Tarifa zero no transporte público: impactos, desafios e recomendações
Um dos legados da pandemia para o transporte público coletivo foi a queda brusca e acentuada na demanda de passageiros, que já vinha baixa. A necessidade generalizada de subsídios aos sistemas de ônibus, algo até então pouco comum no Brasil, acendeu o debate sobre financiamento e a importância do serviço para o acesso a oportunidades de trabalho, estudo, saúde e lazer. Na esteira desse momento, ganharam força as experiências com tarifa zero.
A ideia de oferecer transporte público gratuito como forma de garantir acesso à cidade não é nova. Conchas (SP) foi pioneira ao adotar essa abordagem em 1992 para ampliar o acesso à educação. Mas só recentemente a prática começou a se difundir, em um ritmo acelerado.
Uma década atrás, menos de 20 cidades brasileiras adotavam a tarifa zero universal – em abril de 2024, eram 106. Um levantamento da Associação Nacional das Empresas de Transportes Urbanos (NTU) aponta que, só em 2023, 36 cidades adotaram a política. Sete em cada dez iniciativas foram implementadas nos últimos quatro anos.
O crescente interesse no assunto se refletiu nas eleições de 2024. O projeto Vota Aí, da Unicamp e da Uerj, divulgou dados replicados por vários veículos de imprensa, indicando que o número de candidatos que mencionaram a “tarifa zero” ou “passe livre” em suas propostas aumentou de 384 em 2016 para 675 em 2024.
Entre os argumentos para a tarifa zero estão a garantia do direito social ao transporte, do direito à cidade e o incentivo ao transporte sustentável para conter a migração de passageiros para carros e motos. Há, de fato, relatos indicando que cidades que adotaram a política viram aumentar o comparecimento a consultas do SUS ou as viagens de ônibus em bairros de baixa renda.
Mas há também receios justificados, entre eles, o de que a qualidade do serviço se deteriore, aprofundando a crise, ou de que, na ausência de financiamento adequado, a tarifa zero onere ainda mais os cofres públicos e retire recursos de outras áreas prioritárias, como saúde e educação.
À medida que os casos se disseminam, é importante avaliar os impactos positivos e negativos, bem como as práticas que tenham contribuído para as experiências mais bem-sucedidas. O que os casos até agora têm mostrado?
As experiências de tarifa zero
Ainda há poucos estudos que analisem as experiências de tarifa zero no Brasil e seus resultados. O documento da NTU que tomamos por referência é um dos poucos levantamentos disponíveis que compila e sistematiza informações de várias cidades que adotaram a tarifa zero, e foi produzido em grande parte a partir de notícias do próprio poder público das cidades.
O documento revela alguns padrões e tendências. Um padrão observado é o aumento significativo da demanda, que chega a mais de 200% em várias cidades. Outro é que a adoção da tarifa zero está concentrada em municípios de pequeno e médio portes: apenas 31 das 106 cidades mapeadas pela NTU têm mais de 50 mil habitantes, e dessas, 11 têm mais de 100 mil e nenhuma tem mais de 400 mil habitantes.
Caucaia (CE), com 355.679 habitantes, e Maricá (RJ), com 197.300 habitantes, são a primeira e a terceira maiores cidades com tarifa zero universal implementada de forma definitiva. As duas cidades divulgaram impactos na demanda de passageiros e na operação do serviço, que ajudam a traçar os potenciais efeitos positivos da política, mas também os pontos de atenção.
Caucaia: aumento na arrecadação
Localizada na Região Metropolitana de Fortaleza, Caucaia implantou a tarifa zero em 2021 em resposta à queda abrupta no número de passageiros e na receita do sistema durante a pandemia. A cidade atribui à medida um aumento de 25% no faturamento do comércio e do setor de serviços e consequente aumento na arrecadação municipal.
A demanda em Caucaia teve o maior crescimento documentado pela NTU: 371% em dois anos, indo de 510 mil de passageiros/mês em 2021 para 2,4 milhões em 2023. A frota de ônibus foi ampliada em 46%, de 48 para 70 veículos. A manutenção do serviço representa 1,8% do orçamento municipal, e a remuneração do operador é feita por quilômetro rodado, prática que pode reduzir o aumento de gasto público (veja mais abaixo).
Maricá: economia para as famílias
A Empresa Pública de Transportes (EPT) de Maricá implantou a tarifa zero em parte das linhas municipais em 2014 e ampliou a política para todo o município em 2021. Durante esse período, o município observou um crescimento grande em demanda (144%), e ainda maior na frota de veículos (160%) – neste ponto, uma exceção entre as cidades com casos documentados pela NTU.
Desde a implantação da tarifa zero, Maricá saltou de aproximadamente 50 mil passageiros transportados por dia em 2021 para 122 mil em 2023. A cidade carioca sustenta o aumento na oferta de linhas com recursos advindos dos royalties de petróleo. Segundo a EPT, 20% da renda mensal das famílias é economizada por meio da medida, valor que pode retornar para a economia local.
Canoas: retomada pós-enchente
Em maio de 2024, Canoas (RS), na região metropolitana de Porto Alegre, foi devastada pelas enchentes que atingiram o Rio Grande do Sul. A prefeitura, então, implementou a tarifa zero para ajudar a população a se reerguer, facilitando o acesso a serviços essenciais, especialmente para pessoas que perderam tudo. Até o momento, não há dados de impacto, e a tarifa zero foi prorrogada até o final de 2024. O sucesso da medida faria de Canoas a segunda maior cidade do país com tarifa zero implementada, e um exemplo do uso da política para estímulo da recuperação econômica.
Tamanho pode ser documento
Entre as capitais brasileiras, há modelos de gratuidade parcial com diferentes finalidades. Em São Paulo e Maceió, a tarifa zero é oferecida aos domingos. Em Palmas, nos finais de semana e feriados. Em Florianópolis, no último domingo de cada mês e em todos os domingos durante o verão. Em Belo Horizonte, há tarifa zero nas linhas que atendem comunidades periféricas. Em Fortaleza, é focada nos estudantes. Em Goiânia, trabalhadores têm direito a uma cota de viagens, financiada pelos empregadores.
Universalizar a política em cidades grandes como essas, no entanto, pode ser mais desafiador. A frota combinada de todas as cidades com tarifa zero universal equivale à metade da frota de Campinas, menos de um oitavo da frota do Rio e a bem menos de um vigésimo da frota de São Paulo. A informação é relevante porque o aumento da demanda por viagens tende a gerar um aumento de custos mais significativo em grandes cidades, com sistemas maiores e mais complexos.
Enquanto nos casos documentados pelo levantamento da NTU, a tarifa zero universal consome até 3% do orçamento, há estimativas de que a expansão da tarifa zero em São Paulo para todos os dias da semana comprometeria entre 10% e 20% do orçamento municipal. Hoje a prefeitura gasta em torno de 5% do orçamento para subsidiar em cerca de 40% o sistema de ônibus.
População aprova, mas qualidade é ponto de atenção
Entre a população que tem sido beneficiada pela tarifa zero, o cenário é de aprovação da política. A mais recente Pesquisa de Mobilidade da População Brasileira, da Confederação Nacional do Transporte (CNT), revela que, entre as pessoas que vivem em cidades com tarifa zero e utilizam os ônibus, 58% aprovam a tarifa zero universal e 28,7% aprovam a isenção para grupos específicos. A pesquisa também perguntou sobre o impacto da medida na qualidade do serviço. A maioria das pessoas (56,7%) concorda parcial ou totalmente que a tarifa zero aumentou a lotação dos ônibus. Quase a mesma porcentagem discorda (36,8%) e concorda (34,8%) que a tarifa zero tenha melhorado a qualidade do serviço.
Cada pessoa percebe a qualidade do serviço de forma distinta: para algumas o fator preponderante pode ser o valor da tarifa, enquanto para outras, o mais relevante é o conforto dos veículos, por exemplo. Aferir a percepção dos passageiros com regularidade após a implantação de medidas como a tarifa zero pode auxiliar as cidades a gerirem a qualidade do serviço.
Desafios e recomendações
Com base nas tendências e padrões explorados acima, é possível traçar algumas recomendações para cidades que avaliem implantar a tarifa zero.
Projetar o aumento da frota e dos custos
As informações compiladas pela NTU indicam um aumento significativo de demanda em 12 cidades que adotaram a tarifa, chegando a 371% em Caucaia (CE). É um desafio conciliar esse aumento com o pagamento de um serviço com garantia de qualidade. Por isso, as cidades devem fazer projeções do aumento de demanda e realizar ajustes em linhas e na frota conforme necessidade. Para isso, precisam também contar com recursos assegurados (veja o próximo item).
A falta de planejamento tende a comprometer a qualidade e a sustentabilidade do serviço. Um exemplo é Palmas, que implementou a política abruptamente durante a transição do sistema de bilhetagem eletrônica, resultando em superlotação dos ônibus.
Assegurar fontes de receita além da tarifa
Ampliar a operação para responder ao aumento de demanda eleva o custo do sistema. Caso não haja previsão de receitas extratarifárias, a pressão recai sobre o orçamento municipal, disputando recursos com outros setores prioritários, como saúde e educação.
Segundo estudo da NTU, das 25 maiores cidades que adotam a tarifa zero, 19 arcam com os custos com recursos do orçamento municipal. Cinco cidades estruturaram fundos específicos. Algumas dispõem de recursos extratarifários assegurados. É o caso de Maricá, que financia o sistema com royalties do petróleo (um uso inteligente para a compensação pela exploração de uma fonte energética com tantas externalidades negativas).
Cidades que cogitem adotar a tarifa zero podem considerar a taxação das externalidades do transporte individual motorizado, que na forma mais simples pode passar pela cobrança do estacionamento em áreas públicas. A cidade de Vargem Grande (SP), por exemplo, conta com um fundo composto por recursos da exploração comercial de terminais, espaço publicitário em abrigos dos pontos de ônibus, multas de trânsito e uma taxa paga por empresas no lugar do vale-transporte.
SUM propõe universalizar acesso
Inspirado no SUS, o Sistema Único de Mobilidade Urbana (SUM) é uma proposta da sociedade civil para viabilizar a tarifa zero evitando possíveis efeitos negativos. Articula políticas nos três níveis federativos e prevê novas fontes de recursos combinadas à remuneração segundo critérios de qualidade. Propõe que financiamento se dê a partir de diferentes contribuições, taxas e fundos, como taxação da gasolina, alíquota associada ao IPTU, taxação do congestionamento, entre outras.
Avaliar mudança em fórmula de remuneração
Uma boa prática aplicada por cidades que implantaram a tarifa zero é a adoção da remuneração por quilômetro rodado. Há indicativos de que esse modelo de remuneração pode reduzir o custo do subsídio municipal, uma vez que muitos dos novos passageiros atraídos pela gratuidade tarifária tendem a utilizar linhas que até então rodavam abaixo da capacidade. Em Caucaia, por exemplo, enquanto o aumento da demanda foi de mais de 371% e o aumento da frota foi de 46%, o aumento do custo foi de 30%.
Considerar impacto em outros sistemas e municípios
Em especial em grandes cidades e em regiões metropolitanas, é importante considerar os impactos que a tarifa zero dos ônibus municipais teria na arrecadação de outros serviços, como metrôs, trens e ônibus de cidades vizinhas. Além disso, há relatos de que cidades que implantaram tarifa zero atraíram habitantes e empresas de municípios lindeiros, um efeito que também precisa ser considerado.
Realizar estudos de impacto abrangentes
Há muitos indicativos sobre impactos da tarifa zero, mas poucos estudos abrangentes e robustos sobre os casos implantados no Brasil. Será importante a realização de estudos amplos, que analisem o “antes” e o “depois” da adoção da política e ofereçam evidências sobre os efeitos da política em diferentes sistemas de transporte, na migração modal do transporte ativo e do transporte motorizado individual para o público, nas finanças de outros setores, na segurança pública e no orçamento municipal em cidades com portes e características diversas, entre outras análises relevantes. Para a realização dos estudos, no entanto, é preciso contar com dados robustos (veja abaixo).
Disponibilizar dados e informações
Grande parte das informações sobra a tarifa zero foi colhida em divulgações noticiosas do poder público que promulgou a política. E muitas prefeituras, especialmente em cidades menores, ainda falham em fornecer informações básicas, como horários atualizados, linhas ofertadas, quilometragem percorrida e custos operacionais. Essa ausência de dados não apenas prejudica a percepção de qualidade por parte dos usuários, mas também gera desconfiança sobre a aplicação dos subsídios públicos e a efetividade da medida.
A disponibilização de informações claras sobre a operação do transporte público, por outro lado, permitiria conhecer o real impacto da tarifa zero e avaliar a viabilidade financeira da política. E dispor de dados que demonstrem a efetividade da tarifa zero como ferramenta de inclusão social e dinamização da economia local tende a fortalecer o apoio à continuidade da política.
Combinar com melhores práticas e inovações
A tarifa zero é uma entre várias práticas que têm sido implantadas por cidades ao redor do mundo para fomentar a mobilidade sustentável e o acesso a oportunidades. Será valioso que gestores tenham a disposição política de testar outras inovações que visem à qualificação do serviço, como a implantação de faixas dedicadas aos ônibus, novas regulamentações que permitam uma maior flexibilização dos serviços de modo a garantir que a demanda seja atendida de forma mais satisfatória e eficiente, e mesmo o levantamento de boas práticas em setores para além do transporte.
Outros materiais têm sido lançados conterndo recomendações para adoção da tarifa zero. O levantamento da NTU utilizado de referência neste artigo também traz algumas orientações. O Idec e a Coalizão Mobilidade Triplo Zero também publicaram um guia com 10 passos para prefeitos incluírem a tarifa zero em seus planos de governo.
Um debate importante
Tão importante quanto a modicidade tarifária é a qualidade do serviço. Na Pesquisa CNT de Mobilidade da População Urbana 2024, o preço elevado da tarifa ficou em quinto lugar entre os principais motivos para as pessoas abandonarem o transporte público, atrás de conforto, flexibilidade de rotas e horários e o elevado tempo de viagem. Ou seja: nenhuma medida de promoção do acesso pode deixar de lado a garantia da melhoria contínua da qualidade, sob o risco de intensificar a deterioração do serviço e a manutenção apenas dos passageiros que não dispõem de alternativa.
Nada indica que a tarifa zero seja um remédio para todos os males, e sobram pontos de atenção e cautela. Mas a discussão que essa onda está suscitando já é uma vitória, ao reforçar a necessidade de políticas que assegurem tarifas mais justas e serviços acessíveis para todos. As cidades que consideram implementar a tarifa zero devem lançar mão das melhores práticas disponíveis para construir um futuro de valorização efetiva do transporte coletivo, em que os ônibus sejam escolhidos pela sua qualidade, e não apenas pela gratuidade.