
Em meio a incêndios recordes, Brasil vai enfrentar seus desafios climáticos?
Um cenário distópico de muita fumaça, calor sufocante e um estranho pôr do sol alaranjado tomou conta do horizonte do Brasil nas últimas semanas, atravessando centenas de cidades encobertas pela poluição e milhares de hectares de florestas em chamas. Nas manchetes dos jornais o grito engasgado de alerta soou: alguma coisa está fora da ordem.
Que as mudanças climáticas estão se acelerando no planeta, todos que acompanham a literatura científica já sabem. Ondas de calor, secas severas e inundações cada vez mais frequentes levam a desastres urbanos, perda de biodiversidade, afetam a economia e causam danos à saúde humana. A Organização Mundial da Saúde concluiu que a poluição do ar, agravada por esses eventos extremos, é responsável por mais de 6 milhões de mortes a cada ano – 13 óbitos por minuto, muitas causadas por doenças respiratórias e cardiovasculares. E a tendência é de piora na poluição nos grandes centros urbanos com esses eventos climáticos severos mais frequentes. Estudos da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo apontam para um aumento de 20% nas internações hospitalares e de 20% na mortalidade por causas naturais, especialmente de crianças e pessoas acima de 65 anos nos próximos 14 anos.

A perspectiva é preocupante. Análises preliminares do Global Forest Watch, plataforma que monitora o desmatamento de florestas em tempo real por meio de imagens de satélite, mostram que a atual temporada de incêndios no Brasil tem tudo para ser a pior desde o início dos registros. Usando dados do MapBiomas, fica evidente um aumento de 74% na área afetada por incêndios na comparação entre janeiro e agosto deste ano e a média dos mesmos meses no período entre 1985-2023. Foram mais de 45 mil alertas de incêndios neste ano até o momento -o pior registro para o período desde 2001.
O calor contínuo e a alteração no regime de chuvas, turbinados pelas mudanças climáticas, estão tornando queimadas, enchentes e deslizamentos de terra recordes o “novo normal”. Estudo global sobre incêndios florestais publicado em agosto deste ano pelo WRI confirma o fenômeno, que afeta hoje pelo menos o dobro da cobertura arbórea do que há duas décadas – resultando em quase 6 milhões de hectares a mais de perda de cobertura arbórea por ano do que em 2001, uma área aproximadamente do tamanho da Croácia.
No Brasil, as mudanças climáticas têm trazido estiagens mais prolongadas. Vivemos hoje a maior seca em 70 anos no País, segundo o Cemaden (Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais), do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação. Ao menos 1.400 cidades foram afetadas em nível extremo ou severo. A seca atingiu mais de 80% do território brasileiro, segundo relatório do Monitor das Secas. O rio Madeira, um dos mais importantes afluentes do rio Amazonas, chegou a apenas 41 centímetros na estação de Porto Velho (RO) - a menor marca desde 1967, segundo o Serviço Geológico do Brasil. Por outro lado, estamos enfrentando também períodos de chuvas mais intensos. As inundações no Rio Grande do Sul são a dolorosa lembrança recente.
Brasil arde em chamas
Dado o histórico de leniência do Poder Público na última década, não surpreende a escalada de incêndios criminosos que se avolumaram neste ano: houve dias com o registro de mais de 5 mil pontos de fogo, num período de baixíssima ocorrência de raios –diferentemente do que acontece em outros países, como o Canadá, em que a maioria dos incêndios tem causas naturais. E, como fumaça não respeita fronteiras, os incêndios com origem no Brasil já causam problemas nos vizinhos Argentina, Paraguai e Bolívia. Esses países também sofrem com focos de fogo originados em seus territórios. A Bolívia declarou emergência nacional com os piores incêndios em 14 anos e determinou o fechamento de escolas em algumas cidades.
Vivemos em um cenário de pavor, nas palavras do climatologista Carlos Nobre, cientista de referência do nosso País. Colhemos hoje a somatória dos efeitos das mudanças climáticas em aceleração, incêndios criminosos e a manutenção de um modelo de desenvolvimento agrícola em que parte dos produtores rurais ainda aposta (à margem de uma fiscalização insuficiente e falha) em desmatamento e fogo.
O sistema produtivo do País também está ameaçado com a falta de chuvas e o calor intenso. Até mesmo o agronegócio arde com as chamas. No Estado de São Paulo, os prejuízos do setor com os incêndios foram estimados em R$ 2 bilhões, segundo a Secretaria de Agricultura e Abastecimento. O aumento do consumo de energia e a dependência de chuvas para a oferta de eletricidade produzida nas usinas hidrelétricas (que ainda são um diferencial econômico e socioambiental competitivo do País) levaram o Ministério de Minas e Energia a avaliar cenários de risco para os próximos anos. A “folga técnica” do sistema diminuiu. Até o horário de verão (no qual os brasileiros adiantavam seus relógios em 1 hora durante o verão para economizar energia elétrica) tem o seu retorno cogitado. Na região metropolitana de São Paulo, onde mais de 20 milhões de pessoas de 39 cidades conurbadas conviveram anos atrás com crise severa no abastecimento de água em suas casas, não há no momento risco iminente de racionamento. Mas o nível das represas vem abaixando em ritmo crescente, também preocupando as autoridades para as próximas temporadas de seca.
Maior metrópole da América do Sul, São Paulo registrou nesta semana em que a crise explodiu a pior qualidade do ar no mundo por cinco dias consecutivos, segundo ranking do site IQAir, que monitora 120 cidades grandes em tempo real. Brasília, a capital do poder no País, completa nesta semana cinco meses sem chuva e sofre com enormes queimadas, levando centenas de pessoas aos hospitais com problemas respiratórios. Mas os sinais das consequências das mudanças climáticas já estavam dados em todos os biomas. O Cerrado, pressionado pela produção agropecuária, vê ameaçada sua biodiversidade e a qualidade das águas de 8 das 12 maiores bacias hidrográficas brasileiras que cortam seu território. A maior bacia do Pantanal registra níveis hídricos alarmantes e pode ter a pior seca da sua história. E a Amazônia, principal regulador de chuvas do País, corre risco de colapso irreversível a partir de 2050, segundo estudo publicado este ano na revista Nature – ainda que tenha havido redução relevante no ritmo de desmatamento no último ano.

Ambição de liderança
O Brasil, que será sede da COP30 (a conferência do Clima da ONU), em Belém (PA), no final de 2025, tem buscado se posicionar como líder da agenda ambiental global nos próximos anos. Mas as chamas que atravessam o País jogam fumaça nas ambições políticas e diplomáticas do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que tem sofrido questionamentos sobre a coerência entre seu discurso e sua agenda efetiva de ação climática.
Há claros avanços nesta administração federal em relação ao período de governo do ex-presidente Jair Bolsonaro, tanto na inflexão do discurso (o negacionismo climático deu lugar a uma narrativa de valorização científica) quanto na alocação de verbas. Um bom exemplo ilustrativo é o valor gasto no ano passado, início da atual gestão, com prevenção e controle de incêndios florestais: R$ 63,5 milhões, alta de 26,2% na comparação com 2022 (último ano da gestão Bolsonaro).
No enfrentamento da articulação política, no entanto, o País emitiu sinais dúbios nestas semanas em que acordou para a urgência da situação.
O governo federal anunciou a criação da Autoridade Climática, mas com atraso de um ano e meio e num movimento descoordenado com o restante da administração. Ministros já deram versões diferentes para os objetivos da autarquia. E alguns ambientalistas prefeririam que o governo federal reforçasse a autoridade de órgãos que já atuam há anos na área, como o INPE, o Ibama e o ICMBio, providenciando melhor estrutura e orçamento mais condizente com os desafios.
O presidente Lula levou seus ministros para ver in loco as regiões mais atingidas e exigiu respostas efetivas para a onda de seca, calor e incêndios florestais – eventos que repercutiram até mesmo na fala do chefe do Clima na ONU, que defendeu uma ação global contra as queimadas na Amazônia. Mas o governo tem postergado o prazo para a elaboração do plano de prevenção e combate a incêndios no Pantanal e na Amazônia, exigido pelo STF (Supremo Tribunal Federal). A decisão é de março deste ano, mas somente agora, em agosto, já no período de seca e de fogo, a Advocacia-Geral da União (AGU) pediu ao tribunal a prorrogação do prazo para finalizar o plano.
No Dia do Cerrado deste ano, celebrado em 11 de setembro, já no meio da crise climática, o governo federal instituiu o Comitê Nacional de Manejo Integrado do Fogo, que terá representantes da sociedade civil, incluindo quilombolas e povos indígenas. Novamente as críticas de cientistas e dos movimentos ambientalistas apontam para a demora em criar esses mecanismos de prevenção a incêndios florestais. E vão além, questionando as prioridades estratégicas do governo -que hoje balança entre dois universos de difícil conciliação.
Há divergência claras dentro da Esplanada dos Ministérios sobre o projeto para aumentar a exploração de petróleo no País, principalmente na margem equatorial (a 500 quilômetros da foz do rio Amazonas), num momento em que são necessárias políticas públicas de descarbonização. Também é visto com preocupação o projeto de asfaltamento do trecho de uma rodovia no meio da Amazônia (a BR-319, que liga Manaus e Porto Velho), que poderia gerar uma explosão do desmatamento na região e consequentemente na emissão de gases de efeito estufa. São planos de governo contraditórios com a narrativa oficial que almeja essa posição de liderança global no enfrentamento da crise do clima.
Os governos estaduais e municipais Brasil afora não são poupados das críticas. Também se equilibraram nos últimos dias em uma fina corda bamba entre promessas atrasadas e ações de emergência. As dificuldades na articulação e na implementação de políticas públicas de longo prazo de enfrentamento às mudanças climáticas desafiam as administrações brasileiras nos últimos anos. Intensificaram-se na última década com a crescente polarização política e o fortalecimento de velhas agendas dentro do Congresso Nacional, mais alinhadas com sistemas econômicos produtivos resistentes a se adaptar a uma economia de baixo carbono e a um mundo que precisa de uma transição justa e acelerada.
Mesmo as políticas e ações em prol do clima anunciadas recentemente pela administração federal correm o risco de desidratação financeira e de questionamento de sua viabilidade legal no Legislativo. É o caso inclusive da recém-anunciada Autoridade Climática, que já sofre contestações antes mesmo de chegar ao Congresso. A pressão no Legislativo pode ser melhor percebida ao se examinar os mais de 30 projetos em tramitação que tornariam mais difícil o controle do desmatamento e jogam contra a viabilidade dos planos para as mudanças climáticas. Situação delicada para um governo que não tem maioria no Congresso e depende de negociações voto a voto.
Dadas essas dificuldades, um dos caminhos possíveis para uma articulação política de longo prazo no País seria a criação de um sistema de informações e dados sobre clima integrando as redes federal e subnacionais. Também deveria haver mecanismos legais para evitar o contingenciamento de serviços climáticos na Lei de Diretrizes Orçamentárias da União.
Desenvolvimento e descarbonização
O desafio da conciliação entre descarbonização e desenvolvimento é central no mundo atual e vem ganhando cada vez mais espaço nos fóruns globais econômicos, como o G20, que neste ano ocorrerá no Brasil. O fato é que os países em desenvolvimento precisam de um volume alto de recursos (as contas variam entre US$ 1 e 2,4 trilhões por ano) para atingir suas metas de clima e natureza, até quatro vezes mais do que há hoje disponível.
Em novembro, na COP29, a conferência de clima das Nações Unidas que vai acontecer em Baku (no Azerbaijão), diplomatas de todo o mundo tentarão chegar a um acordo sobre a nova meta global de financiamento climático. Há forças antagônicas influenciando essa concertação, com mais ou menos ambição para mudanças efetivas.
A nova NDC (meta de redução de emissões de gases de efeito estufa) que o Brasil apresentará ao mundo está sendo discutida neste momento. Qual será o tamanho da contribuição do país que, de olho nos dividendos políticos da COP 30 em 2025, busca desde já se posicionar como uma liderança na agenda ambiental global? O Brasil tem o potencial de puxar a fila das grandes economias, com números ambiciosos para 2030 e 2035 que mantenham a trajetória rumo à neutralidade de carbono em 2050. Mas para se manter na direção de um novo paradigma o País precisa alinhar sua prática ao discurso e integrar a adaptação como um pilar do desenvolvimento econômico e social para garantir a resiliência do país frente às mudanças climáticas. É necessário também assegurar uma governança multinível efetiva e responsiva aos desafios que só crescerão e trabalhar para que haja financiamento público suficiente.
Para um planeta em que as coisas parecem estar fora da ordem, é a hora para o Brasil buscar convergências e acelerar o passo para que possamos nos adaptar a essa era de extremos.