O ano de 2020 será lembrado pela pandemia da Covid-19, mas também como de grandes incêndios. As florestas estão queimando muito mais neste ano, e não só no Brasil, mas em outros países. Análises recentes da Nasa, a agência espacial norte-americana, e do Sistema Copernicus, da União Europeia, indicam que os incêndios que ocorrem na Austrália (Nova Gales do Sul), no Ártico Siberiano, na costa oeste dos Estados Unidos e no Pantanal brasileiro foram os maiores em 18 anos de coleta de dados.

Esses fenômenos são correlatos e reflexo da ação humana, das mudanças no clima ou uma soma das duas coisas. O ano de 2020 não acabou ainda, mas no bioma Amazônia, o maior do país, os incêndios entre janeiro e setembro já superavam os registrados em todo o ano de 2019, como mostra o quadro a seguir:


<p>gráfico mostra dados de focos de incêndio</p>

Levantamento indica que o número de incêndios ocorridos nos primeiros nove meses de 2020 já superaram os registrados em todo o ano de 2019 em três biomas: Amazônia, Pampa e Pantanal, com a maior alta. Até setembro, somente Cerrado e Caatinga tiveram menos incêndios no comparativo com o ano passado, e a Mata Atlântica se manteve praticamente igual. Os números em preto no centro do gráfico mostram quantos % dos focos de calor no Brasil ocorreram em cada bioma neste ano.


Para entender as implicações dos incêndios florestais na perspectiva científica, ambiental e de saúde pública, o WRI Brasil organizou neste mês, em parceria com o Instituto Clima e Sociedade (iCS), o webinar Queimadas: Um Problema Coletivo, o segundo da série Os Desafios da Qualidade do Ar no Brasil.

A diretora de Ciência do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam Amazônia), Ane Alencar, o cientista e pesquisador do clima e de mudanças climáticas Carlos Nobre e o secretário municipal de Meio Ambiente de Rio Branco, Aberson Carvalho, foram convidados como painelistas para trazer análises aprofundadas sobre a origem dos focos de incêndio, como a gestão municipal está lidando com a situação e quais as soluções possíveis para esse cenário.

“O aspecto relevante é que todos esses incêndios estão ocorrendo, na maioria, pela ação humana indireta, que é o aquecimento global. Cerca de 120 mil anos atrás, não aconteceria isso porque a origem do fogo vinha de forma natural pelas descargas elétricas (raios)”, comentou Nobre.

Para o cientista, a ação humana vem perturbando tanto os ecossistemas, e em uma velocidade tão grande, que os animais e as plantas não estão tendo tempo suficiente para adaptarem suas estruturas a um planeta mais quente, decorrente do aumento da temperatura média.

Como resultado imediato, os períodos de seca tornaram-se mais longos e a vegetação local mais propensa a queimar. “Temos a combinação perfeita de ‘ingredientes’ para a propagação de incêndios. Com um clima mais quente e mais seco, a vegetação perde muita água ou morre e se torna um ‘combustível’ em potencial”, acrescentou.

“No caso do Brasil e, principalmente, na Amazônia, a fonte de ignição é que faz a diferença”, explicou Ane Alencar, “porque é uma interferência humana na floresta, que é tropical e úmida. Se não houvesse uma fonte de ignição, ou seja, se não tivéssemos quem acendesse o fósforo, a floresta não estaria queimando e não teríamos incêndios com as proporções atuais”.

Os incêndios na Amazônia ocorrem por três motivos principais: (1) predomina na região o desmatamento para novas pastagens, (2) o uso do fogo para renovação de pastos antigos e (3) o fogo que escapa dos dois primeiros e acaba entrando na floresta, dando início a um foco de incêndio. “Este último está ficando mais comum, mostrando que não estamos controlando as fontes de ignição. É fundamental que a gente controle o fósforo aceso pelas pessoas que estão queimando as florestas e as pastagens da região”, alertou a diretora do Ipam Amazônia.


<p>gráfico mostra Distribuição dos focos de calor e área desmatada (Deter) nas principais categorias fundiárias do bioma Amazônia</p>

Distribuição dos focos de calor e área desmatada (Deter) nas principais categorias fundiárias do bioma Amazônia (gráfico: IPAM Amazônia)


Impactos podem ser observados no sistema público de saúde

As consequências das queimadas são imediatas com a devastação da fauna e flora locais e igualmente visíveis na questão da qualidade do ar. Os prejuízos não se limitam às regiões do entorno, mas migram sem controle para regiões distantes vários quilômetros da origem dos focos de incêndios. Isso ocorreu com a cidade de São Paulo em 2019, que ficou escura em pleno dia, envolvida por uma massa de nuvem e umidade decorrente da poluição e das fumaças das queimadas que aconteciam ao norte do país.

“Em Rio Branco, tivemos dias em que toda nossa área urbana ficou coberta por fumaça de incêndio local e por outras vindas de municípios, de Estados e até de países vizinhos”, contou o secretário Carvalho. Dados da Secretaria Municipal de Meio Ambiente de Rio Branco (Semeia) mostram que apenas três dos 22 municípios do Acre não registraram piora na qualidade do ar no comparativo entre 2020 e 2019. Até setembro deste ano, pelo menos 12 permaneceram por mais de 30 dias com concentrações de material particulado (MP 2.5) – substância ultrafina que afeta profundamente o sistema respiratório – acima do recomendado pela Organização Mundial de Saúde (OMS), que é de 25 ug/m3. Plácido de Castro, cidade no interior do Estado, registrou um recorde de 38 dias com alta concentração de MP 2.5.


<p>Dados do Acre mostram o número de dias que cada município permaneceu com índices de poluição do ar superiores aos valores de segurança da Organização Mundial da Saúde (gráfico: reprodução/Prefeitura de Rio Branco)</p>

Dados do Acre mostram o número de dias que cada município permaneceu com índices de poluição do ar superiores aos valores de segurança da Organização Mundial da Saúde (gráfico: reprodução/Prefeitura de Rio Branco)


As queimadas em Rio Branco – que têm como origem o desmatamento, a expansão da fronteira agrícola e pecuária e a ocupação do território – geram custos sociais muito grandes, que estão sendo agravados pela pandemia da Covid-19. “Temos as queimadas que influenciam diretamente na qualidade de vida das pessoas, e também vivemos um momento de pandemia e crise sanitária com aumento de doenças respiratórias e dificuldade de acesso ao tratamento”, complementou Carvalho. Em julho deste ano, Rio Branco identificou um aumento de 65% nos casos de doenças respiratórias, segundo a Secretaria Municipal de Saúde de Rio Branco (Semsa).

“Sabemos que as queimadas mudaram muito o nosso Estado, e os problemas também vieram como resultado da desarticulação da política no âmbito do Pacto Federativo, da União, dos Estados e municípios. Precisamos retomar e integrar estratégias onde cada ente federado tenha um papel e uma responsabilidade a cumprir”, comentou o secretário, acrescentando que foram 1.231 atendimentos de fiscalização e de controle ambiental feitos pela prefeitura e pela secretaria até agora – seis vezes mais que os 200 registrados cinco anos atrás.

“Entendemos que o fogo faça parte do sistema produtivo do Brasil e de outras partes do mundo, mas este não é o caso da Amazônia. O que temos visto aqui é uma falta de pulso forte para realmente combater o fogo e o desmatamento ilegal na região. Se de fato houvesse vontade política, não teríamos metade dos incêndios e dos desmatamentos que temos visto em 2019 e 2020 na região”, disse a diretora do Ipam Amazônia.

Com dados do Prodes (monitoramento por satélites do desmatamento na Amazônia Legal, cujas taxas anuais de desmatamento são usadas pelo governo brasileiro para o estabelecimento de políticas públicas) e do Deter, ela estima que 2020 deve fechar com 14 mil quilômetros quadrados de áreas desmatadas.

Alencar listou algumas medidas que poderiam combater o fogo e o desmatamento na Amazônia e dividiu em dos blocos:

  • Comando e controle inteligente do fogo que podem reduzir os desmatamentos à metade (cerca de 50% ocorrem em terras públicas e são ilegais); Destinação das florestas públicas para conservação e produção florestal sustentável.

  • Consolidar áreas protegidas e apoiar economias de base florestal; Apoiar com incentivos econômicos a conservação de ativos privados; Apoiar economicamente e prover assistência técnica para a produção sustentável nos assentamentos.

“Nós precisamos fazer alguma coisa pelo planeta que nunca seres humanos fizeram antes. O planeta corre um enorme risco futuro. Se a temperatura chegar a 3ºC mais quente (já estamos a 1,5ºC), esses incêndios que ocorrem no mundo se tornarão um padrão climático e será impossível manter a vegetação no verão e em períodos secos. Não sabemos o que vai acontecer com a Amazônia ou com o Cerrado se não tivermos sucesso em barrar o superaquecimento do planeta”, concluiu Nobre.