O transporte coletivo é uma parte essencial da vida urbana. Como direito constitucional, o serviço exerce um papel importante na garantia de que pessoas de diferentes origens, necessidades e condições socioeconômicas possam acessar a cidade e as oportunidades urbanas com equidade, segurança e conforto.

Muitas vezes, não é isso que ocorre. Para cada grupo vulnerável que se analise, surgem barreiras. Por um recorte socioeconômico, em um país em que 8,9 milhões de pessoas estão desempregadas, o custo da tarifa é hoje um impeditivo para que muita gente possa buscar trabalho. Para mulheres e outras identidades de gênero minorizadas, o assédio e a violência no transporte coletivo são recorrentes. Para pessoas com deficiência (PCD), a falta de acessibilidade gera constrangimento, dificuldades e, em última instância, priva do acesso à cidade.

Combater as iniquidades e exclusões no transporte coletivo passa por torná-las visíveis – escutando ativamente pessoas que representem a diversidade de clientes do serviço – e, a partir disso, implementar ações que reduzam, tanto quanto possível, as barreiras a que essas pessoas estão sujeitas.

Planejado por quem e para quem

QualiÔnibus e a diversidade

Para ampliar a promoção de medidas que contemplem a diversidade, recentemente, o WRI Brasil incluiu um novo aspecto da qualidade na coleta de indicadores realizada anualmente com os participantes do Grupo de Benchmarking QualiÔnibus. Agora, os indicadores identificam o gênero dos planejadores do serviço de transporte, assim como o de motoristas e cobradores, e a presença de ações relacionadas a equidade.

A combinação entre coleta de indicadores, Pesquisa de Satisfação e compartilhamento de boas práticas permite às cidades e ao WRI Brasil não apenas uma melhor avaliação dos desafios de equidade e inclusão, mas também do impacto das medidas adotadas na melhoria da qualidade e da sustentabilidade do serviço.

A desigualdade no transporte começa no planejamento. Segundo dados do Grupo de Benchmarking QualiÔnibus, homens representam a grande maioria dos cargos de presidência, direção e gerência dos órgãos públicos de planejamento e das operadoras privadas.

Essa desigualdade tende a reforçar outras. A baixa representação de grupos minorizados, como mulheres e pessoas com deficiência, pode contribuir para um planejamento pouco equitativo, que não considere as experiências e necessidades de grupos e indivíduos diversos ao se deslocar pela cidade. Os serviços são desenhados e geridos para atender a um suposto “passageiro padrão”, considerando necessidades e hábitos da “maioria”. Acontece que o passageiro padrão é, na verdade, uma passageira. Enquanto o planejamento da oferta é feito por homens, a Pesqsuisa QualiÔnibus revela que 64% da clientela dos serviços de ônibus é composta por mulheres, e 61% são pessoas com renda familiar de até 2 salários mínimos.

Caminhos para um transporte mais inclusivo

Desde sua criação, o Grupo de Benchmarking QualiÔnibus discute boas práticas implementadas nos sistemas de transporte coletivo por ônibus. Conheça a seguir algumas das ações com foco em equidade e inclusão já realizadas por algumas das cidades que participam do grupo.

Reduzir as tarifas de ônibus e ampliar o acesso a oportunidades

A primeira barreira para um transporte inclusivo é socioeconômica. Metade das pessoas que usam o transporte coletivo têm nele sua única forma de acesso a oportunidades. O custo de usar o serviço duas vezes por dia equivale a 15% do salário mínimo.  Um sistema mais equitativo deve garantir que quem mais precisa possa contar com o serviço sem sacrificar parte significativa do seu orçamento.

A Região Metropolitana de Goiânia (RMG), composta por Goiânia e mais 18 cidades, tem apresentado avanços nesse quesito a partir de diversas políticas tarifárias implantadas a partir de 2022. Entre as ações de bilhetagem eletrônica recentemente implementadas, destaca-se o Bilhete Meia Tarifa, que permite que qualquer morador pague R$ 2,15 para circular dentro da própria cidade.

A cidade goiana de Senador Canedo foi a primeira da RMG a implementar o benefício de forma piloto em sete linhas de ônibus. Após o piloto, a demanda de passageiros na cidade aumentou em 78%. A medida foi expandida para as cidades de Nerópolis, Trindade, Goianira e Aparecida de Goiânia. Ao todo, mais de 50 novas linhas foram criadas.

Além da tarifa reduzida, a RMG tem colhido bons resultados com outras políticas de acessibilidade tarifária. Com o Bilhete Único, que permite o transporte integrado com tarifa única em toda a região metropolitana durante período de duas horas e meia, o percentual de passageiros que realizam integração entre ônibus passou de 3% para mais de 20%.

As cidades ainda contam com o Passe Livre do Trabalhador, modalidade de vale-transporte em que empregadores pagam R$ 180 por funcionário ao mês e possibilita até oito embarques diários; e o Cartão Família, que permite que até cinco pessoas viagem aos fins de semana pagando uma única tarifa, facilitando o acesso ao lazer. Após o início da implementação das políticas tarifárias, a RMG observou um aumento de 18% no número de passageiros transportados.

Eliminar obstáculos e garantir o direito à mobilidade de PCDs

Quando pensamos em equidade no transporte coletivo, talvez a gratuidade e o serviço de transporte especial para PCDs sejam as primeiras ações lembradas. Contudo, elas são mesmo inclusivas ou todos os ônibus deveriam contar com acessibilidade?

Conforme dados do IBGE, apenas 11,7% dos municípios brasileiros possuem frota totalmente adaptada, 48,8% possuem acessibilidade parcial e 39,4% não possuem qualquer tipo de acessibilidade da frota. Esse resultado confirma que um público considerável apresenta dificuldades em realizar suas atividades cotidianas de deslocamento. Um bom exemplo em relação à acessibilidade de pessoas com mobilidade reduzida é o Índice de Acessibilidade do Embarque/Desembarque da frota de transporte coletivo de Belo Horizonte, que avalia, em uma escala de 1 a 10, o grau de facilidade para o embarque e desembarque de passageiros.

homem em cadeira de rodas embarcando em ônibus
Belo Horizonte (foto) conta com índice de acessibilidade para pessoas com mobilidade reduzida (foto: Nereu Jr/ WRI Brasil)

Ponta Grossa (PR) instalou totens interativos para a consulta de horários das linhas nos terminais. Para tornar o serviço mais inclusivo para pessoas com baixa visão, placas com QR Code com etiquetas em braile que encaminham para o aplicativo de consulta das viagens foram incluídas em todos os terminais da cidade. Os celulares de pessoas com limitações visuais costumam possuir ferramentas integradas de leitura de textos. Para garantir a efetividade da ferramenta, a equipe de planejamento conduz conversas periódicas a fim de garantir que o serviço atenda adequadamente as necessidades dessas pessoas.

Nessa mesma linha, Belo Horizonte possibilita através do SIU Mobile que o cliente com deficiência consiga solicitar o ônibus pelo app e um alarme chega no tablet do motorista com o nome e localização do embarque. O condutor então, deve parar no ponto e chamá-lo pelo nome e se identificar. Segundo pessoas que usam a ferramenta, ser chamados pelo motorista é especialmente importante em grandes avenidas, onde passam muitas linhas e com intervalos muito pequenos.

Aumentar a segurança para mulheres viajarem tranquilas

Mulheres experienciam o transporte de forma distinta dos homens. No Brasil, são as elas principais responsáveis pelas atividades de cuidado, de modo que realizam mais viagens e de forma mais distribuída ao longo do dia, fora do horário de pico. Também estão mais expostas à violência e ao assédio: 97% das brasileiras já sofreram assédio enquanto usavam algum meio de transporte.

A Pesquisa de Satisfação QualiÔnibus reflete essa realidade: fatores como “Segurança Pública”, “Disponibilidade de viagens” e “Conforto dos pontos de ônibus” são os que usualmente apresentam a maior diferença na percepção de homens e mulheres, com as mulheres apontando mais sensação de insegurança, insatisfação com a disponibilidade de viagens e expectativa por pontos de ônibus mais confortáveis e seguros.

Fortaleza tem buscado incluir essa perspectiva em suas políticas de mobilidade. Em 2018, a capital cearense foi pioneira ao implementar a Nina, uma plataforma digital que permite denunciar situações de assédio de forma digital e anônima. Além de combater o assédio, a ferramenta qualifica o diagnóstico do problema, já que o anonimato encoraja a denúncia por mulheres que, de outro modo, poderiam desistir da denúncia formal por receio de sofrer novos constrangimentos e violências. Desde então, foram registradas mais de 3 mil denúncias, das quais 60% ocorreram nos ônibus e 40% nos pontos e terminais. Uma a cada dez denúncias torna-se inquérito policial.  

mãos mexendo em smartphone rodando aplicativo para denúncia de assédio
Plataforma Nina permite denunciar situações de assédio de forma digital e anônima (foto: Camila de Almeida/WRI Brasil)

Outra ação na mesma linha é a possibilidade de desembarque fora dos pontos de ônibus à noite. Desde 2020, Porto Alegre permite não só que mulheres, mas que qualquer passageiro do transporte coletivo desembarque fora dos pontos de ônibus entre 22h e 5h. A cidade, recentemente, também vem qualificando os seus pontos de ônibus, o que é especialmente benéfico para a segurança das mulheres. Os novos modelos de abrigos trazem melhor iluminação, informações sobre os próximos ônibus e proteções transparentes que contribuem para a melhoria da segurança pública e reduzem a sensação de medo e exposição nos pontos de ônibus.

Reconhecer os desafios para enfrentá-los

Garantir que o transporte coletivo cumpra sua função enquanto direito social passa por reconhecer as lacunas que diferentes grupos enfrentam no acesso ao serviço. A avaliação da diversidade e inclusão social no transporte público por ônibus permite identificar as necessidades específicas de diferentes tipos de passageiros. Tornar o transporte público coletivo acessível para todas as pessoas pode ser desafiador, mas é fundamental na construção de uma sociedade justa, saudável e próspera.