
Carina Pimenta, secretária nacional de Bioeconomia: “A bioeconomia precisa ser não apenas sustentável, mas também inclusiva”
Esta entrevista faz parte do especial Que Bioeconomia é Essa?
Carina Pimenta se tornou secretária nacional de Bioeconomia a convite da ministra Marina Silva em 2023. Administradora de empresas e mestre em desenvolvimento social, em 2018 Carina cofundou a Conexsus e atuou como diretora executiva da organização até assumir a secretaria ligada ao Ministério do Meio Ambiente. Antes disso, Carina atuou com inovação e empreendedorismo e na gestão do Fundo Vale. Nesta entrevista, Carina dá maiores detalhes sobre a elaboração do Plano Nacional de Bioeconomia e sobre as discussões do G20 sobre bioeconomia.
WRI BRASIL: Pra você o que é economia? Qual é o conceito que você defende de economia?
CARINA PIMENTA: Bioeconomia é um conceito em formação. Então, acho que tem várias visões e a gente vai tentando buscar uma convergência, entender as características das diferentes regiões.
Eu defendo o conceito como está na Estratégia Nacional publicada em 5 de junho, que traz um contorno conceitual. Ali tem coisas que eu considero fundamentais do conceito. Algumas delas são também inovações entre as visões e conceitos que já foram desenvolvidos e aquilo que nós estamos pensando para a política pública brasileira.
Então, a bioeconomia pra nós tem algumas características muito importantes. Primeira, é que num país como o nosso, florestal e rico em biodiversidade, rico em povos, em comunidades e em biomas com diferentes aptidões econômicas, a bioeconomia precisa ser enxergada a partir dessa riqueza natural, desse capital natural. Portanto, tem que ser uma bioeconomia que está em sintonia com o uso sustentável desses nossos ativos, do capital natural e sobretudo da biodiversidade. E que ela seja um elemento que valorize essa diversidade sociocultural que mantém a natureza como ela está. Não podemos dissociar essas coisas.
Então, a bioeconomia dentro do que nós propusemos na estratégia, tem como característica principal olhar para o uso sustentável, a restauração, a manutenção e a conservação da nossa biodiversidade. É um olhar muito específico, uma inovação quando comparamos aos conceitos internacionais, de não incluir apenas o desenvolvimento científico como motor da bioeconomia, mas também o conhecimento tradicional como parte integrante desse conhecimento que vai mover a bioeconomia.
Nós temos um olhar, como país, que tem uma política clara de redução das desigualdades, de combate à pobreza. Temos muito claramente que a bioeconomia precisa ser não apenas sustentável, mas também inclusiva com os diferentes povos e comunidades envolvidas, que fazem uso, mantêm e protegem as nossas florestas.
São características que nós pensamos e que eu defendo. Outra questão relevante é que a gente não trabalha a visão de bioeconomia apenas a partir da atividade econômica. Ela é central, já que não existe economia sem atividade econômica, mas pra nós ela tem características de um modelo de desenvolvimento, porque traz vários elementos que integram a forma como eu vejo aquela atividade econômica. Essas são coisas importantes para nós na formulação da política.
WRI BRASIL: O decreto que criou a Estratégia Nacional de Bioeconomia foi longamente negociado. Como foi essa negociação?
CARINA PIMENTA: Para quem olha de fora, um ano e meio parece um tempo longo. Mas para quem sabe a importância de se negociar bem esses fundamentos, eu acho que foi até rápido, porque é um conceito em bastante elaboração. Foi construído a várias mãos. Assim como o Ministério do Ambiente teve um papel de articulador e coordenador dessa discussão no âmbito do governo, foi necessária e de fundamental importância a participação dos diferentes ministérios e atores envolvidos nos segmentos da bioeconomia. O Ministério do Desenvolvimento Indústria Comércio (MDIC) participou muito ativamente, assim como o Ministério da Fazenda, que incluiu no plano de Transformação Ecológica um eixo específico sobre bioeconomia. Na política industrial, o MDIC também trouxe na missão cinco da Política Industrial o tema da bioeconomia. Então foi um amadurecimento dos diferentes ministérios na inclusão e na consolidação de uma visão convergente de bioeconomia.
O Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) foi fundamental, e estamos trabalhando muito próximos, sobretudo no G20. Ele já tinha uma estratégia para a bioeconomia no passado e agora está com essa nova roupagem, olhando como que se dará os próximos passos da estratégia de inovação e pesquisa. O Ministério da Agricultura teve muito envolvido também nas discussões sobre como a gente vai fazer esse trabalho de sustentabilidade nos sistemas de produção. O Ministério do Desenvolvimento Agrário, também por sua participação muito ativa na questão da sóciobioeconomia, nessa parte das economias da sóciobiodiversidade mais ligadas aos grupos extrativistas, agricultores familiares. Foram 17 ministérios ouvidos. Povos indígenas, Igualdade Racial, Desenvolvimento Social, Turismo, Relações Exteriores. É uma articulação grande de governo para que você possa chegar num decreto que traga a essência do que nós entendemos e que seja capaz de formular a estratégia nacional.
O próximo passo é a formulação de um plano. E esse plano vai contar com uma Comissão Nacional de Bioeconomia, para criar um espaço de participação da sociedade na construção. O plano que materializa as prioridades da Estratégia Nacional de Bioeconomia em metas, em compromissos, em resultados concretos, precisa ser feito também a muitas mãos. Faremos esse engajamento com diferentes atores da sociedade para que a gente possa ter um plano que traduza as diferentes bioeconomias, os diferentes potenciais, e coloque o Brasil num lugar de destaque por entender que a diversidade biológica, social, cultural e econômica também se traduz numa diversidade de bioeconomias e estratégias de desenvolvimento.

WRI BRASIL: Quais as expectativas para o Plano Nacional de Bioeconomia?
CARINA PIMENTA: O plano tem que ter algumas características. Primeiro, tem que ser muito debatido e dialogado. Acredito que ele ainda vai passar por muitos processos. Tem que ser um plano abrangente dessas diferentes bioeconomias do país e suas especificidades. Também precisa ser um plano regionalizável, que vai dialogar com as diferentes realidades. Se não, nossos compromissos sociais e de redução das desigualdades não vão se materializar. Ele deve ter setores, prioridades, mas exige muito diálogo para construir. Nossa visão é que ele seja a nossa linha de base, o nosso centro, e que seja também um documento orgânico, porque a discussão precisa amadurecer, precisa se qualificar, e acho que é parte desse processo de aprendizado enquanto país.
WRI BRASIL: Neste ano, o G20 tem uma iniciativa de bioeconomia. Como tem sido a experiência de representar o país nesse fórum e levar a visão brasileira de bioeconomia?
CARINA PIMENTA: Está sendo uma discussão muito interessante, porque é a primeira vez que países, e estamos falando de 80% do PIB mundial, se juntam para discutir bioeconomia.
Está sendo uma discussão ampla, de muito reconhecimento das estratégias nacionais. Você tem núcleos diferentes que fazem uma leitura de bioeconomia para suas estratégias nacionais. Eu acho que foi muito importante o Brasil ter trazido essa discussão, porque o Brasil dialoga muito bem com diferentes segmentos dessas estratégias.
No Brasil tem biotecnologia avançada, como a gente mostra nos nossos biocombustíveis. O Brasil tem uma biodiversidade enorme, um sistema de gestão sobre o acesso e uso da biodiversidade que é um sistema inovador e serve de referência para várias indústrias na área de químicos, fármacos, cosméticos. O Brasil traz a questão da inclusão, que é um tema que para os países mais desenvolvidos não aparece dessa forma – e para o Brasil é uma premissa do trabalho. Isso traz outros países, como a África do Sul, a Índia, que também tem a questão da redução das desigualdades, de criação de um ciclo econômico de prosperidade. Então isso engaja.
Eu acho que estamos formulando lá os princípios. O que vai ser mais interessante dessa discussão é consolidar uma visão convergente, respeitando as autonomias dos Estados, mas conseguindo enxergar para onde caminha essa bioeconomia. Para o uso de biotecnologia avançada, por exemplo, são várias indústrias revolucionando no uso dos recursos biológicos. Há preocupação muito grande com a sustentabilidade desses sistemas de produção, dessas indústrias que você fomenta a partir dessas inovações.
Portanto, se a gente vai desenvolver economicamente os limites do uso dessa natureza, isso tem que fazer parte da estratégia. São todas formulações que estão sendo muito interessantes no G20 e nos impulsionam a pensar, a partir dessa discussão, como levar isso para outros fóruns. Nas grandes convenções que tratam de clima, descarbonização, na Convenção da Biodiversidade, que tem o Marco Global da biodiversidade. Também possibilidades de acordos regionais, acordos entre países, para fomentar essas bioeconomias a partir de estratégias comuns de cooperação.
WRI BRASIL: Como os princípios de bioeconomia debatidos no G20 podem influenciar o Plano Nacional de Bioeconomia?
CARINA PIMENTA: No G20 estamos discutindo princípios norteadores exatamente porque a gente acha muito difícil fazer uma discussão entre países no nível do conceito. Gastaríamos muito tempo e talvez não fossemos chegar muito longe. Já no Brasil, é mais fácil você fazer essa formulação, porque o Brasil tem seus subsetores, suas definições prioritárias que devem ser desdobradas nesse conceito que orienta a política.
O que é interessante de fazer essa discussão nos dois níveis é que a gente avança imensamente, qualifica muito o debate, porque a gente se inspira em experiências que estão acontecendo em outros países, os outros países também se inspiram nas nossas e se abrem muitas áreas para cooperação. Países florestais podem cooperar na área de comércio, de desenvolvimento tecnológico. Isso é algo muito importante porque a bioeconomia não vai se desenvolver apenas a partir da escala de um país. Ela vai precisar de mercados globais, recursos financeiros globais, para que ela possa caminhar e acelerar. Então, acho que essa ponte foi muito bem aberta dentro do G20. Isso ajuda muito o Brasil a pensar o rumo e o posicionamento dos seus setores estratégicos na bioeconomia.

WRI BRASIL: Você pode dar um exemplo concreto de como essa cooperação pode ocorrer no futuro?
CARINA PIMENTA: O fato de o Brasil ter hoje uma estratégia publicada é o primeiro passo para isso. O Brasil apresenta para outros países, para o sistema financeiro, os contornos dessa bioeconomia. É óbvio que a cooperação entre países pode surgir de várias formas. Por exemplo, nós estamos com um termo de cooperação com o governo britânico no tema da bioeconomia, houve um anúncio muito importante do presidente Lula e do presidente Macron sobre investimento em bioeconomia para a Amazônia. Os países da região amazônica, no âmbito da Cúpula da Amazônia, discutiram muito a importância de trabalhar juntos numa economia da floresta que pode ser traduzida na bioeconomia.
Existem muitos investimentos sendo feitos pelos organismos multilaterais nesse tema. Porém, quando a gente traduz princípios internacionais, isso ajuda a modelar quais são esses investimentos.
WRI BRASIL: Nesta questão dos princípios da bioeconomia, como entra a questão climática?
CARINA PIMENTA: A bioeconomia pode ser uma estratégia de descarbonização. Temos estudos aqui no Brasil que mostram que investimentos em uma bioeconomia avançada em biomateriais, bioquímicos e bioenergia tem essa capacidade. O Brasil já conta com uma matriz de baixa emissões no campo energético. Quando a gente olha para os princípios discutidos no G20, estão completamente ligados aos princípios do Acordo de Paris. A estratégia europeia se desenvolveu muito dessa forma de bioeconomia circular, uma bioeconomia de descarbonização. Esse contorno que a gente tá fazendo atende ao Acordo de Paris e também estamos olhando para a convenção de biodiversidade, porque são duas das três crises globais que temos.
WRI BRASIL: Há preocupações sobre a inclusão de alguns setores na bioeconomia. Um exemplo são os bioecombustíveis, por serem produzidos a partir de uma monocultura como a cana. Como a senhora vê isso?
CARINA PIMENTA: Primeiro, os biocombustíveis fazem parte de uma visão de bioeconomia. O decreto não cita nenhum setor. Ele fala de segurança alimentar, de segurança hídrica, de segurança energética. Então, o tema de biocombustíveis é parte da agenda de bioeconomia. O que nós temos que discutir é como a bioeconomia ajuda esse setor que já existe e já faz parte de uma estratégia de transição energética do país.
O que a gente tem que ver é como a bioeconomia pode impulsionar para que ele seja mais positivo em natureza, mais positivo em biodiversidade. Tem formas de pensar que a gente precisa discutir na construção do plano. Eu não excluo nenhum segmento da bioeconomia, desde que a gente consiga impulsioná-lo em linha com o que a gente prioriza como diretrizes, como princípios norteadores. Não precisamos que toda economia seja parte da bioeconomia, mas a gente vai trabalhar dentro desses conceitos de positivo em natureza, de baixas emissões.
WRI BRASIL: E qual o futuro da bioeconomia?
CARINA PIMENTA: Eu acho que a gente está vivendo um momento de transformação nas discussões sobre a nossa economia, sobre a nossa relação entre sociedade e meio ambiente. Bioeconomia é um caminho que se mostra bastante promissor e bastante decisivo dessa transformação. Isso não só no Brasil como no mundo. A nossa capacidade de conseguir construir uma economia baseada em natureza é que vai determinar o sucesso da bioeconomia ou não, porque senão será mais uma economia. A visão que a gente busca é que ela realmente seja um caminho de ressignificar essa relação entre meio ambiente e economia. Há muitas convergências e é aí que a gente vai se apoiar. A bioeconomia pode sim significar um resultado enorme, não apenas econômico, mas sobretudo sociocultural. O Brasil, um país florestal, que é uma liderança na agenda verde, tem a capacidade e a possibilidade de conseguir propor uma agenda de desenvolvimento que é sustentável não só na palavra, mas que constrói caminhos concretos para isso acontecer. A bioeconomia pra mim é um deles. A gente enxerga que uma nova forma de revolução, de transformação, vem com isso e o Brasil tem todo potencial para liderar isso. Não é uma coisa de um líder. Porém, se um conjunto de lideranças apostarem nessa transformação é possível que a gente construa uma economia de referência para a sustentabilidade, para as nossas florestas, nosso capital natural. Isso é o que buscamos.