
André Corrêa do Lago, embaixador: “O G20 é um grupo absolutamente central para a questão da bioeconomia"
Esta entrevista faz parte do especial Que Bioeconomia é Essa?
André Corrêa do Lago é diplomata desde 1983 e, atualmente, é Secretário do Clima, Energia e Meio Ambiente do Ministério das Relações Exteriores. Com formação em Economia e grande interesse por arquitetura, tem uma longa atuação na área ambiental, tendo ocupado o cargo de negociador chefe do Brasil para Mudança do Clima e Desenvolvimento Sustentável, inclusive na Rio+20.
André Corrêa do Lago esteve à frente do esforço brasileiro de levar o tema da bioeconomia ao G20, que chegou a um consenso e adotou os 10 princípios de Alto Nível sobre Bioeconomia, o primeiro documento multilateralmente acordado dedicado especificamente a esse tema. Nesta entrevista, concedida antes do acordo sobre os princípios, ele explica o processo e os benefícios de um entendimento comum sobre bioeconomia entre os países.
WRI BRASIL: Qual é a importância de debater o conceito de bioeconomia e qual a intenção do Brasil ao colocar esse tema em pauta?
ANDRÉ CORRÊA DO LAGO: O G20 é um grupo muito especial por reunir países desenvolvidos e países em desenvolvimento. Várias pessoas veem no G20 uma ponte entre o G7 e o BRICS, que de um modo geral, são vistos como se separando no momento. Então o G20, de certa forma, pode ser uma ponte onde há tendências de separação.
A questão da bioeconomia está cada vez crescendo mais, mas ela está bastante mal definida, porque não tem um debate sobre bioeconomia estruturado internacionalmente. O Brasil lançou essa Iniciativa de Bioeconomia do G20 porque é um grupo de países bastante variado e que tem circunstâncias bastante diferentes, mas que juntos representam 80% do PIB mundial e 80% das emissões mundiais.
Então, é um grupo absolutamente central para a questão da bioeconomia. E o segundo motivo é porque nós achamos importante que essa discussão fosse lançada na presidência de um país em desenvolvimento, que tem circunstâncias excepcionais de avançar na bioeconomia.
WRI BRASIL: Quais as maiores dificuldades para chegar numa comum entre os países sobre o conceito de bioeconomia? Quais os interesses envolvidos e o que difere a visão dos países em desenvolvimento dos países desenvolvidos?
ANDRÉ CORRÊA DO LAGO: O primeiro exercício que nós fizemos foi dentro do próprio governo brasileiro, porque dentro de todos os países há uma divisão sobre o que quer dizer bioeconomia, seja na Alemanha, seja nos Estados Unidos, seja no Brasil ou na África do Sul. Se você perguntar para o Ministério da Agricultura ele vai achar uma coisa, o Ministério da Ciência e Tecnologia vai achar outra, assim como o Ministério de Minas e Energia. Então, antes de lançarmos a proposta no G20, nós fizemos um exercício interno no Brasil, com mais de 10 ministérios e o Banco Nacional de Desenvolvimento (BNDES) para montar uma proposta que incluísse essa diversidade de visões sobre bioeconomia dentro do próprio Brasil.
E nós ficamos muito surpreendidos que em duas boas reuniões nós conseguimos um texto que representava o que todos os ministérios viam como sendo bioeconomia. Ao lançarmos isso internacionalmente, nós nos demos conta que os demais países tinham o mesmo tipo de desafio, mas que havia uma forte possibilidade de um entendimento sobre princípios básicos. Ou seja, nós não pretendemos definir bioeconomia como uma definição de dicionário. Queremos concordar com princípios básicos que, para chamarmos algo de bioeconomia, cumpram uma lista de prioridades.
WRI BRASIL: Quais seriam esses princípios? O que o Brasil defende?
ANDRÉ CORRÊA DO LAGO: Os princípios abordam temas sociais, temas econômicos, temas ambientais, temas de justiça. Então, a bioeconomia, se você perguntar para um especialista de um ministério, ele vai dizer uma coisa, que vai ser bastante diferente dos outros. O princípio é uma forma de nos encontrarmos. No fundo é mais fácil dizer o que não é bioeconomia, porque se ela não melhorar, por exemplo, a qualidade de vida das pessoas que estão envolvidas, não é. Se ela não contribuir para a redução das emissões dos países, também não é bioeconomia. Se ela não tem possibilidade de se expandir ou se ela não envolve certos temas essenciais de justiça social, também não deveria ser.
Todos os países do G20 são economias importantes e há grandes diferenças regionais que funcionam em certas regiões e não funcionam em outras.

WRI BRASIL: No caso brasileiro, que é um país altamente biodiverso, que tem vários biomas com diferentes vocações, há o dilema sobre o que incluir dentro da bioeconomia. Como esse tipo de polêmica tem sido equilibrada no G20 e é possível chegar num entendimento que satisfaça grupos que estão mais opostos neste momento?
ANDRÉ CORRÊA DO LAGO: Temos que justamente evitar que haja oposição. Por exemplo, vamos pensar em comunidades na Amazônia muito específicas, que trabalham com certos produtos, com a biodiversidade, e que querem utilizar certos conhecimentos tradicionais. A bioeconomia inclui desde esses conhecimentos tradicionais que permitem uma exploração sustentabilíssima de métodos agroflorestais, mas os biocombustíveis sustentáveis também são bioeconomia. O uso sustentável de alta tecnologia para desenvolver certos produtos também é bioeconomia. E, curiosamente, se você leva em consideração justamente as três dimensões da sustentabilidade, a ambiental, a social e a econômica, você encontra espaço para essa variedade de bioeconomias. Elas não são se contrapõem, elas simplesmente revelam perspectivas diferentes.
Você não pode considerar que São Paulo, por exemplo, não pode ter bioeconomia porque não tem florestas tropicais e não está concentrado nesse tipo de atividade. Então, eu acho que é um conceito que nós queremos que inclua, ou seja, que aproxime essas várias visões. E a parte de ciência e tecnologia tem sido muito interessante porque a gente tem feito um paralelismo entre alta ciência e conhecimentos tradicionais. Ou seja, não há uma hierarquização do que seria bioeconomia. É claro que se você tem uma visão muito conservacionista, a bioeconomia é uma coisa. Se você tem uma visão muito de alta tecnologia, a bioeconomia é outra. Mas nós estamos vendo que, surpreendentemente, a gente consegue juntar essas várias visões de maneira que elas sejam complementares e não excludentes.
WRI BRASIL: O que os outros países têm trazido para a discussão?
ANDRÉ CORRÊA DO LAGO: Os países do G20 têm economias com opções, não são obrigados a seguir uma certa direção porque são economias relevantes. Porém, com circunstâncias muito diferentes. Se você compara a África do Sul com a Alemanha, são muito diferentes. Os países desenvolvidos, como se sabe, têm uma opinião muitas vezes já formada ou excessivamente formada sobre o que os outros devem fazer. É meio inevitável que nessas discussões todo mundo tenha muito mais opinião sobre o que os outros devem fazer do que sobre o que eles devem fazer. Mas essa discussão, surpreendentemente, está avançando de maneira construtiva.
WRI BRASIL: Você pode contar então um pouco para a gente quais são os avanços? Como é que essas negociações estão acontecendo?
ANDRÉ CORRÊA DO LAGO: O G20 não é um órgão negociador como a Convenção do Clima, por exemplo, que cria leis que são internacionais. O G20 é muito mais de recomendação. Por outro Lado, o G20 também tem que cuidar muito para não achar que as soluções que funcionam para o G20 devam ser impostas para o resto do mundo.
Se esses princípios construídos no G20 puderem contribuir para que sejam incluídos, aí sim, em negociações internacionais, será importante. É interessante a gente usar o G20 para aquilo que ele pode fazer melhor. É um grupo de países que têm várias diferenças, mas que têm em comum o fato de serem já relativamente avançados e terem opções e oportunidades. Então, em princípio, o que o G20 diz deveria ser mais ousado ou, digamos, mais contemporâneo do que o que você espera de um acordo com 196 países.
WRI BRASIL: Como a bioeconomia pode fazer parte da estratégia brasileira para as próximas Conferências do Clima, extrapolando o G20?
ANDRÉ CORRÊA DO LAGO: O que o governo brasileiro está procurando fazer é um posicionamento muito coerente entre o que nós estamos fazendo no G20, o que vamos fazer no BRICS, que o Brasil também presidirá, assim como a COP30. E o processo da COP30 já começou. Não só porque tem a COP29 antes, mas porque na COP28 foi decidido que muitas funções seriam exercidas pelas três presidências COP28, COP29 e COP30), que são Emirados Árabes Unidos, Azerbaijão e Brasil. Então tudo isso está acontecendo ao mesmo tempo e nós estamos procurando dar uma coerência a tudo isso.
O nosso maior esforço é para assegurar que a gente use essas oportunidades da melhor maneira possível, explorando a diferença entre esses processos. O processo da COP é muito mais complexo, pois precisa de um consenso de 196 países. No G20 envolve países que têm visões muito diferentes, mas dentro de certa linha. No BRICS também vai ser uma coisa diferente, pois agora tem os novos membros do BRICS que entraram. Está sendo um imenso aprendizado para nós também, de ter que conseguir encontrar uma linha coerente no que o Brasil está propondo nessas três áreas.
WRI BRASIL: Por que é importante ter essa definição de princípios entre os países para apoiar um conceito bioeconomia?
ANDRÉ CORRÊA DO LAGO: Essa é uma pergunta essencial. Com os avanços da tecnologia e ao mesmo tempo a preocupação imensa de assegurar que todos as comunidades possam ter suas atividades tradicionais asseguradas, assim como a qualidade de vida das pessoas, nós estamos entrando num espaço de um certo risco relacionado a comércio e investimentos. Se nós tivermos um entendimento mais próximo do que é bioeconomia, poderemos evitar interpretações comerciais do que é ou não é bioeconomia. Também, eventualmente, iniciativas unilaterais de países julgando que isso não é bioeconomia e, portanto, fazendo taxação. Você sabe como está acontecendo, por exemplo, com relação à União Europeia, que para incentivar certas coisas que estão acontecendo dentro da União Europeia, está criando barreiras comerciais.
Outra questão muito complexa é em relação aos países que não têm opções, que estão em situação de dívida gravíssima, que não têm acesso a financiamento internacional e têm uma série de crises acumuladas. Não queremos que esses países sejam forçados, por exemplo, a mudar certas atividades que são perfeitamente legítimas e que eles podem continuar a manter.
Está se criando uma linguagem sobre bioeconomia para usar para uma coisa positiva, mas também para evitar que ela seja usada de forma deturpada. Por isso que eu acho muito importante as principais economias do mundo terem um acordo sobre certos princípios de bioeconomia.
Tudo pode ser bem feito, assim como pode ser mal feito. Tudo pode ser feito com altas emissões, tudo pode ser feito com baixas emissões. Carro elétrico, biocombustível, energia eólica, por exemplo, se você quiser, você pode fazer tudo isso bem e você pode fazer isso muito menos bem. Você pode fazer isso muito mais caro ou mais barato. E a gente tem que lembrar que as altas tecnologias podem ser extremamente atraentes, mas a maioria dos países não recebe financiamento para fazê-las.
WRI BRASIL: Quais oportunidades de financiamento e outras que podem surgir desse processo do G20?
ANDRÉ CORRÊA DO LAGO: Eu acho que a lógica que o Brasil está tentando transmitir tanto no G20, como no BRICS e na COP30, é a noção da urgência climática. Ou seja, nós temos uma janela razoavelmente curta, de alguns anos, nos quais nós temos que fazer o máximo possível para evitar que a temperatura ultrapasse 1,5°C. Dentro desse contexto de urgência, nós achamos que quanto melhor você puder definir o que pode ser uma bioeconomia, que por definição, tem que ser sustentável, mais você poderia acelerar investimentos nesse sentido. Se ficar um bate-boca sobre se é ou não é sustentável, se é ou não é bioeconomia, você vai atrasando investimentos e perdendo oportunidades nesses anos absolutamente chave para mantermos o aumento da temperatura em 1,5°C. Acho que essa discussão terá um impacto extremamente positivo para aumentar significativamente os investimentos nos países levando em consideração o clima.
Nós sabemos que de um lado tem a negociação do clima, com milhares de regras e com várias condições especiais e dentro da qual, por exemplo, estão sendo discutidos aqueles US$ 100 bilhões anuais de financiamento e fundos específicos dirigidos para as necessidades dos países em desenvolvimento. Por outro lado, sabemos que os países em desenvolvimento que estão no G20 já estão no estágio mais avançado de governança, de ciência, de academia. Nós temos tudo isso, por exemplo, no Brasil. São países com condições para certo tipo de investimento, mas há sempre uma discussão muito longa sobre se isso é sustentável, se não é sustentável. Então, se a discussão puder contribuir para uma primeira etapa, nós achamos que é muito importante, porque a questão do financiamento fora da convenção, ou seja, financiamento muito além dos US$ 100 bilhões, é um dos temas centrais do Brasil no G20.
Acreditamos que a discussão sobre a bioeconomia também vai ajudar a tomada de decisão, por exemplo, do Plano de Transformação Ecológica do Ministério da Fazenda, que é transversal no governo brasileiro. Também é um tema importante para o G20 que os planos nacionais sejam compatíveis com as metas climáticas (NDCs), que sejam compatíveis com o 1,5°C. Nós achamos que uma discussão aberta sobre bioeconomia ajudará muito para que você possa dirigir investimentos para setores que são considerados, de forma razoavelmente consensual dentre os países do G20, como bioeconomia.
Os países do G20 são os principais investidores e os principais receptores de investimentos, a realidade é essa. Então, se tivermos um entendimento entre nós, isso pode ajudar muito a definir melhor as economias que nós temos que apoiar nos próximos anos. Sempre respeitando o fato de que há uma diversidade imensa entre os países. Vamos ajudar a definir o que é essa economia mais sustentável, na qual nós temos que investir maciçamente, com vistas a ter um impacto sobre o clima, mas também sobre a qualidade de vida das pessoas, sobre a justiça dessa transição também, essa transição justa.