A quarta Conferência sobre Financiamento para o Desenvolvimento (FFD4), realizada em Sevilha pelas Nações Unidas com a presença de mais de 50 líderes mundiais e 15 mil representantes de 150 países, destaca a necessidade de uma nova arquitetura financeira internacional, capaz de lidar com os desafios globais do século 21 em um contexto institucional ainda fundado nas premissas da economia do século 19.

É preciso repensar o financiamento do desenvolvimento à luz das mudanças estruturais da economia mundial, da crise climática e das desigualdades sociais profundas e preparar a sociedade para um novo paradigma. A arquitetura financeira internacional, moldada no século 20, revela-se incapaz de sustentar a transição para uma economia de baixo carbono, resiliente e justa. O consenso aqui não é mais sobre se precisamos de uma reforma, mas como e em que velocidade ela pode ser implementada.

Hoje, o diagnóstico é claro: as instituições multilaterais financeiras estão desatualizadas frente ao novo paradigma climático. Falham tanto na gestão do risco climático sistêmico, quanto na promoção de fluxos financeiros robustos, previsíveis e justos. As iniciativas para redução de emissões, transformação econômica e adaptação climática carecem de financiamento estável. Os fluxos existentes são insuficientes, irregulares e reforçam ciclos perversos que restringem a prosperidade de alguns países.

No encontro, os países firmaram o Compromisso de Sevilla, para criar uma nova arquitetura de cooperação internacional e financiamento para o desenvolvimento, que tem um déficit estimado em US$ 4 bilhões por ano. O acordo propõe medidas para aliviar a pressão da dívida sobre países vulneráveis e ampliar o uso de instrumentos financeiros inovadores, como conversões de dívida e suspensão de pagamentos em crises. Além disso, busca tornar o sistema financeiro global mais inclusivo, com maior transparência, coordenação internacional, e participação da sociedade civil. No entanto, seu impacto dependerá da transformação desses compromissos em mandatos vinculantes, instrumentos operacionais e ações concretas e mensuráveis por parte das instituições e atores relevantes nos próximos anos.

As grandes questões em aberto sobre financiamento do desenvolvimento

Entre as grandes discussões deste ano, destacam-se alguns pontos sobre como colocar em prática o compromisso multilateral acordado entre os países signatários:

  • Como evoluirá o mercado de seguros frente à intensificação dos desastres climáticos? Será ele viável sem apoio público massivo ou se tornará inacessível para os mais vulneráveis?
  • Quanto mais será necessário investir via bancos públicos para tornar os países resilientes – e como esses investimentos serão mobilizados diante das restrições fiscais?
  • Como alavancar recursos privados com os escassos e intermitentes recursos públicos disponíveis, quando o risco climático é elevado e a previsibilidade é baixa?
  • Quais os desafios da implementação das chamadas plataformas país de investimentos climáticos? Como organizar e priorizar um pipeline de projetos financiáveis e como atrair investimentos em volume e velocidade?
  • Como reformar os critérios de classificação de risco dos países, que hoje penalizam nações em desenvolvimento e aumentam o custo do capital para ações de interesse global?
  • Como construir um novo sistema tributário internacional, que seja justo e promova a redistribuição da riqueza entre países, permitindo que o desenvolvimento de uns não ocorra à custa do empobrecimento de outros?

Essas são perguntas sem respostas simples que exigem esforços institucionais para reformas profundas. As soluções não virão de instrumentos isolados, mas de mudanças sistêmicas.

O chamado de Sevilha: reformar a arquitetura financeira global

O compromisso de Sevilha vai além de novos aportes financeiros. Ele exige novos instrumentos financeiros, instituições mais responsivas e, sobretudo, reformas domésticas estruturantes concomitantes às globais. Na conferência, discute-se que os países elaborem seu próprio arcabouço nacional de financiamento ao desenvolvimento, promovendo a integração de instrumentos fiscais, monetários e financeiros, numa visão estratégica e sinérgica.

A lógica é clara: não basta ter fundos públicos e oferta de crédito concessional se o sistema como um todo não for capaz de alavancar investimentos de outras naturezas. Um país pode possuir mecanismos de crédito público para agricultura sustentável, por exemplo, mas se não houver um mercado de capitais funcional, mecanismos de garantia robustos ou políticas monetárias que favoreçam o custo do capital, o esforço será infrutífero para a escala e velocidade necessárias. O volume para atender às necessidades de adaptação e mitigação climática é estimado entre 2% e 5% do PIB por ano – uma magnitude que exige financiamento híbrido e inovador: concessional, equity, venture capital, seguros, debêntures, blended finance.

O Brasil entre protagonismo internacional e fragmentação interna

O Brasil tem desempenhado papel ativo nas instâncias multilaterais, articulando posições comuns tantos nos BRICS quanto no G20 e na agenda climática global. Tem contribuído com o debate sobre financiamento climático justo, inclusive impulsionando o Plano de Transformação Ecológica (PTE) como um esforço para estruturar políticas integradas e transversais. Temos avançado com a regulamentação de um mercado de carbono, com uma reforma tributária mais eficiente e progressiva e a criação de um pipeline de projetos numa plataforma de investimentos. Além disso, o país conta com instituições financeiras sólidas – como o Banco Central e bancos de desenvolvimento – e mecanismos relevantes como o Plano Safra e o Fundo Clima.

Contudo, este protagonismo contrasta com a realidade interna de um sistema fragmentado e reativo. O país ainda opera sem um arcabouço integrado de financiamento ao desenvolvimento, no qual os avanços são frequentemente descontinuados por crises fiscais, políticas e institucionais. Também há lacunas de eficiência e efetividade nos investimentos agravadas pelas contradições entre os objetivos das políticas públicas e a implementação.

O caso do Fundo Clima é emblemático. Criado em 2009 e operacionalizado a partir de 2011, o fundo sofreu com a recessão de 2014, foi praticamente desativado entre 2019 e 2022, e só foi reativado em 2023. Mesmo assim, esse renascimento não veio acompanhado de uma reforma sistêmica capaz de eliminar subsídios regressivos, incentivar investimentos de baixo carbono ou precificar adequadamente o risco climático.

Outra marcante contradição está no financiamento do sistema elétrico nacional: o Brasil não consegue promover uma reforma estrutural no setor, mantendo um modelo disfuncional que resulta em um dos custos de energia mais altos do mundo. Essa realidade compromete a competitividade da economia de baixo carbono, afeta a inflação estrutural e desincentiva investimentos sustentáveis no país. Trata-se de um enorme paradoxo para uma das maiores potências em fontes renováveis do planeta.

Por um arcabouço transformador

A pergunta que permanece após a conferência é: como construir um arcabouço de financiamento para o Brasil do século 21 não apenas para mitigar os danos, mas para redesenhar sua economia sob a ótica da resiliência, justiça e inovação?

A conferência em Sevilha expõe a urgência de um novo contrato de modelos de financiamento global – mas também lança luz sobre os bloqueios domésticos que cada país precisa enfrentar. No caso do Brasil, o desafio não é apenas criar fundos ou instrumentos, mas sim reorganizar o sistema fiscal, monetário e institucional para que funcione de forma sinérgica, estratégica e com justiça intergeracional e interterritorial.