Novas rotas no transporte coletivo: cidades e operadores criam juntos soluções para desafios históricos
O transporte coletivo tem percorrido novas rotas. Enquanto o Brasil discute um marco regulatório para o setor, subsídios aos sistemas de ônibus urbanos deixaram de ser exceção. Faixas exclusivas tiram o ônibus do congestionamento e receitas de estacionamento rotativo e publicidade geram recursos para qualificá-lo. Cidades buscam novos modelos de contrato de concessão e formas de remunerar o sistema segundo indicadores de qualidade. Mesmo a ideia “utópica” de transporte gratuito já é realidade em dezenas de municípios.
Cinco anos atrás, era ainda no território da contemplação que se encontrava a maior parte desses avanços. Já a crise de demanda do setor, a falência do modelo de financiamento baseado na arrecadação tarifária e a necessidade de reter e atrair clientes – esses eram desafios muito reais. Foi nesse contexto que o WRI Brasil deu início ao Grupo de Benchmarking QualiÔnibus, uma rede que hoje conta com 28 cidades, agências metropolitanas e operadores de transporte comprometidos em medir a qualidade de seus sistemas de ônibus e em experimentar e compartilhar soluções para desafios também compartilhados.
Cinco anos e resultados de Norte a Sul
Os novos pontos de ônibus de Belo Horizonte, São Paulo, Fortaleza ou Porto Alegre. Os ônibus elétricos que São José dos Campos comprou com receitas do estacionamento rotativo. A ferramenta Nina, que Fortaleza implementou para combater o assédio sexual. Todas essas boas práticas têm passado pelo Grupo de Benchmarking QualiÔnibus.
Por vezes origem das soluções, noutras ponto de embarque ou centro de informações, o Grupo esmiúça o processo de implementação dessas novas práticas e entende seus impactos, para que sejam compartilhadas, replicadas e contribuam para a renovação do setor. Confira, a seguir, temas e inovações que marcaram os cinco anos do Grupo de Benchmarking QualiÔnibus – e que o WRI Brasil e as cidades têm avançado em conjunto.
O foco nas pessoas
Quase um terço da população brasileira depende do transporte público coletivo para acessar trabalho, estudo ou outras atividades cotidianas, e metade dos passageiros de ônibus em grandes cidades brasileiras têm nele sua única opção. Há um vínculo claro entre renda e facilidade de acesso a oportunidades. Em São Paulo, o número de empregos acessíveis aos 10% mais ricos é mais do que 9 vezes maior do que o número de empregos acessíveis aos 40% mais pobres. Renovar os sistemas de ônibus no Brasil é promover equidade, justiça e prosperidade econômica para as pessoas e as cidades.
Carros e motos geram a maior parte das externalidades negativas do transporte e recebem a maior parte dos investimentos públicos. É uma lógica perversa, que ignora que um transporte coletivo que as pessoas queiram usar é uma das principais medidas para conter a migração de passageiros para o transporte individual motorizado e todos os efeitos deletérios dessa migração no clima, na qualidade do ar e na saúde pública. Uma pesquisa da Rede Nossa São Paulo mostrou que 66% das pessoas que usam carro deixariam de usá-lo caso houvesse uma boa alternativa de transporte público.
Ações para qualificar o serviço devem, portanto, priorizar efetivamente os passageiros, mantenedores de um serviço que beneficia toda a sociedade. O primeiro passo é ouvir essas pessoas, o que cidades do Grupo fazem utilizando a Pesquisa de Satisfação QualiÔnibus. A metodologia avalia a satisfação dos passageiros com diferentes fatores da qualidade, como conforto dos pontos de ônibus, dos veículos, disponibilidade e segurança pública, possibilitando que sejam identificados os fatores a serem priorizados na implementação de melhorias.
Tarcísio Abreu, presidente da Companhia Metropolitana de Transportes Coletivos (CMTC) de Goiânia, ressalta que a pesquisa ajuda a fechar um “ponto cego” de mecanismos tradicionais. “A gente tem uma percepção de quem executa o serviço, de quem monitora, de quem controla o serviço. Mas a percepção do passageiro que está lá na ponta, dentro do ônibus, é uma realidade totalmente diferente”.
Os resultados da pesquisa ajudam as cidades a serem mais assertivas. “A pesquisa é ampla, robusta e abarca vários fatores, relacionados aos pontos de acesso, às viagens e à percepção do passageiro em relação às intervenções que nós fazemos. O diagnóstico fica muito mais claro e nos permite uma intervenção muito mais direta no que realmente precisa melhorar”, avalia Livia Mamede, da Secretaria Municipal de Trânsito e Transportes (Settran) de Uberlândia (MG).
Várias cidades do grupo adotaram a Pesquisa de Satisfação e os Indicadores QualiÔnibus no monitoramento do transporte coletivo. Porto Alegre e Salvador foram além e incorporaram as ferramentas em seus programas de metas. Porto Alegre busca melhorar em 5% o índice de satisfação geral com o sistema, e Salvador estabeleceu a nota 6 como meta a ser alcançada com base na qualificação que o sistema vem recebendo, como o novo BRT Salvador e a incorporação dos primeiros ônibus elétricos em sua frota.
“A gente percebe que o BRT tem trazido a qualidade esperada pelo cidadão do ponto de vista de segurança, de pontualidade. E o QualiÔnibus tem sido um instrumento extremamente eficiente de ajuda na busca por essa qualidade”, avalia Fabrizzio Muller, secretário de Mobilidade de Salvador.
O transporte coletivo começa no ponto de ônibus
Pontos de ônibus são o primeiro contato dos passageiros com o sistema. Pode parecer óbvio, mas em 2016, poucas cidades ousariam priorizar a qualificação dos pontos de ônibus no apertado orçamento do transporte coletivo. Após a aplicação da Pesquisa de Satisfação QualiÔnibus apontar os pontos de ônibus como uma das principais insatisfações de passageiros, Belo Horizonte encontrou um caminho: concedeu estruturas a uma empresa, que qualifica, mantém e instala abrigos. Em troca, comercializa espaço publicitário.
Apresentada e discutida no Grupo de Benchmarking QualiÔnibus e objeto de uma visita técnica de cidades do Grupo, a iniciativa de Belo Horizonte semeou a mudança – até agora – em Fortaleza e Porto Alegre. A capital gaúcha concedeu a instalação de 1.507 abrigos – dos quais 75 haviam sido implementados em novembro de 2022 –, com bancos confortáveis e tomadas USB, protegidos por laterais transparentes para maior segurança. São planejados 75 abrigos com telhados verdes e painéis fotovoltaicos, 100 com câmeras de monitoramento e wi-fi, e 180 com painéis digitais de informação em tempo real sobre os coletivos.
A ferramenta Nina foi uma das finalistas do Desafio InoveMob em 2018. O WRI Brasil conectou Fortaleza e a Nina, e a parceria deu certo. A ferramenta foi implementada no do app Meu Ônibus e lançada em 2019. Em 2022, foi atualizada e passou a permitir denúncias diretamente pelo WhatsApp.
A capital cearense seguiu um caminho de financiamento distinto e implementou quatro novos abrigos como protótipos do projeto Parada Segura. Foram incluídas câmeras, iluminação, wi-fi gratuito e requalificação do ponto e acessibilidade. Além do conforto, o foco é em segurança. A conectividade permite a qualquer pessoa com um smartphone acessar as informações sobre o sistema pelo app Meu Ônibus ou efetuar denúncias de assédio pela plataforma Nina (leia mais sobre a Nina no box).
A escolha dos primeiros pontos prioritários para qualificação se baseou no mapeamento dos que tinham mais problemas de segurança e denúncias de assédio. A fim de mensurar o impacto da qualificação dos primeiros abrigos do Parada Segura, foi utilizada a metodologia QualiÔnibus para avaliar o cenário antes e o depois. “Houve aumento de 30% na sensação de segurança, e 59% de avaliação positiva do conforto. O projeto se mostrou muito benéfico para a população”, avalia Raimundo Rodrigues, vice-presidente da Empresa de Transporte Urbano de Fortaleza (Etufor). A meta agora é implementar 200 abrigos até 2024 em outros locais que necessitem de maior atenção quanto à segurança pública.
Em busca das receitas extratarifárias
Predomina nos sistemas de ônibus no Brasil o financiamento baseado na arrecadação tarifária. Além de insuficiente para garantir um serviço de qualidade, o modelo rateia entre a população mais pobre e desassistida o financiamento da operação de um serviço básico – e um direito constitucional. Desde o princípio, cidades do Grupo discutem e experimentam novos modelos de arrecadação de receitas para bancar e qualificar o serviço.
Os casos dos pontos de ônibus de Belo Horizonte e Porto Alegre são um bom exemplo, mas há muito potencial inexplorado de receitas extratarifárias, as quais podem ser componentes importantes no financiamento do sistema como um todo – e mesmo de sua renovação. São José dos Campos, por exemplo, viabilizou a compra dos 12 ônibus elétricos que operam a Linha Verde do BRT com recursos da outorga do estacionamento rotativo. Conciliou a descarbonização do transporte coletivo com a modernização da zona azul, que hoje tem 38,5% da receita destinada para o fundo de transportes do município.
A cobrança por usos privados que motoristas fazem do espaço dos recursos coletivos, como o estacionamento em via pública, é uma medida promissora e pouco explorada. A título de exemplo, das 27 capitais brasileiras, apenas São Paulo tem a tarifa da área azul superior à tarifa do transporte coletivo.
A boa ideia se disseminou rapidamente pelo Grupo. Em 2021, oito municípios saíram de uma oficina sobre a nova política de estacionamento rotativo da cidade paulista com planos de ação próprios. Novo Hamburgo, na região metropolitana de Porto Alegre, gostou do caso de Lisboa, apresentado durante os debates, e incorporou zonas distintas de cobrança, de acordo com a demanda por vagas em cada região. Já a capital gaúcha aumentou em 74% o valor da hora da área azul (de R$ 2,30 para R$ 4) e passou a destinar a arrecadação ao transporte coletivo. A expectativa da prefeitura é de que R$ 20 milhões sejam direcionados para o sistema em 2023.
Compartilhar para qualificar
O grande desafio do transporte coletivo é conciliar sustentabilidade com qualidade. “Trazer aquele passageiro que perdeu a vontade de andar de ônibus para o sistema de transporte. E, com isso, criar um sistema retroalimentado, um círculo virtuoso”, resume Adão de Castro, secretário de Mobilidade Urbana de Porto Alegre.
Experiências como o Grupo de Benchmarking QualiÔnibus retiram as cidades de um isolamento ilusório em que se debatem sozinhas com seus problemas, e as colocam em uma aliança pela busca de soluções. Como sintetiza Eunice Horácio, gerente da Federação das Empresas de Mobilidade do Estado do Rio de Janeiro (Semove), “a gente fala que o transporte não se copia porque cada cidade é um pouquinho diferente, mas a gente olha o que um está fazendo para tentar trazer da melhor forma possível para o nosso universo”.
Vice-presidente da Semove, Rodrigo Tortoriello era secretário de Transporte e Trânsito de Juiz de Fora em 2017, quando a cidade foi uma das primeiras a se juntar ao Grupo. “A nossa decisão em participar bem no comecinho foi pela oportunidade de os nossos técnicos conversarem com técnicos de outras cidades e às vezes solucionar um problema que parecia complicado e outra cidade achou uma solução simples, barata e prática de ser implantada. O grande valor do Grupo é facilitar a adoção de novas medidas e soluções de forma rápida, prática e com baixo custo.”
Desde 2017, o grupo cresceu em tamanho – de 10 para 28 cidades e operadores. Em diversidade, já que hoje conta com municípios de diferentes portes. Em resultados, como mostram os exemplos acima. Nos últimos anos, o WRI Brasil tem coordenado redes de técnicos de cidades brasileiras em diferentes frentes da mobilidade urbana. Trata-se de um desafio contínuo de manutenção de engajamento, mas que se sustenta na concretização das mudanças, na capacitação e na entrega de valor para as cidades, os líderes e a população.