 2020, evidenciando como fatores socioeconômicos e raciais influenciam a vulnerabilidade climática.

Além disso, um estudo recente aponta que crianças nascidas em 2020 enfrentarão de duas a sete vezes mais eventos climáticos extremos do que aquelas nascidas em 1960. Em um cenário de aquecimento global de 3°C, uma criança de seis anos experimentará o dobro de incêndios florestais e ciclones tropicais, três vezes mais inundações fluviais, quatro vezes mais quebras de safra, cinco vezes mais secas e até 36 vezes mais ondas de calor. Esses dados reforçam a necessidade de políticas climáticas que integrem justiça social e intergeracionalidade, garantindo que as populações mais vulneráveis e as futuras gerações não sejam desproporcionalmente impactadas pela crise climática.

A justiça climática está também diretamente ligada à agenda de mitigação. Embora a redução de emissões seja essencial, políticas como a expansão de energias renováveis podem deslocar comunidades vulneráveis, por exemplo, enquanto a precificação do carbono pode onerar famílias de baixa renda. Para evitar tais desigualdades, é fundamental garantir participação comunitária, promover uma transição justa para trabalhadores e distribuir custos e benefícios de forma equitativa.

Mais do que um conceito ambiental, a justiça climática é um marco de justiça social e racial, reconhecendo desigualdades históricas e promovendo a participação das populações mais afetadas nos processos decisórios. O debate envolve questões como racismo ambiental, acesso a saneamento básico, moradia digna e água potável, além da luta pela demarcação de territórios indígenas e quilombolas.

Falar de justiça climática, portanto, é reconhecer e enfrentar as desigualdades que impactam de forma desproporcional populações negras, quilombolas, ribeirinhas, indígenas e periféricas. É valorizar saberes tradicionais e defender modelos econômicos mais justos, com equidade e garantia de direitos humanos. 

Diante da complexidade do tema, cabe perguntar quais as raízes históricas da abordagem da justiça climática? Como a justiça climática se relaciona com outros conceitos como, por exemplo, o de transição justa? Para responder a essas perguntas, é fundamental traçar um breve histórico do movimento pioneiro por justiça ambiental e analisar como ele pavimentou o espaço para a abordagem da justiça climática.

Como surgiu o conceito de justiça climática?

O debate sobre justiça climática tem ganhado destaque crescente nas discussões globais sobre o futuro do planeta. Para compreendermos esse conceito, é crucial traçar suas raízes históricas e conceituais. A justiça climática é fruto de um longo processo de lutas e reflexões, com o movimento por justiça ambiental como seu principal alicerce.

O movimento por justiça ambiental emergiu nos Estados Unidos na década de 1960, ganhando força a partir da década de 1970, especialmente com o caso do Canal do Amor, uma área residencial construída sobre um terreno onde haviam sido descartadas 20 mil toneladas de lixo industrial no estado de Nova York, e o caso do condado de Warren, que tinha o maior percentual de negros da Carolina do Norte, também relacionado ao despejo de resíduos contaminados. Esses eventos evidenciaram como a injustiça ambiental e racial se manifesta na distribuição desigual dos riscos e danos ambientais. O conceito de racismo ambiental foi criado por Benjamin Frankiling Chavis e Robert Bullard, que, por meio de suas pesquisas e ativismo, revelaram que as comunidades negras e outras populações marginalizadas são desproporcionalmente afetadas pelos danos ambientais.

Nas últimas duas décadas do século 20, a relação entre justiça ambiental e justiça climática se tornou mais evidente. O termo justiça climática surge em 1990, em um documento que denunciava a indústria do petróleo como principal responsável pelas emissões de gases de efeito estufa que causam as mudanças climáticas. Como campo de estudo e ação, busca conectar a sustentabilidade ambiental com a equidade social, destacando as desigualdades globais no enfrentamento da crise climática. Além disso, a justiça climática introduziu a noção de “transição justa”, um conceito que surgiu no final dos anos 1980, inicialmente no movimento sindical dos Estados Unidos, em resposta aos impactos do fechamento de indústrias extrativas sobre os trabalhadores.

A ideia de transição justa apareceu nos debates climáticos internacionais a partir dos anos 1990, ganhando destaque em eventos como a Primeira Cúpula de Justiça Ambiental (1991) e a Cúpula da Terra no Rio de Janeiro (1992), que introduziu o princípio de “responsabilidades comuns, porém diferenciadas”. O conceito de transição justa evoluiu ao longo dos anos, sendo formalizado pela Organização Internacional do Trabalho (OIT) em 2009, que o definiu como um processo para tornar a economia mais ecológica de forma justa e inclusiva, criando oportunidades de trabalho digno e não deixando ninguém para trás.

Nas conferências do clima da ONU, o tema começa a ser discutido na COP16, em 2010, mas é o Acordo de Paris, de 2015, que reconhece a importância de garantir empregos decentes e de qualidade durante a transição para uma economia de baixo carbono. Desde então, cada conferência trouxe contribuições. Na COP24 (2018), reforçou-se a necessidade de proteger trabalhadores e comunidades impactadas. Na COP26 (2021) e COP27 (2022), foram criadas políticas mais robustas para a equidade climática, incluindo o Fundo de Perdas e Danos. A COP28 marcou um passo importante: o Programa de Trabalho sobre Transição Justa, lançado na COP27, foi oficialmente operacionalizado e rebatizado como UAE Just Transition Work Programme”, com foco em apoiar países na implementação de estratégias inclusivas, como os planos de transição corporativa. Até novembro de 2023, portanto ainda na primeira leva de NDCs, 30% incluiam referências gerais a uma transição justa e apenas 15% mencionavam especificamente uma transição justa para os trabalhadores.

Na COP29 (2024), o debate sobre transição justa avançou em termos de profundidade, mas pouco em termos de resultados concretos. Estava prevista a operacionalização do Programa de Trabalho de Transição Justa, mas a conferência terminou sem uma decisão e o programa segue sem um escopo definido. Em relação às questões de gênero, o texto final de Baku incentiva o levantamento de dados sobre o impacto do clima em diferentes gêneros e apoia ações nesse sentido. Além disso, os países concordaram em estender o Programa de Trabalho de Lima por 10 anos. Foi decidida a criação de um novo Plano de Ação de Gênero (GAP), processo que começará ser discutido em Bonn, durante a Conferência de Clima deste ano para que possa ser adotado na COP30. 

Um dos grandes desafios dessa agenda é a implementação no setor privado, especialmente nas estratégias de descarbonização e diversificação energética das grandes empresas. Embora essas iniciativas estejam alinhadas às metas ambientais, elas ainda priorizam objetivos econômicos e operacionais, sem incorporar plenamente a equidade social como um pilar central da transição justa.

Como vimos, justiça climática e transição justa, embora trilhem caminhos distintos em acordos multilaterais e debates de alto nível, podem convergir e se fortalecer. A justiça climática, com sua abrangência ética e política, oferece a lente necessária para guiar e qualificar a análise das melhores medidas de enfrentamento e adaptação aos impactos da mudança climática. Já a transição justa, por sua vez, traz as ferramentas práticas para transformar os princípios da justiça climática em ações palpáveis nas transições econômicas, garantindo uma transformação equitativa e sustentável. Essa intrínseca relação entre teoria e prática se manifesta de formas específicas no cenário brasileiro, em que a justiça climática tem se destacado como um tema relevante.

O debate sobre justiça climática e transição justa no Brasil está em pleno desenvolvimento. O país possui grande potencial para implementar processos de transição justa com justiça climática de forma eficaz e em escala. Mas como a governança climática brasileira tem, na prática, incorporado a abordagem da justiça climática?

Como a justiça climática se aplica no Brasil

A justiça climática se materializa na governança nacional por meio de políticas públicas que reconhecem e buscam enfrentar as desigualdades históricas, promovendo soluções para a crise climática que sejam sustentáveis, mas também inclusivas.

O Brasil colocou a justiça climática no centro de sua nova NDC, apresentada na COP29, documento em que o país não apenas reconhece a importância, mas elege a lente de justiça climática como uma visão para 2035. Isso demonstra compromisso com uma ação climática que considere as diversas dimensões e a importância de incluir grupos historicamente marginalizados na tomada de decisões, mas também traz consigo grandes desafios.

 Embora a NDC seja um instrumento internacional, o Acordo de Paris foi ratificado pelo Congresso Nacional, portanto tem seu peso na lei doméstica. Porém, um dos principais mecanismos de governança climática no Brasil e de implementação das metas da NDC será o novo Plano Clima, que orientará as ações de enfrentamento às mudanças climáticas até 2035. A transição justa é mencionada como estratégia transversal no Plano Clima e deverá estar refletida nas diversas ações que ele englobará. É necessário aguardar o lançamento oficial para avaliar como essa perspectiva será aplicada de fato.

Formado por uma Estratégia Nacional de Mitigação, que abrange sete setores, e uma Estratégia Nacional de Adaptação, com 15 setores, o plano tem o desafio de encontrar sinergias com outras políticas públicas que também são oportunidades para a promoção de justiça climática. No setor de florestas e uso da terra, por exemplo, a Estratégia e Plano de Ação Nacionais para a Biodiversidade (EPANB) e o Plano Nacional de Recuperação de Vegetação Nativa (PLANAVEG), ao trabalharem em conjunto com o Plano Clima, podem fortalecer a atuação intersetorial, amplificando as ações de justiça climática e garantindo uma transição justa para todos os setores da sociedade.

A justiça climática já tem aparecido em outras áreas na governança nacional. No final de outubro de 2023, um evento organizado pelo Ministério das Cidades e pelo WRI Brasil marcou a retomada da Política Nacional de Desenvolvimento Urbano (PNDU) e deu destaque para a necessidade de incluir a dimensão de justiça climática no contexto das discussões urbanas também.

Além disso, o WRI Brasil também tem promovido o tema por meio da parceria com o Programa Periferia Viva, liderado pela Secretaria Nacional de Periferias (SNP) do Ministério das Cidades. A iniciativa representa uma aplicação concreta da justiça climática nas cidades ao abordar a urbanização de territórios periféricos com um olhar integrado para habitação, infraestrutura e resiliência climática. Com investimentos de R$ 5,27 bilhões, o programa irá promover a implementação de soluções adaptadas às especificidades de cada território, garantindo respostas mais eficazes às demandas locais em 58 territórios periféricos.

Plano Clima é oportunidade para ampliar ações de justiça climática

Como país megabiodiverso e de marcadas desigualdades socioeconômicas, o Brasil tem a oportunidade – e a responsabilidade – de transformar a justiça climática em um motor de mudança real. Mas até que ponto estamos dispostos a sair do discurso e implementar políticas que verdadeiramente coloquem os mais vulneráveis no centro das soluções climáticas?

Os números falam por si: enquanto eventos climáticos tornam-se cada vez mais extremos, os investimentos em prevenção e adaptação continuam insuficientes. As periferias e favelas são territórios historicamente marginalizados e que tem baixa ou baixíssima capacidade adaptativa para se preparar ou se recuperar após um desastre climático, o que contribui para manutenção da pobreza e marginalização dessas populações.

Povos indígenas, comunidades tradicionais e trabalhadores de setores em transição seguem excluídos dos processos de decisão, assim como as mulheres, que estão sub-representação nos espaços que definem políticas climáticas, apesar de liderarem ações concretas em momentos de crise. A justiça climática não pode ser apenas um princípio abstrato, mas uma diretriz real que oriente governos, empresas e a sociedade civil, garantindo participação efetiva e reconhecimento do papel fundamental dessas populações na proteção do clima e na promoção da qualidade de vida.

Diante da urgência da crise climática e com a COP30 no horizonte, o Brasil se tornará exemplo de liderança na construção de um modelo de desenvolvimento justo e sustentável ou repetirá velhas práticas que perpetuam injustiças e aprofundam vulnerabilidades? A justiça climática é mencionada como um dos principais temas para Belém, uma sinalização importante da presidência brasileira.O Plano Clima, atualmente em elaboração e discussão pública, é uma boa oportunidade para concretizar as ações de justiça climática na próxima década no país, ao mesmo tempo em que globalmente se discute o novo Plano de Ação de Gênero e o Programa de Trabalho de Transição Justa rumo à COP30.