Ana Euler, diretora executiva de Negócios da Embrapa: "Da mesma forma que existem bioeconomias, existem agriculturas"
Esta entrevista faz parte do especial Que Bioeconomia é Essa?
Ana Euler assumiu o cargo de Diretora Executiva de Negócios da Embrapa em 2023. Engenheira florestal com mais de duas décadas de atuação apenas na Amazônia, ingressou na Unidade Embrapa do Amapá em 2008. Desenvolveu estudos em manejo florestal comunitário, governança e desenvolvimento territorial, cadeias de valor da sociobiodiversidade, serviços ecossistêmicos e políticas públicas. Também atuou como técnica especializada em Conservação da Amazônia no WWF-Brasil e foi diretora-presidente do Instituto Estadual de Florestas. Nesta conversa, Ana conta como a Embrapa está atuando pela bioeconomia.
WRI BRASIL: O que é bioeconomia?
ANA EULER: Aqui na Embrapa, eu prefiro seguir a lógica do governo brasileiro dentro da Iniciativa de Bioeconomia do G20 que, para além de querer discutir conceitos, discute princípios. Porque dentro da literatura científica tem pelo menos três grandes campos da bioeconomia, que é a bioeconomia biotecnológica, a bioeconomia de biorecursos e a bioeconomia bioecológica, que também chamamos de sociobioeconomia. A Embrapa trabalha com todas elas.
A gente tem programas de biotecnologia como a Embrapa Agroenergia, que trabalha fortemente com o setor sucroalcooleiro e com a prospecção não só de espécies, mas de inovações no campo da biotecnologia e da ciência avançada para que o nosso país continue uma liderança, uma vanguarda na pesquisa do setor, como somos hoje. Na agropecuária, principalmente para as grandes commodities, nosso trabalho está saindo da lógica de produtos para processos, como sistemas de integração lavoura-pecuária-floresta, toda a área de bioinsumos e outras. Olhando para os desafios de conservação e de restauração dos nossos biomas, a gente também trabalha com a agricultura voltada para a sociobiodiversidade, a sóciobioeconomia. Em 2022, a Embrapa lança uma primeira visão de vida de bioeconomia inclusiva pra Amazônia.
Quando a gente olha para os grandes desafios no Brasil, como reduzir desmatamento, alcançar emissões líquidas zero, mas com um pilar de redução de desigualdades e promoção da valorização, conservação e mesmo a restauração da biodiversidade, a gente tem que olhar para essas cadeias da bioeconomia na Amazônia. E aí eu falo com tranquilidade na Amazônia, porque eu tenho quase três décadas de trabalho lá. As respostas não são simples, são complexas. O Brasil é um país diverso, rico por sua diversidade, logo, complexo e também pela sua diversidade.
WRI BRASIL: Agropecuária é bioeconomia?
ANA EULER: Nós temos identificado através de mapeamentos mais de 100 milhões de hectares em diferentes estágios de degradação de pastagens. E o Brasil tem o compromisso assumido frente à ONU de desmatamento zero até 2030. Só que a gente sabe que o mundo está crescendo em termos de população, em termos de demanda de alimento. E o Brasil tem um diferencial incrível, porque tem a perspectiva de ampliar a sua produção de alimentos, inclusive em bases territoriais, sem avançar sobre a floresta ou ambientes naturais em qualquer bioma.
Então, hoje a gente tem tecnologia, processos e políticas públicas para indução de uma pecuária sustentável ou de uma agricultura sustentável. E isso é bioeconomia, porque quando você olha os indicadores de emissões da transição de áreas degradadas para sistemas de integração lavoura-pecuária-floresta, que abarcam uma série de tecnologias, como a de bioinsumos, você tem um ganho muito grande em redução de emissões e existem pesquisas da Embrapa que mostram que as emissões podem ser até mesmo negativas.
Então não tem como achar que a pecuária, num país que vive de uma economia de base agrícola, vai ficar fora, porque a gente ainda tem muito para avançar nesse sentido.
WRI BRASIL: Isso não seria a agricultura sustentável, já contemplada no Plano ABC+, em vez de bioeconomia?
ANA EULER: Aqui na Embrapa, quando a gente fala de sistema integração-lavoura-pecuária-floresta, um dos nossos desafios nos diferentes biomas é integrar com espécies nativas dentro desses sistemas. Essa foi uma discussão muito interessante do Grupo de Trabalho da Agricultura do G20, pois um dos grandes desafios de uma agricultura sustentável é a sustentabilidade dos solos e a regeneração da biodiversidade dos solos, que são tão importantes quanto o que está acima dele. O que vai diferenciar a contribuição para uma política de bioeconomia é o quanto esses sistemas, seja de produção de energia, de alimento, de fibras ou de produtos da floresta, compartilham desses princípios.
Princípios de conservação e regeneração da biodiversidade, de inclusão social e produtiva, de diversidade, de igualdade de gênero, de partilha justa e equitativa de benefícios decorrentes da utilização dos recursos genéticos e conhecimentos tradicionais. Quando a gente tá dizendo que a gente vai trabalhar com bioinsumos, estamos trabalhando a biodiversidade brasileira.
O debate sobre bioeconomia e o seu potencial deve levar em consideração as especificidades nacionais, regionais e, às vezes, até locais. No G20 isso foi muito discutido. Diferentes países têm diferentes potenciais para realizar a sua bioeconomia.
Da mesma forma que existe existem bioeconomias, existem agriculturas. A Embrapa trabalha a do açaí ao zebu. A produção de alimentos é algo que tem mais impacto e talvez o que possa trazer mais soluções para a transição energética e climática do Brasil. Quando a gente diz que os sistemas de produção de alimentos podem ser negativos no que diz respeito à fixação de carbono em vez de emissão, isso é possível. Mas precisa de ciência, tecnologia, políticas públicas, organização setorial, desde os grandes, mais organizados, até os pequenos.
WRI BRASIL: Como estimular a sociobioeconomia na Amazônia?
ANA EULER: Eu acho que na pequena agricultura e especialmente na região amazônica, onde eu tenho uma longa experiência, sozinho a gente não vai a lugar nenhum. Sabemos que o desafio para o desenvolvimento regional é conseguir organizar os agricultores, os povos e comunidades tradicionais, mesmo as populações indígenas, para que tenham um acesso mais rápido e efetivo às políticas públicas ou mesmo, às vezes, políticas privadas, de mercado.
Uma empresa nacional ou internacional, ela não se relaciona com famílias, ela se relaciona com organizações, cooperativas, algumas vezes associações. Então, para se gerar oportunidades de inclusão social produtiva, não adianta só o componente de pesquisa. Ele é fundamental, mas ele tem que estar associado a oportunidades, a políticas públicas, a organização da base produtiva, a educação básica, técnica, universitária.
Olha a revolução hoje que nós temos hoje com quilombolas, indígenas e agricultores familiares que passaram pela universidade, os institutos federais, e estão voltando para suas comunidades e fazendo a diferença, porque não precisam mais de intermediários para poder discutir tecnicamente e sentar numa mesa pra poder negociar.
WRI BRASIL: Muito do conhecimento tradicional ainda precisa ser trazido para a ciência mais acadêmica e tecnológica, dos não indígenas. Como a Embrapa pode fazer essa ponte e entre a ciência e o conhecimento que está lá no território?
ANA EULER: Na Amazônia como um todo a Embrapa tem nove unidades descentralizadas de pesquisa e algumas delas, como, por exemplo, no estado do Pará, são unidades que antecedem a própria existência da Embrapa. Então, nessa região a gente trabalha atualmente com mais de 50 cadeias produtivas e boa parte delas cadeias produtivas da sociobioeconomia. É um enorme desafio. A diretoria de Negócios, por exemplo, está sendo estruturada para receber uma gerência de inclusão socioprodutiva e digital. Queremos focar no fortalecimento da atuação da Embrapa em redes territoriais e sóciotécnicas. Trabalhar e trocar experiências e conhecimentos que são muito variados e diversos em relação ao trabalho que é desenvolvido com esses vários segmentos da agricultura familiar e dos povos e comunidades tradicionais. A gente tem experiências riquíssimas em cada unidade da Embrapa e tem que induzir cada vez mais o trabalho de inovação social.
Temos exemplos vários produtos que a gente trabalha como mel, castanha, açaí, cupuaçu, mandioca, camu camu, óleos essenciais. Essa cadeia de óleos aliás, para mim, é uma das grandes potencialidades da bioeconomia da Amazônia. A própria CNI já publicou estudo que diz que é uma das cadeias que mais agrega valor, que tem maior capacidade realmente de retornar, não só por repartição justa e equitativa pelo uso da biodiversidade e do conhecimento tradicional associado, mas porque, ao agregar valor para um produto mesmo intermediário dessa cadeia, você consegue reter a riqueza na região.
Temos uma experiência com mulheres lá na região lá do estuário do rio Amazonas, que fica a 12h de barco de Macapá que detêm o conhecimento tradicional secular sobre a produção de óleos, principalmente os óleos de andiroba e pracaxi. E aí é um conhecimento que vai desde identificar as árvores do campo, entender qual é o ponto de maturidade ideal para se colher esse fruto, como é que se faz toda a parte de beneficiamento, de fermentação e de produção do óleo, que é historicamente utilizado na farmacopéia da região e vendido em condições muito precárias no mercado local, praticamente sem agregação de valor. Esses óleos são altamente demandados pela indústria de cosméticos e de fármacos, só que para entrar nessa cadeia, precisa chegar num nível mínimo de qualidade, que deriva de boas práticas, que deriva de uma oportunidade de acesso a equipamentos e insumos. Nós fomos construindo com elas cada uma dessas etapas de produção para que aquele óleo artesanal, fermentado, pudesse ter condições mínimas de entrar nesses mercados.
WRI BRASIL: Está muito claro esse potencial da economia brasileira. Como que a gente faz que isso se multiplique pelo país e gere todos os benefícios almejados para o país como um todo?
ANA EULER: Primeiro é ter política pública para organizar e estruturar essa cadeia. Por exemplo, no caso dos óleos essenciais, para aquelas mulheres conseguirem escala, um dos grandes desafios foi entender que não dava para trabalhar só em unidades familiares. Não é fácil. É um trabalho de cooperativismo, associativismo e recursos para ajudar esse processo. Temos as organizações de assistência técnica, extensão, que trabalham muito bem todo esse processo de organização da base produtiva. Temos que ter estímulo e orientações claras de que isso é prioritário dentro da agenda de pesquisa nacional. Trabalhar não só nas pesquisas disruptivas, mas também naquelas de inovação social que muitas vezes não são valorizadas.
Outra questão é o desenvolvimento de mercados e essa conexão com mercados diferenciados. Por exemplo, produzir bioinsumos na Amazônia é caro, por uma questão de logística, caro porque sempre tem que sair de uma escala pequena e, se for o caso, chegar em uma escala grande. A gente tem defendido muito, assim como outros especialistas, como professor Francisco Costa, da UFPA, que a economia da Amazônia não deve mirar somente a exportação, como, digamos assim, a nossa meta maior. O Brasil é um grande país consumidor, na Amazônia nós temos muitos consumidores. Então, a bioeconomia tem um grande potencial para uma economia circular. Para isso, você tem que ter induções de mercados que compram e tenham uma atenção e voltada para o potencial das frutas e dos produtos locais.
Quem é tomador de decisão na área de políticas públicas sempre quer ter soluções inovadoras para a sociedade, sem necessariamente, às vezes, entender o tempo de escuta e de construção desses processos. Por isso que a Embrapa está construindo e trabalhando um plano estratégico para atuação numa abordagem de bioeconomia inclusiva na Amazônia. A gente precisa ir a campo, dialogar com esses atores para poder entender quais são as demandas e potencialidade e qual o nosso papel. Acho que um dos maiores desafios de governo é como coordenar para que possamos trabalhar juntos, com o mesmo foco, em territórios estratégicos, para que tenhamos entregas de impacto já no curto prazo.
Precisamos levar as políticas de bioeconomia para ponta, para o que chamamos de Amazônia profunda. O que a gente espera disso é definir cadeias prioritárias, territórios prioritários e arranjos, não de pesquisa, mas de inclusão social produtiva.