Cidade das mulheres: planejamento ignora aspectos cruciais para cidades equitativas
Ao monitorar os resultados da construção de uma praça em Porto Alegre, um dado chama atenção: depois de meninos e meninas brincando, são mulheres que cuidam das crianças as principais frequentadoras do espaço. A história ocorreu em uma região vulnerável da cidade e evidencia uma atividade muitas vezes ignorada pelo planejamento urbano: o cuidado.
O objetivo do monitoramento, no Loteamento Santa Terezinha, era verificar o perfil de frequentadores e sua percepção sobre o espaço e seus equipamentos, recentemente qualificados por uma série de organizações, bem como das rotas escolares em seu entorno. Realizada pelo WRI Brasil em parceria com a Fundação Grupo Volkswagen, a pesquisa mostrou que crianças representam 89% dos frequentadores da praça. E que 4,5 vezes mais mulheres adultas frequentam a praça do que homens – na maioria das vezes, acompanhando os pequenos.
E por que isso é importante? Porque o cuidado é um aspecto da vida urbana frequentemente ignorado. Se é reducionista e violento tratar de mulheres apenas no sentido doméstico, é verdade que a vida cotidiana das mulheres nas cidades encontra obstáculos que parecem resultado de um planejamento que ignora suas necessidades. Em média, mulheres dedicam mais tempo às atividades de cuidado – uma acumulação de tarefas que gera sobrecarga e onera em especial as mulheres mais desassistidas e vulneráveis.
A mobilidade do cuidado
Em Madri, a pesquisadora e professora de planejamento urbano Inés Sánchez de Madariaga mostrou como atividades de cuidado pareciam irrelevantes e fragmentadas em pesquisas origem-destino. Ir ao mercado, à farmácia, levar filhos ao médico, à escola, à praça – essas atividades não remuneradas, chamadas “reprodutivas”, compõem 40% dos motivos das viagens de mulheres em Madri, e somente 8% das de homens.
Outras experiências do WRI Brasil em bairros vulneráveis reforçam a dinâmica da praça de Porto Alegre. Em Teresina, o projeto Alianças para Transformação Urbana mobilizou a comunidade de um conjunto habitacional para a implementação de uma praça. Monitoramento antes e depois da intervenção mostra um aumento de 69% na presença de meninas brincando na praça, e de 97% para mulheres. Mais uma vez, quando há um adulto acompanhando as crianças que brincam, é sempre uma mulher. Em São Paulo, a construção de uma praça no Jardim Lapena resultou num aumento de 70 vezes na presença de meninas no espaço, antes um terreno baldio. Junto das crianças, o número de cuidadoras e cuidadores aumentou oito vezes.
A pesquisa em mobilidade e gênero tem mostrado que uma grande parte das mulheres tende a realizar viagens encadeadas: elas saem de casa, levam o filho à escola, vão ao trabalho, passam no supermercado e finalmente chegam em casa. A esse padrão de deslocamento, invisível pois fragmentado, Madariaga chamou “mobilidade do cuidado”, um conceito que provoca a pensar o quanto o planejamento urbano e de mobilidade, ao privilegiar a infraestrutura para os carros ou a oferta de ônibus no horário dos deslocamentos casa-trabalho, por exemplo, deixa à margem uma ampla parcela da população.
É, então, necessário pensar as cidades para mulheres. Mas quais mulheres?
As abordagens interseccionais sobre o tema mostram que as precariedades encontradas na vida cotidiana são maiores quando marcadores socioeconômicos, como gênero e raça, se somam. Um estudo da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Urbano de São Paulo alerta para isso. A partir de dados da pesquisa origem-destino, o órgão mostrou como os modos de transporte e o comportamento de viagem variam entre mulheres e homens, e de acordo com o grau de instrução, a renda e a presença de filhos de 5 a 9 anos. Quanto menor a renda, mais as mulheres se deslocam por motivo de educação (levando filhos à escola), e mais andam a pé e de ônibus.
Cidades que privilegiam os homens
Planejar as cidades para as mulheres, em especial as que residem em regiões periféricas, significa qualificar o transporte coletivo e a mobilidade ativa. Também as ruas, áreas verdes, parques, praças. Afinal, a mobilidade urbana não se refere apenas ao transporte, ela está necessariamente ligada ao espaço público e à experiência de quem se desloca. Isso evidencia que dimensões de assédio e segurança pública precisam ser levadas em conta, por exemplo com iluminação pública adequada, para que o espaço urbano atue prevenindo e coibindo violências cotidianas a que as mulheres são sujeitadas.
Não é o que ocorre. Dados da ANTP mostram que os investimentos e outros custos associados à infraestrutura para carros, por exemplo, são mais de cinco vezes maiores do que os investimentos em transporte coletivo. Em São Paulo, dados do Instituto Cordial revelam que 40% das calçadas estão abaixo da largura mínima exigida por lei – situação que se agrava em regiões mais distantes do centro. Via de regra, bairros periféricos têm, também, menos acesso a áreas verdes, como parques e praças, e piores condições de iluminação. Em todos esses casos, são as mulheres as mais prejudicadas.
Por cidades mais equitativas e justas
O cuidado é uma relação. Olhando para as mulheres, olhamos também para aqueles de quem elas cuidam. Planejar a cidade para mulheres e o cuidado é planejar para seus dependentes, crianças, idosos e outras mulheres que se apoiam em laços comunitários. Mais do que isso, é uma dimensão fundamental do funcionamento das cidades, até mesmo de suas economias. Já pensou como seria a economia se todo o trabalho reprodutivo acumulado pelas mulheres fosse remunerado?
A necessária atenção às questões de gênero passa por promover a igualdade das representações no planejamento e na tomada de decisão de prefeituras e secretarias. Passa, também, por propostas e soluções a partir de debates coletivos, que considerem os usos diversos que as pessoas fazem da cidade. Afinal, se as cidades podem parar sem o trabalho do cuidado, essa é uma responsabilidade de todos – Estado, sociedade, família – e não apenas das mulheres.