Rosa Lemos: “Jamais teremos uma economia florestal se só cercarmos e preservarmos”
A Conferência Mundial sobre Restauração Ecológica, organizada pela Society of Ecological Restoration (SER), é um evento bienal destacado como o mais importante no mundo para as discussões sobre recuperação de ecossistemas degradados, danificados ou destruídos. A atual edição acontece pela primeira vez no Brasil e na América do Sul. O WRI Brasil é uma das organizações patrocinadoras. Acompanhe o nosso calendário de eventos e as atualizações no blog.
A CEO do Fundo Brasileiro para a Biodiversidade (Funbio), Rosa Lemos de Sá, é uma conservacionista que fala sobre a restauração de paisagens florestais e a consolidação da economia florestal no Brasil. Em entrevista para o Insights do WRI Brasil, Rosa, que é Ph.D. em Conservação da Vida Selvagem pela Universidade da Flórida (EUA), discute a gestão de recursos financeiros para investir em restauração de paisagens florestais – uma nova agenda do Funbio –, relata os desafios de hoje e projeta o futuro. O Funbio é um mecanismo financeiro inovador que desenvolve estratégias para a conservação de florestas e apoio a unidades de conservação.
INSIGHTS: Empresários, investidores e economistas falam cada vez mais a língua dos ambientalistas sobre a relevância da restauração. Qual é a mensagem que fica?
Rosa Lemos de Sá: Que não podemos olhar os extremos. Temos que olhar o benefício da conservação e da restauração e a necessidade da sobrevivência da floresta e da sua biodiversidade, mas não podemos descolar da vida das pessoas. As pessoas precisam gerar renda. Precisam sobreviver. Nós também precisamos potencializar a geração de renda e a sobrevivência das pessoas. Em alguns casos, apoiaremos a conservação da floresta e o impedimento de qualquer tipo de uso. Em outros casos, favoreceremos o desenvolvimento sustentável para a geração de serviços ecossistêmicos e benefícios socioambientais. Jamais teremos uma economia florestal se só cercarmos e preservarmos.
É por isso que o Funbio está cada vez mais investindo em restauração de paisagens florestais?
RS: Veja, já consolidamos uma agenda sólida de apoio às unidades de conservação, que continua sendo o nosso carro-chefe. Agora, estamos investindo cada vez mais em restauração e queremos acrescentar o reflorestamento com espécies nativas. A Amazônia tem um grau de proteção muito bom, mas a Mata Atlântica precisa urgentemente de restauração. Olhamos para esse bioma com carinho, ainda que não exclusivamente. Os doadores já tem nos procurado porque entenderam que entramos na agenda. Queremos também atuar com força na Caatinga, no Cerrado e no Pantanal, que são três biomas esquecidos que merecem a atenção tanto em conservação quanto em reflorestamento. Essa é a contribuição que gostaríamos de dar nos próximos anos.
A restauração é importante em um mundo em transição. Precisamos fazer, mas não sabemos apontar precisamente quanto de investimento será necessário para isso. Esse valor pode ser mensurado?
RS: Estimativas indicam que a restauração de 20 milhões de hectares no Brasil exigiria, por exemplo, investimentos entre US$ 6,5 e 10 bilhões. Poderia então dizer que seriam necessários US$ 1 bilhão por ano para fazer a restauração que precisamos a fim de vencer os desafios impostos pelas metas climáticas. Acontece que esse dinheiro não existe. Não há recurso para isso.
Como viabilizar a restauração se o dinheiro não existe?
RS: O caminho é combinar financiamentos público e privado, doações e compensações. Isso se aplica ao caso brasileiro, que tem uma forte lei ambiental para exigir que as empresas compensem os danos que causam ao ambiente. O Código Florestal, por exemplo, obriga cada proprietário rural a preservar parte das terras que possui com Áreas de Preservação Permanente (APP) e Reserva Legal (RL). Já temos os mecanismos. Agora, é questão de implementá-los.
Como o Funbio pode ajudar nesse sentido?
RS: Minha experiência no Funbio mostra que os fundos ambientais têm o papel de agregar e entregar essa estratégia de financiamento. Não apenas o Funbio, mas outros na América Latina [A região tem 70% de seu território em mãos do setor privado e 30% na mão do poder público]. Fundos trabalham dessa forma na região há mais de 20 anos [O Funbio opera desde 1996]. Para concretizarmos isso, o caminho é definir um território para aplicar uma estratégia financeira bem definida. O recurso, oriundo de vários lados, é então aplicado em um território definido pela iniciativa do mecanismo financeiro.
Que exemplo demonstra que o caminho é viável?
RS: O exemplo mais concreto não é em restauração ou reflorestamento, mas em conservação: o Áreas Protegidas na Amazônia (ARPA), o maior programa de proteção de florestas tropicais do mundo. O financiamento vem da Alemanha, do Global Environment Facility (Fundo Global para o Meio Ambiente – GEF), da Anglo American, do World Wildlife Fund (WWF), da Gordon and Betty Moore Foundation e também de pessoas físicas. O Funbio gerencia o recurso há mais de 15 anos e conseguiu financiamento para mais 25 anos. Se você tem a estabilidade de uma instituição que agrega esses valores de forma coordenada, você tem ganho de escala e ainda oferece segurança ao doador.
Voltemos às compensações ambientais. Como elas podem atuar para os objetivos de restauração e reflorestamento com espécies nativas?
RS: A empresa que cortou uma árvore nativa têm obrigação legal de compensar o dano. Se cortou para fazer um empreendimento é porque não tem terra. Pense que a compensação pode ser utilizada em um arranjo comum e amplo. Você então pega os recursos financeiros de diferentes empresas e trabalha em uma região, um rio, um território específico. O mecanismo financeiro ajuda a fazer o casamento das diferentes fontes. Você mistura doação, e então consegue dar escala para o projeto de restauração.
Qual é o maior desafio do Funbio?
RS: Tem muito ponto de atenção. O poder público é um deles. Em primeiro lugar, ele muda. De quatro em quatro anos, vem novo governador, novos deputados… Se o programa [de restauração ou conservação] não estiver institucionalizado, quem entra pode cortar. Políticas de governo também mudam. O que é prioritário para um governante, não é prioritário para outro. Essa é a dificuldade que a gente enfrenta. Se o recurso está fora do governo, aumenta a chance de você continuar com o programa. Somos capazes de enfrentar porque o recurso continua na mão do privado, que está menos exposto à sazonalidade. Você leva mais tempo para trabalhar com o gestor público. Se o programa vai além da política de governo, o governante fará porque o recurso existe, o programa existe e tem que continuar. Você tem mais segurança.
Como a instabilidade política do país impacta o trabalho do Funbio?
RS: Não estamos em um cenário favorável do ponto de vista financeiro e político. A instabilidade no Brasil é enorme. Mas a resposta para a pergunta é persistência. Se você não consegue trabalhar com determinado governo ou gestor, você sabe que em quatro anos ele será substituído. Assim também acontece com os cargos de confiança e os tomadores de decisão. Mas você tem a equipe técnica, que permanece. É fundamental manter uma boa relação com os técnicos para continuar fazendo o trabalho sem que ele fique dependente da vontade política.
Falamos sobre não depender do governo para a agenda da restauração. Mas e quanto ao incentivo para pesquisa e desenvolvimento (P&D)? O caso do plantio do eucalipto no Brasil, por exemplo, mostrou que a iniciativa privada é fundamental para impulsionar ações de P&D.
RS: Entendo que esse é um caso do governo apoiar investimentos em pesquisa e desenvolvimento para incentivar a nova economia florestal com espécies nativas. Você tem que ter a sinalização do governo dizendo “eu quero isso”. Isso aconteceu também com o eucalipto, a cana de açúcar e toda commodity que deu certo no país e no mundo. O governo precisa mandar um sinal verde dizendo que quer desenvolver a energia limpa, que quer nova tecnologia. Infelizmente, não temos isso no Brasil em relação à economia florestal. Ela ainda não tem valor e não é valorizada. Enquanto não houver um investimento do governo tanto financeiro, como em política pública que facilite essa economia, continuaremos patinando.