Produtores rurais do Quênia restauram terras – e a esperança – após enchentes
Quando as primeiras gotas de chuva começaram a cair em março, Phylis David Kiveli, uma produtora de Makueni, no Quênia, sentiu um alívio.
O ano passado foi assolado pela seca no país. Muitos produtores assistiram impotentes enquanto as suas colheitas murchavam e os animais morriam. A estação chuvosa deste ano trouxe a promessa de uma safra melhor. Kiveli, que é membro da Ahadi Achievers Empowerment CBO (AAE), uma organização que restaura paisagens degradadas no Grande Vale do Rift, estava otimista em relação ao florescimento de suas mudas de árvores frutíferas. Com anos de experiência na agricultura, ela sabia que as chuvas começariam fracas em março, aumentariam em abril e diminuiriam novamente em maio.
Mas dessa vez foi diferente.
Choveu sem parar, dia e noite. Em maio, continuava chovendo.
“Nunca vi chuvas tão fortes em toda a minha vida”, disse Kiveli. “Minhas únicas duas vacas foram arrastadas e perdi uma parte da minha fazenda. Não tinha como sair. Era água por toda parte”.
Quase 300 pessoas morreram e mais de 160 desapareceram em decorrência das fortes chuvas no Quênia entre março e maio de 2024. Mais de 50 mil famílias foram deslocadas depois de uma série de inundações repentinas que fecharam escolas, interromperam os serviços de saúde e destruíram milhares de hectares de lavouras na África Oriental.
Anthony Muchiri é o diretor executivo da Development Response-Kenya (DREK), uma organização liderada por jovens que planta árvores em fazendas – prática conhecida como agrofloresta – em Garissa, no nordeste do Quênia. Embora as árvores mais maduras possam resistir a inundações e outras condições extremas, o viveiro principal da DREK perdeu 80 mil mudas quando um rio transbordou, inundando áreas agrícolas durante semanas.
“Tínhamos plantado principalmente mangueiras e árvores de neem e esperávamos uma boa colheita”, disse ele. “As águas da enchente desestabilizaram o sistema radicular das árvores que havíamos acabado de plantar. Observamos com tristeza quando elas foram arrastadas”.
Muchiri e Kiveli são ambos “líderes da restauração” junto ao TerraFund para a AFR100, um fundo cogerido pelo WRI que apoia projetos locais para restaurar paisagens degradadas na África – atividades como silvicultura, cultivo de árvores e frutas nativas e agricultura sustentável, entre outras. São dois dos inúmeros pequenos produtores e empresários que perderam safras, animais ou propriedades durante as cheias no Quênia.
No entanto, do mesmo modo como são vítimas das cheias extremas, esses pequenos produtores também podem ser os arquitetos da solução: restaurar as paisagens do Grande Vale do Rift pode ajudar as comunidades a resistir melhor a eventos cada vez mais frequentes, como inundações, secas e outras catástrofes.
A mudança da paisagem no Grande Vale do Rift, no Quênia
O Quênia e algumas outras regiões da África Oriental costumam ter duas estações chuvosas: as “chuvas longas”, de março a maio, e as “chuvas curtas”, de outubro a dezembro. Este ano, a agência meteorológica do Quênia previu que as chuvas prolongadas causariam enchentes e deslizamentos. E foi o que aconteceu.
Não se trata de um evento isolado. As mudanças climáticas têm alterado fundamentalmente os padrões climáticos no Quênia, elevando em excesso os níveis de precipitação em alguns períodos e diminuindo em outros. As cheias deste ano foram precedidas por uma seca devastadora no ano passado. No condado de Garissa, a organização de Muchiri juntou-se a diversas iniciativas de arrecadação de alimentos nos últimos anos para salvar famílias que estavam em uma busca desesperada por alimentos e pastagens para os animais.
E há ainda a degradação dos solos, o que torna as comunidades ainda mais vulneráveis a inundações, secas, deslizamentos e outras catástrofes naturais que ficam ainda mais intensas com as mudanças climáticas. No Quênia, quase 80% das terras estão com erosão, empobrecidas em nutrientes, desmatadas ou degradadas de alguma forma. Os principais fatores são o desmatamento, o excesso de pastagens e práticas insustentáveis de uso do solo, como o excesso de fertilizantes, a aragem morro acima e abaixo e construções irregulares ao longo de rios e lagos. A agricultura e o recolhimento de areia perto das margens fazem com que os rios entrem em colapso, liberando sedimentos nos cursos de água. Além de poluir a água, a sedimentação aumenta o nível dos lagos e faz com que os rios transbordem, causando inundações frequentes.
A desertificação também tem se intensificado devido ao desmatamento e à gestão insustentável dos solos. Paisagens antes férteis se tornaram desertos áridos, ameaçando milhões de habitantes e reduzindo drasticamente a produtividade da terra.
Restaurar paisagens degradadas traz esperança
A restauração das paisagens degradadas é fundamental para melhorar os meios de subsistência locais, a segurança alimentar em longo prazo, a conservação da biodiversidade e a estabilidade climática. Também é essencial para criar resiliência a inundações, secas e outros impactos cada vez mais perigosos das mudanças climáticas.
Aumentar a cobertura de vegetação por meio da silvicultura e da plantação de árvores nativas em florestas degradadas e ao longo dos cursos hídricos pode aumentar a absorção da água e reduzir a velocidade do fluxo dos rios. A adoção de práticas agrícolas sustentáveis, como terraceamento, culturas de cobertura, cobertura morta e cultivo em encostas, também reduz consideravelmente o risco de inundações.
A restauração e a “infraestrutura verde” aumentam a capacidade da terra de administrar a água de forma eficaz. O plantio de árvores e outros tipos de vegetação aumenta a cobertura do solo, intercepta a água das chuvas e permite que mais água se infiltre no solo, reduzindo o escoamento superficial e aumentando a segurança hídrica. As raízes dessas plantas deixam o solo mais estável, evitando erosão. As áreas úmidas, quando restauradas, atuam como reservatórios naturais que absorvem o excesso de água da chuva e a liberam lentamente, reduzindo a probabilidade de picos de vazão nos rios.
Pequenos produtores e empresários locais são fundamentais para a restauração no Quênia
São pessoas como Kiveli e Muchiri, centenas de organizações comunitárias e pequenos empresários e produtores que têm feito esse tipo de trabalho para restaurar as paisagens do Grande Vale do Rift. Por meio do TerraFund para a AFR100, os indivíduos recebem subsídios, empréstimos e investimentos de capital, bem como formação e assistência para lançar negócios voltados para a restauração, como fazendas sustentáveis e viveiros de mudas. Esse trabalho é essencial para revitalizar os milhões de hectares de terras degradadas na África: pesquisas mostram que os projetos de restauração liderados localmente – em oposição aos executados por governos ou ONGs internacionais – têm de 6 a 20 vezes mais probabilidade de serem bem-sucedidos em longo prazo e beneficiar as comunidades.
Caroline Mwangi é a fundadora da Kimplanter Seedlings and Nursery Limited, uma empresa de mudas em Ruiru, no centro do Quênia. A empresa começou em 2012 e, este ano, recebeu um empréstimo por meio do TerraFund para a AFR100 para manter seus projetos de restauração. Além do cultivo de árvores, a Kimplanter capacita outros pequenos produtores em práticas agrícolas sustentáveis e os ensina a obter mudas de qualidade. Embora tenha perdido as suas estufas, mudas e redes de sombra devido às recentes cheias, ela planeja reconstruir e continuar o trabalho.
Outro exemplo é Tecla Chumba, presidente da Associação Comunitária Socioambiental em Eladama Ravin, no condado de Baringo, que tem reunido membros da comunidade para restaurar as florestas degradadas de Chemususu e Narasha usando uma doação do TerraFund. “As comunidades têm a chave para a restauração”, afirma. “As comunidades estão onde está a verdadeira ação, onde estão os desertos e as florestas. É onde a degradação está acontecendo. Então é preciso envolvê-las na restauração”. A Associação estabeleceu uma parceria com a organização Kenya Forest e atua para incentivar os membros da comunidade a cultivar diferentes espécies de árvores nas florestas e em suas pequenas propriedades.
O início de uma revolução de restauração no Quênia
Sabe-se que a restauração não é uma pílula mágica que irá solucionar todos os problemas causados pelas mudanças climáticas que o mundo enfrenta hoje. Apenas a restauração também não protegerá o Quênia por completo de enchentes como as registradas no início deste ano. São necessários esforços mais abrangentes – desde melhores sistemas de alerta e prevenção até mais planejamento e financiamento dedicado à adaptação.
No entanto, investir nas comunidades locais e capacitá-las para que possam participar do desenvolvimento de soluções é um passo importante para a restauração florestal e das paisagens. Os líderes da restauração do TerraFund afirmam que desastres como enchentes e secas podem atrasar seus esforços, mas são lembretes de que as pessoas precisam cuidar do meio ambiente. E eles não desistem – mesmo que precisem recomeçar mais de uma vez.
Para restaurar profundamente as paisagens degradadas da África e criar resiliência para o futuro, produtores, organizações comunitárias e empresários precisam de apoio. Apenas algumas centenas dos milhares de agentes da restauração que se candidataram a financiamento e formação por meio do TerraFund receberam assistência devido às limitações de capacidade. As fontes de financiamento tradicional muitas vezes não são acessíveis para pequenas e médias empresas de restauração, com taxas de juro elevadas e condições de pagamento inadequadas. O monitoramento do crescimento das árvores é fundamental para avaliar o impacto – e, com isso, garantir o financiamento –, mas é um processo que exige ferramentas caras, como satélites e drones. Além disso, poucos governos dedicam financiamento a atividades de restauração ou incentivam o empreendedorismo na restauração, apesar dos claros benefícios para a economia e para a saúde pública.
Ainda assim, lideranças como Kiveli, Mwangi e Muchiri não desistem. Eles sabem que as mudas plantadas hoje se transformarão em árvores que poderão tornar comunidades inteiras mais resilientes. “Estamos determinados a cultivar mais de 50 mil mudas para a nossa próxima época de plantio”, disse Muchiri. “Lentamente, mas com segurança, chegaremos lá”, finaliza.
Caroline Njiru e Teresa Muthoni também contribuíram para este artigo, que foi publicado originalmente no Insights.