O papel do financiamento climático no sistema financeiro global
No coração das economias do mundo está o sistema financeiro global – um conjunto de instituições, mercados e mecanismos que permitem o fluxo de financiamento. Um sistema que, devido aos desafios do século 21 – uma pandemia mundial, conflitos internacionais e, principalmente, os impactos crescentes das mudanças climáticas –, enfrenta cada vez mais abalos.
Quando funciona bem, o sistema financeiro global fornece os canais e regras que permitem que os países interajam uns com os outros por meio do comércio, investimentos e outras transações oficiais. No passado, esse sistema também ajudou os países na gestão de diferentes abalos econômicos, políticos e ambientais. Hoje, porém, com pandemias, guerras, dívidas e mudanças climáticas afetando todo o planeta ao mesmo tempo, questões sobre como estabilizar o sistema financeiro global começam a ganhar espaço nas agendas de reuniões internacionais.
A atual presidência brasileira do G20 tem como uma de suas três prioridades a reforma das instituições de governança global, e muitos líderes e pensadores mundiais defendem uma reformulação do sistema financeiro para os tempos modernos.
Como disse o secretário-geral da ONU, António Guterres, em janeiro de 2023: “Não podemos construir um futuro para nossos netos com um sistema construído para nossos avós”.
Essa afirmação sinaliza o reconhecimento de que o sistema financeiro global tem enfrentado dificuldades que exigem melhores processos de comunicação e cooperação. Estamos diante da oportunidade – e talvez da necessidade – de uma reforma que também apoie melhores resultados climáticos e ambientais.
Como deve ser a relação do sistema financeiro global com o clima e a Convenção-Quadro das Nações Unidas para a Mudança do Clima (UNFCCC), entidade encarregada de coordenar a resposta mundial às mudanças climáticas, é um debate ainda em aberto. A comunidade econômica e financeira e a comunidade climática devem enfrentar problemas sistêmicos juntas – mas será que estão prontas para o desafio?
Compreendendo o papel do sistema financeiro global
Sem o sistema financeiro global, o dinheiro não flui entre pessoas e países. Bancos centrais, bancos comerciais, mercados financeiros, órgãos reguladores e instituições financeiras internacionais funcionam como estradas nas quais instrumentos financeiros, como fluxos de dinheiro e recursos (os veículos), são investidos ou repassados.
Para compensar os abalos sofridos pelo sistema ou reagir em momentos de crise, uma rede global de segurança financeira (atuando como airbags) foi criada para garantir que o sistema permaneça estável e previsível.
Por exemplo, se as reservas próprias de um país não forem suficientes, outros bancos centrais podem fornecer liquidez rápida, como o Federal Reserve dos EUA fez durante a crise financeira de 2008. Acordos financeiros regionais, como o Mecanismo Europeu de Estabilidade ou a Iniciativa de Chiang Mai, também foram criados visando a uma melhor alocação de recursos. Além disso, desde 1944, o Fundo Monetário Internacional (FMI) fornece capacidade financeira para conter crises dentro dos países membros e evitar que se espalhem e atinjam outras nações.
No coração desse sistema financeiro global estão o FMI e o Banco Mundial. Essas duas instituições são únicas, no sentido de que quase todos os países são representados por meio de acordos específicos de associação e governança (por meio de seus respectivos ministérios ou bancos centrais).
Quando essas instituições foram criadas – em Bretton Woods, 80 anos atrás, após a Segunda Guerra Mundial –, as regras do sistema financeiro global não estavam escritas em pedra. À medida que o mundo pós-guerra tomou forma e novas nações foram estabelecidas ou conquistaram sua independência, instituições, órgãos reguladores e outras entidades emergiram.Com o tempo, foram feitos ajustes para reagir a novos abalos e acomodar as mudanças. Hoje, as mudanças climáticas são um desses novos abalos aos quais o sistema financeiro precisa estar preparado para reagir.
Qual é a relação entre o sistema financeiro global e o financiamento climático?
Não existe uma relação formal de governança entre o financiamento climático e o sistema financeiro global. O financiamento climático, porém, cujo objetivo principal é enfrentar os impactos das mudanças climáticas, precisa usar o sistema financeiro global, o qual facilita o fluxo de financiamento climático e aloca recursos para atividades relacionadas ao clima. Seja um empréstimo feito por um banco de desenvolvimento para construir uma fazenda solar ou um país atingido por um furacão buscando apoio para perdas e danos por meio de seguro soberano, esses “veículos” trafegam pelo sistema financeiro global.
No contexto da UNFCCC, a importância do financiamento climático internacional – que se origina em um país (desenvolvido) e financia ações climáticas em outro (em desenvolvimento) – está no Acordo de Paris, de 2015.
A meta de financiamento de longo prazo do Acordo de Paris é ainda mais ampla e visa alinhar o financiamento em todos os países com as metas globais de adaptação e mitigação. O Acordo também visa facilitar o fluxo de financiamento para países em desenvolvimento (por meio dos Artigos 9.1 e 9.3).
Depois da Crise Financeira Asiática no final dos anos 1990 e da Crise Financeira Global de 2008, o sistema financeiro global realizou um longo trabalho para se tornar mais resiliente a abalos inesperados. Durante esse tempo, a UNFCCC permaneceu de fora das discussões sobre a gestão de abalos econômicos e financeiros. No entanto, as conversas começaram a convergir entre esses dois universos, permitindo que o sistema financeiro global começasse a incorporar algumas considerações climáticas.
Em 2015, por exemplo, o Conselho de Estabilidade Financeira (criado pelo G20 em 2009, após a Crise Financeira Global) começou a detalhar como o clima poderia prejudicar a estabilidade financeira por meio de megatempestades repentinas, secas prolongadas e o declínio de economias baseadas em combustíveis fósseis. O Conselho estabeleceu, então, a Força-Tarefa sobre Divulgações Financeiras Relacionadas ao Clima (TCFD, na sigla em inglês) para estudar como os riscos climáticos impactam as finanças (posteriormente complementada pela Força-Tarefa sobre Divulgações Financeiras Relacionadas à Natureza).
Recomendações dessas duas forças-tarefas indicam como incorporar o clima nas decisões sobre investimentos tomadas dentro do sistema financeiro global: esses regimes de divulgação, que agem como um sistema de iluminação pública, “iluminam” os percursos e apontam riscos ou oportunidades para investidores ao longo do trajeto. Agora, as recomendações da TCFD foram incorporadas pelo Conselho Internacional de Padrões de Contabilidade (IASB, na sigla em inglês), responsável por desenvolver padrões de contabilidade financeira, à medida que o Conselho Internacional de Padrões de Sustentabilidade (ISSB, sigla em inglês) se baseia nesses padrões, cada vez mais aceitos em escala global.
A pressão para que lideranças econômicas e financeiras considerem os desafios impostos pelas mudanças climáticas não vem apenas de estudos, estruturas de divulgação e comunicados pedindo ação. Líderes empresariais, formuladores de políticas e cidadãos e cidadãs comuns cada vez mais reconhecem que são necessárias reformas financeiras para enfrentar essas questões à medida que os impactos climáticos se tornam mais severos e frequentes – interrompendo e devastando vidas e economias em escala regional e nacional – e à medida que compreendem a necessidade de investimentos para apoiar transições justas e inteligentes em termos de clima e natureza.
Por que é preciso mais diálogo entre a comunidade climática e a comunidade financeira
Atores estratégicos de governos, da comunidade econômica e financeira e da comunidade climática devem enfrentar problemas sistêmicos em conjunto, porque soluções eficazes exigem recursos, perspectivas e expertise de todos os setores. Esses desafios sistêmicos são caracterizados por três temas:
1) As mudanças climáticas agravam as dificuldades de desenvolvimento
Postergar a ação climática ou não investir em medidas de mitigação e adaptação agora só vai piorar os impactos climáticos e afetar o desenvolvimento dos países. Muitas instituições já incluem considerações climáticas em projeções e análises macroeconômicas usadas para fornecer aconselhamento político, entre as quais o FMI, o Grupo Banco Mundial e outros bancos de desenvolvimento, além de ministérios da fazenda de diversos países (no G20, a Coalizão de Ministros de Finanças para a Ação Climática e o V20). Isso ajuda o sistema financeiro global a garantir que suas “estradas e infraestrutura” funcionem bem.
Enfrentar os desafios relacionados ao clima para viabilizar um desenvolvimento sustentável exige investimentos em políticas ou projetos em áreas como industrialização verde, descarbonização e infraestrutura resiliente. A maioria dos países, porém, encontra uma série de barreiras para fazer isso – desde a falta de incentivos até o alto endividamento.
2) As mudanças climáticas têm um impacto negativo sobre a estabilidade econômica e financeira
Não faltam evidências que embasam os custos econômicos e financeiros de desastres climáticos. O setor agrícola, por exemplo, sofre regularmente com os impactos de ondas de calor e inundações que frequentemente resultam em perda de vidas, danificam o meio ambiente que sustenta os meios de subsistência de muitas famílias e comprometem uma parcela significativa da renda nacional. Temendo esses impactos, investidores e seguradoras estão mais propensos a procurar locais mais seguros, com menores riscos climáticos. Isso gera uma pressão na rede de segurança financeira global, que precisa ser fortalecida para lidar com a instabilidade macroeconômica e financeira e os riscos impostos pelas mudanças no clima.
3) Nem todo o financiamento climático disponível atualmente – público, privado, nacional e internacional – é suficiente para atingir as metas do Acordo de Paris
Em maio de 2024, a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico divulgou dados indicando que a meta anual de US$ 100 bilhões para o financiamento climático foi atingida (embora com atraso), mas que, nos próximos anos, as necessidades de financiamento climático serão muito maiores. Simplesmente não há financiamento suficiente fluindo atualmente para apoiar os processos de transição e as medidas adaptação dos países, em especial aqueles em desenvolvimento que não participaram das discussões que moldaram o sistema financeiro global.
Embora estudos e nossa própria experiência tenham mostrado que as mudanças climáticas ameaçam a estabilidade do sistema financeiro global – e que são necessários maiores fluxos de financiamento climático internacional –, ainda não está claro quais reformas são necessárias. Conforme mencionado acima, o Acordo de Paris, em 2015, de fato estabeleceu uma meta de longo prazo para “alinhar” todos os fluxos financeiros com o que seria necessário para atingir as metas globais de mitigação e adaptação; no entanto, o Acordo não estipulou de que forma isso pode ser feito. O primeiro Balanço Global do Acordo de Paris, realizado em 2023, revelou a necessidade de aumentar a “ambição climática” de forma significativa, fornecendo financiamento para os países em desenvolvimento. Esse resultado desencadeou um clamor crescente por parte de diversos atores.
Apelos pela reforma do sistema financeiro global para fortalecer a ação climática
Do G7/G20 às reuniões anuais do FMI e do Banco Mundial, passando pelas cúpulas climáticas da UNFCCC, há uma série de debates em andamento sobre o papel de diferentes atores, instituições, instrumentos de financiamento e fundos climáticos com o objetivo de entender melhor como o sistema financeiro global e a ação climática interagem entre si. Alguns dos apelos mais comuns pela reforma do sistema financeiro global incluem:
1) “Os bancos multilaterais de desenvolvimento precisam intensificar seus esforços”
O papel dos bancos multilaterais de desenvolvimento foi destacado pela primeira vez em uma decisão da COP27. Um exemplo disso é o apelo para que diferentes níveis de bancos de desenvolvimento (multilaterais, regionais, nacionais e subnacionais) apoiem investimentos e transições nos países em busca de construir economias resilientes e canalizar o financiamento climático para os locais em que é mais necessário.
2) “Mais financiamento climático e com mais qualidade”
Em todos os setores e países, o acesso ao financiamento climático é um problema recorrente. Em 2023, o Balanço Global fez um apelo a diferentes atores do sistema financeiro global para que apoiassem a ação climática, reiterando a importância das reformas na arquitetura financeira multilateral com o objetivo de fornecer mais financiamento climático e com mais qualidade. O Balanço reconheceu a necessidade de mais financiamento climático, principalmente por meio de subsídios e instrumentos concessionais e não relacionados à dívida. O uso de instrumentos financeiros inovadores, mercados de carbono e novas formas de tributação também foi mencionado como uma forma de cumprir os objetivos do Acordo de Paris, além do reconhecimento do papel do setor privado, de políticas e regulamentações e de condições favoráveis para atingir a escala de investimento necessária.
3) “Entender e administrar melhor os riscos”
O Balanço Global também pediu uma melhor avaliação dos riscos financeiros relacionados ao clima por parte de governos, bancos centrais, bancos comerciais e investidores institucionais. Os investidores precisam de mais clareza para que os instrumentos de financiamento possam ser utilizados da melhor forma e que essa espécie de “sistema de sinalização de trânsito” de fato apoie a mitigação de riscos e o alinhamento dos investimentos às metas do Acordo de Paris. Para iluminar os riscos climáticos de forma eficiente, o sistema financeiro global pode se basear na rede de instituições já existentes, criando ou ajustando padrões e regras para que incorporem o clima e a natureza e mostrando como os mercados de carbono de alta integridade podem fornecer novas maneiras de investir. Essas medidas podem contribuir para que o financiamento climático viabilize o crescimento econômico e o desenvolvimento sustentável, resiliente e de baixo carbono nos países.
4) “Reprogramar o sistema financeiro global”
Outras ideias vieram da Primeira-Ministra de Barbados, Mia Mottley, na chamada iniciativa Bridgetown. O movimento destacou maneiras pelas quais o desenvolvimento e as finanças internacionais, entre outros atributos estruturais do sistema financeiro global, podem mudar para incluir o clima e refletir melhor a composição do sistema financeiro global e a realidade dos países hoje – e não a de quando o sistema foi criado.
Outras coalizões, incluindo países, entidades privadas e não governamentais também se uniram em torno de apelos por reformas. O V20 (um agrupamento de 68 nações vulneráveis ao clima) lançou a Agenda Accra-to-Marrakech, apresentando quatro sugestões para “reprogramar” o sistema financeiro global de uma forma que passe a trabalhar pelo clima e, em particular, pelos países mais vulneráveis às mudanças climáticas. O documento inclui sugestões sobre dívida, financiamento de carbono e gestão de riscos.
Em particular, lidar com o acúmulo de dívidas de forma eficaz e com as dificuldades financeiras em tempo hábil exige que instituições como o FMI, o G20, credores tradicionais e não tradicionais, governos tomadores de empréstimos e o setor privado trabalhem juntos para encontrar soluções.
Outras ocasiões em que iniciativas foram lançadas incluem a Cúpula para um Novo Pacto de Financiamento em Paris (junho de 2023), a Cúpula do Clima da África (setembro de 2023), a Coalizão de Emergência sobre Sustentabilidade da Dívida e Clima (outubro de 2023) e, mais recentemente, as reuniões anuais do Banco Africano de Desenvolvimento (junho de 2024). Durante essas reuniões de alto nível, os apelos para reformar a maneira de lidar com a dívida se multiplicaram, inclusive no contexto das negociações climáticas internacionais. No entanto, as partes envolvidas ainda precisam definir e concordar com soluções mais rápidas.
As funções do sistema são decididas de forma coletiva ao longo do tempo pelos tomadores de decisão. Quaisquer reformas precisam ser percebidas como legítimas e a partir de todas as partes envolvidas, sejam mutuários ou doadores e provedores de financiamento, em um trabalho conjunto. Os mecanismos inerentes de confiança e solidariedade que legitimam o sistema financeiro internacional estão sendo colocados à prova. É possível modificar elementos sistêmicos para dar suporte à transição rumo a uma economia de baixo carbono e resiliente ao clima.
Diversos desses temas foram ecoados na COP27, em Sharm el-Sheikh, e na COP28, em Dubai, em uma tentativa de delinear princípios para o financiamento climático global. Essas discussões destacam as relações entre o clima e o sistema financeiro global, como o fornecimento de financiamento climático internacional para os países em desenvolvimento; a necessidade de uma melhor gestão dos riscos climáticos; e o investimento em resiliência enquanto os países têm seus recursos restritos devido a dívidas.
Em última análise, embora o regime climático da UNFCCC não seja capaz de, sozinho, promover mudanças no sistema financeiro global, é importante que essas conversas entre a comunidade climática e a comunidade econômica e financeira aconteçam e que sejam estabelecidos objetivos comuns e meios eficazes de alcançá-los.
Este artigo foi publicado originalmente no Insights.