
Nova NDC do Brasil: o que a meta revela sobre a transição da economia
O Brasil está entre os países que se anteciparam ao prazo de fevereiro de 2025 e apresentaram uma nova meta climática durante a COP29, em 2024, realizada em Baku, Azerbaijão. O país submeteu sua nova Contribuição Nacionalmente Determinada (NDC) com o compromisso de reduzir as emissões de Gases de Efeito Estufa (GEE) de 59% a 67% até 2035, em comparação a 2005.
A meta foi apresentada em um intervalo que vai de razoável a insuficiente. Reduzir as emissões em 67% até 2035 (em comparação a 2005) pode colocar o Brasil no caminho para a neutralidade climática até 2050, que é o objetivo de longo prazo, enquanto uma redução de apenas 59% até 2035 é uma contribuição aquém do necessário para o mesmo objetivo.
A NDC do Brasil de 2024 é um documento descritivo que inclui uma meta agregada de redução de emissões para 2035 e medidas concretas que o país implementará nos próximos dez anos. Além de ser o principal instrumento pelo qual os países podem contribuir para o Acordo de Paris, a NDC tem impacto significativo na orientação estratégica para o desenvolvimento nacional. A NDC tem uma função relevante para apoiar os países no combate à tripla crise planetária – do clima, da biodiversidade e da poluição –, o que exigirá investimentos de uma ampla variedade de fontes, gerando enormes transformações sociais e econômicas.
Neste artigo analisamos o texto completo da nova NDC do Brasil e do Primeiro Relatório Bienal de Transparência (BTR1, na sigla em inglês), submetido em dezembro de 2024 à Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre a Mudança do Clima (UNFCCC), e apresentamos considerações para escolhas conscientes em relação ao esforço dos setores no país para chegar em 2035 na trajetória correta rumo a neutralidade de carbono até o meio do século.
Quanto o Brasil progrediu em ambição?
A NDC do Brasil de 2024 representa uma progressão de ambição na contribuição do país para o Acordo de Paris, considerando o ciclo de cinco anos do período anterior proposto para o Brasil. Comparando o montante de emissões máximas determinadas pela NDC anterior com o da atual, houve um aumento no esforço de mitigação. A meta anterior estabelecia emissões de 1,32 GtCO2e em 2025 e 1,2 GtCO2e em 2030, representando uma redução de aproximadamente 100 MtCO2 ao longo de cinco anos. Para o período de 2030 a 2035, também com duração de cinco anos, a proposta atual visa reduzir as emissões em um intervalo que varia de 150 MtCO2e a 350 MtCO2e.
O que mostram os dados e quanto o país pode emitir na próxima década
A partir da NDC do Brasil de 2024 ficou estabelecido que o orçamento de carbono do país deve ficar entre 0,85 e 1,05 GtCO2e até 2035, ou seja, as emissões nacionais de todos os setores precisarão estar limitadas a esse teto nos próximos 10 anos. O dado oficial mais recente, presente no BTR1, mostra que o país emitiu 2 GtCO2e em 2022. Portanto, é necessária uma redução de 0,95 a 1,15 GtCO2e nas emissões anuais a partir de 2035.
É interessante analisar o esforço da mitigação que o Brasil terá que fazer por meio da perspectiva do orçamento de carbono disponível para cada setor. A contabilidade de orçamento de carbono é uma forma de gestão de emissões de GEE por setores e está fundamentada em um balanço líquido intersetorial. Assim, setores podem ter orçamentos com tendências anuais crescentes enquanto outros são decrescentes ou até negativos. Este balanço de contabilidade deve ser considerado anualmente entre os setores e, no caso do Brasil, tem que estar condizente com a trajetória de longo prazo para a neutralidade climática em 2050.
A NDC do Brasil de 2024 dá o objetivo final até 2035, mas não revela quais foram os orçamentos de carbono setoriais utilizados para estabelecer a trajetória dos próximos 10 anos. Esse é um assunto muito debatido neste ano durante a elaboração do Plano Clima, pois a contabilidade utilizada para a próxima década reflete a expectativa de implementação de políticas nacionais.
Os setores e suas projeções de emissões até 2035
Para entender como o Brasil poderia direcionar seus esforços para alcançar a meta mais ambiciosa para 2035, nós analisamos os possíveis orçamentos de carbono setoriais e as projeções existentes para a próxima década.
O princípio da gestão dinâmica do orçamento de carbono é transformar a economia e a sociedade partindo da alta intensidade de emissões de carbono para um cenário de baixa intensidade que enfrente a pobreza e a desigualdade. Ao apresentar um olhar setorial para o orçamento de carbono, o país consegue identificar e traçar as rotas necessárias para compatibilizar desenvolvimento socioeconômico e ação climática.
A discussão sobre as projeções e cenários de emissões de GEE ainda está ocorrendo nos fóruns setoriais do Plano Clima, e os dados conclusivos não estão disponíveis. Entretanto, com estimativas de outras fontes e projeções de dados setoriais, como o plano decenal de expansão de energia 2034, podemos gerar uma reflexão acerca dos cenários de orçamento de carbono para os próximos 10 anos. Isso ocorre especialmente nos setores de uso do solo e energia, para os quais há estudos que foram usados na análise abaixo.
Os dados oficiais mais recentes publicados no BTR1 em fevereiro de 2025, mostram que o Brasil emitiu 2 GtCO2e em 2022. A NDC do Brasil de 2024 menciona diferentes políticas públicas setoriais como forma de alcançar o objetivo principal de limitar as emissões a 0,85 GtCO2e até 2035.
Em 2022, 70% das emissões do Brasil foram no setor de uso da terra, mudança no uso da terra e florestas (LULUCF, na sigla em inglês) e agropecuária, sendo 39,5% devido a LULUCF associados a desmatamento e conversão de terras. O Observatório do Clima (OC) calculou o impacto de um cenário com eliminação do desmatamento em todos os biomas a partir de 2030 e a recuperação de todo o passivo ambiental do país, de 21 milhões de hectares segundo o Código Florestal, até 2035, levando ao crescimento de vegetação secundária. Se aplicadas com sucesso, essas políticas públicas poderiam gerar a captura de cerca de 505 MtCO2eq em 2035. Portanto, é um setor com oportunidades de geração de emissões negativas para o saldo líquido de carbono.
Já no setor de energia, a tendência é de aumento das emissões. O Plano Decenal de Expansão de Energia 2034 (PDE 2034) projetou as emissões considerando o crescimento esperado da demanda, a expansão da infraestrutura e a evolução tecnológica. No cenário de referência, prevê-se um aumento no consumo de energia, impulsionado principalmente pelos setores de transporte e indústria. As projeções do PDE 2034 indicam um aumento de emissões de aproximadamente 85 MtCO2e, passando de 458 MtCO2e em 2024, para 543 MtCO2e em 2034.
Então, assumindo a projeção do OC que o setor LULUCF terá uma redução significativa de emissões e o setor de energia chegará a um pico 20% acima do atual, segundo o PDE 2034, não há espaço no orçamento de carbono para os setores da indústria, agropecuária e de resíduos. Em outras palavras, para o Brasil alcançar a meta NDC para 2035, esses setores deveriam manter o padrão de emissões atual.
O que as metas significam para os setores agropecuário e industrial
Embora as informações existentes permitam fazer uma estimativa de projeção setorial para 2035 em relação ao setor LULUCF e energia, há setores em que essa definição não está clara e ainda será discutida. É o caso de agropecuária, processos industriais e resíduos.
Comparando a NDC anterior com a NDC de 2024, não há mudanças significativas nas políticas formuladas para o setor agropecuário. A principal mudança foi no acréscimo do Programa de Recuperação de Pastagens Degradadas (PNCPD), que prevê a recuperação e conversão de até 40 milhões de hectares de pastagens degradadas em sistemas de produção sustentáveis que integrem práticas agropecuárias e florestais. A expectativa é que a integração do PNCPD com políticas como Política Nacional de Recuperação da Vegetação Nativa (Planaveg) e os Planos de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento (PPCDs) seja um mecanismo para alavancar a redução das emissões associadas ao setor agropecuário reduzindo a pressão pelo desmatamento de novas áreas e ao mesmo tempo uma medida de incentivo a implementação de sistemas de produção sustentáveis que contribuam para resiliência climática do setor.
A trajetória de emissões de GEE do setor agropecuário é crescente desde 1990, com aumento de cerca de 55MtCO2e entre 2016 e 2022. Em 2022 o setor emitiu 622 MtCO2e, sendo 65% advindos do subsetor fermentação entérica de bovinos. Entre 2005 e 2022, as emissões de metano no setor agropecuário permaneceram relativamente constantes, apesar do aumento de 15% na população bovina, devido a ganhos de eficiência produtiva. Isso resultou em uma redução de 11% nas emissões de metano por cabeça de gado. No entanto, as emissões totais de metano no Brasil aumentaram entre 2016 e 2022 passando de 19 MtCH4 para 21 MtCH4, com 74,8% dessas emissões alocadas ao setor agropecuário. Nesse contexto, é importante dar atenção ao custo de abatimento do metano, que é geralmente muito superior ao custo de abatimento da restauração florestal ou de alternativas de eficiência energética. Ainda, há limites naturais de redução das emissões residuais deste gás que tem um potencial de aquecimento muito maior que o CO2.
Para o setor agropecuário crescer mantendo o nível atual de emissões de GEE até 2035 será necessário continuar na busca e implementações de manejos sustentáveis para melhorias expressivas na eficiência produtiva livre de desmatamento.
Para o setor de processos industriais, a NDC 2024 indica um conjunto de medidas que apostam na industrialização verde e na regulação de emissões por meio do mercado de carbono. O alcance do orçamento de carbono em 2035 demandaria a manutenção das emissões deste setor em 102 MtCO2e, segundo o BTR1. Historicamente, as emissões do setor de produtos e processos industriais cresceram de 93 MtCO2e em 2016 para 102 MtCO2e em 2022. Deste total, a indústria metalúrgica lidera nas emissões com participação em 51%, enquanto o setor mineral contribui com 32% do total de 2022.
Desconsiderando as emissões pelo setor LULUCF, a contribuição do setor IPPU para a emissão nacional aumentou de 8% para 8,3% levando a uma emissão adicional de 8 MtCO2e. A expectativa da retomada do processo industrial sem aumento de emissões de GEE dependeria de uma diminuição de intensidade de carbono do PIB (que já está entre as mais baixas do mundo). Atualmente a intensidade de carbono na economia, que se refere às emissões na produção e no uso de energia por PIB, está em 0,14, segundo o PDE 2034 (enquanto China e Estados Unidos da América tem, respectivamente, 0,40 e 0,22). Diminuir esta intensidade demandaria medidas de mudança nos processos industriais dos setores energo-intensivos da indústria: cimento, aço, químicos, papel e celulose, vidro e alumínio, concomitante ao aumento do PIB. Para maior parte destes subsetores da indústria são necessárias medidas de transição energética para o aquecimento dos processos industriais que substituem combustíveis fósseis por biocombustíveis, além da eficiência energética. O custo de implementação destas medidas para o abatimento de carbono é significativo. A importância econômica da indústria para geração de empregos e transformação da atividade produtiva de baixo carbono é fundamental e é preocupante o impacto do custo da transição e seu efeito multiplicador na economia.
Para uma análise mais aprofundada dos setores agropecuário e processos industriais ainda é necessário aguardar a informação de cenários e projeções do governo federal para o Plano Clima, esperadas ainda em 2025. Com essas informações será possível julgar as escolhas de alocação de orçamento de carbono setorial, analisar os custos de oportunidade intersetoriais e estimar os impactos socioeconômicos.
Transversalmente aos setores produtivos indicados, há prioridade na indicação de incentivos econômicos e fiscais, coordenados no Plano de Transformação Ecológica, e pela reforma do marco legal setorial da transição energética. Ainda será preciso desenvolver estratégias complementares e mais ambiciosas para alcançar a neutralidade de carbono em 2050, por exemplo, com medidas de captura e estocagem de carbono.
Prioridades para o sucesso da implementação da NDC
A questão estratégica que se coloca é: qual deve ser a distribuição das fatias do orçamento de carbono aos setores para que as emissões do país sejam limitadas ao teto estabelecido para 2035? Considerando o objetivo principal de desenvolvimento socioeconômico, que a redução das emissões deve ser orientada por medidas de menor custo, qual setor deve ter reservado o orçamento maior ou crescente de emissões de GEE para não penalizar o crescimento econômico? Qual é o balanço possível entre os setores e ao longo do tempo?
A tomada de decisão sobre os cenários de alocação do orçamento de carbono setorial precisa de critérios claros e transparentes, pois implica em externalidades que têm alto custo social. A definição desses critérios deve considerar não apenas as questões ambientais, mas também os aspectos socioeconômicos, como a distribuição equitativa dos esforços entre setores, a viabilidade técnica das medidas de mitigação e o impacto sobre populações vulneráveis. Além disso, é essencial integrar análises de custo-benefício e priorizar soluções que promovam cobenefícios, como a geração de empregos em setores de baixo carbono, a melhoria da qualidade de vida e o combate à desigualdade.
A análise setorial a partir da NDC 2024 e do BTR1 mostra que o compromisso está baseado em um conjunto de medidas viáveis, com a maior ambição possível, mas otimista frente aos desafios da capacidade de governança, financiamento e de implementação das políticas públicas.
Mesmo com a lacuna de dados de cenários e projeções, é possível dizer que o Brasil tem potencial para mudar significativamente seu perfil de emissões ao longo da próxima década. O país pode deixar de ser um emissor de GEE devido a mudanças de uso e cobertura da terra se conseguir reduzir fortemente o desmatamento, restaurar passivos ambientais passando a ter maiores emissões predominantemente pelos setores produtivos, especificamente, por agropecuária, consumo energético industrial e de transportes. Nesse sentido, a atualização da NDC em cinco anos, assim como a formulação da estratégia de longo prazo para 2050, deve considerar um país de características bem diferentes das NDCs anteriores, quando a emissão era majoritariamente devido ao setor LULUCF.
Em relação ao processo necessário para a implementação da NDC, o balanço do orçamento de carbono para 2035 é um grande desafio para as políticas nacionais. A viabilidade da meta depende da correta tomada de decisão na alocação do orçamento de carbono entre os setores. Uma visão unidimensional de mitigação que penalize um setor com altos custos de abatimento de carbono pode impactar em uma crise econômica que, na contramão da NDC, atrase a transformação econômica produtiva de baixo carbono. Neste contexto, são prioridades:
- Alinhar os objetivos de mitigação e adaptação com a promoção do desenvolvimento socioeconômico e combate à desigualdade, considerando os critérios socioeconômicos na escolha das alternativas de mitigação.
- Fortalecer a governança climática interministerial e multinível para que ações climáticas possam estar cada vez mais integradas no desenho e implementação de políticas públicas setoriais.
- Acelerar emissões negativas por meio de captura e estocagem de carbono para compensar emissões residuais não mitigáveis. A redução do desmatamento em todos os biomas e a restauração das florestas nativas têm baixo custo de abatimento relativo do carbono e resultam na estratégia mais custo-efetiva de gestão de carbono no curto prazo.
- Elaborar uma estratégia de neutralidade de carbono para o setor produtivo agrícola e industrial com tecnologias de captura e estocagem de carbono de forma a compensar as emissões residuais destes setores, para além dos esforços de mitigação.
- Aumentar as fontes renováveis na matriz energética é uma opção estratégica no sentido de provocar um efeito multiplicador de redução da intensidade de emissão transversal nas atividades econômicas. Somada a medidas de eficiência energética, seriam as principais medidas para diminuir progressivamente a intensidade de carbono do PIB.
- Avançar na mitigação e gestão do orçamento do metano, alinhado a uma estratégia de orçamento entre os gases e setores.
- Indicar o custo de abatimento das medidas de mitigação a serem consideradas, assim como análises de custo-benefício e de custos de oportunidade sobre as alternativas de mitigação de forma a promover uma análise integrada intersetorial.
Em conclusão, a perspectiva da alocação do orçamento de carbono permite uma referência para avaliar as oportunidades de mitigação setorial e orientar a implementação de medidas com menor custo social e externalidades positivas. Sem isso, não há eficiência, tampouco coordenação entre as ações setoriais.
É preciso que se adote uma abordagem de gestão dinâmica do orçamento de carbono, de forma flexível e adaptável ao contexto econômico e fiscal. É necessária a ampla participação social no processo de tomada de decisão para compreensão adequada dos custos de oportunidade que distribuirão custos e benefícios diferentemente na sociedade.
A alocação do orçamento de carbono deve ser baseada em princípios de melhor conhecimento científico disponível, governança participativa e alinhada com os objetivos mais amplos de desenvolvimento sustentável. Isso promove a responsabilidade entre os setores, minimiza conflitos e estimula uma transição coordenada para uma economia de baixo carbono.