Cidades em um mundo 1,5°C ou 3°C mais quente: diferenças substanciais nas ameaças climáticas e na desigualdade
O mundo passou recentemente por uma sequência de 13 meses de temperaturas globais recordes. Enquanto ondas de calor escaldantes castigam comunidades em vários continentes, 2024 está em vias de se tornar o ano mais quente já registrado. A temperatura média global está próxima de ultrapassar o limite de 1,5°C acima dos níveis pré-industriais, uma barreira que, se ultrapassada, conforme os cientistas alertam, trará secas, incêndios florestais e outros impactos cada vez mais graves. Sem a implementação de medidas robustas para reduzir as emissões de gases de efeito estufa, os pesquisadores projetam um aumento de quase 3°C na temperatura até 2100.
Se isso acontecer, quase 600 milhões de pessoas estarão expostas a inundações decorrentes da elevação do nível dos oceanos, a produção de alimentos cairá pela metade e teremos níveis catastróficos de perda de habitats. Mas qual é a diferença de um aquecimento de 3°C ou 1,5°C em diferentes cidades – como Bengaluru, Johanesburgo, Rio de Janeiro ou a cidade em que você mora?
Novos dados do WRI revelaram uma diferença considerável entre 3°C e 1,5°C de aquecimento na maioria das cidades. Analisamos as ameaças climáticas para quase mil entre as maiores cidades do mundo – que atualmente abrigam juntas 2,1 bilhões de pessoas ou 26% da população mundial – usando estimativas baseadas em modelos climáticos globais de escala reduzida. Com 3°C de aquecimento, muitas cidades podem enfrentar ondas de calor com duração de até um mês, com uma alta disparada na demanda por energia para ar condicionado, além de um aumento nos riscos de doenças transmitidas por insetos. Moradores de cidades de baixa renda provavelmente serão os mais afetados.
Essas descobertas têm consequências substanciais para a vida e os meios de subsistência das pessoas, bem como para as economias, infraestruturas e sistemas de saúde pública das cidades. Considerando que as cidades abrigam 4,4 bilhões de pessoas – mais da metade da população mundial – e devem crescer rapidamente nas próximas duas décadas, essas implicações são especialmente importantes. Em 2050, quando mais 2,5 bilhões de pessoas estarão em áreas urbanas, teremos dois terços da humanidade vivendo em cidades, com mais de 90% desse crescimento concentrado na África e na Ásia.
Sobre esses dados
Os modelos climáticos globais em geral não produzem dados específicos o suficiente para uso em nível local. Para este artigo, então, produzimos um conjunto de dados com informações sobre 14 ameaças climáticas relacionadas ao calor e à precipitação de 996 cidades com mais de 500 mil habitantes. Os dados foram obtidos a partir de um novo método de modelagem estatística (desenvolvido pelo WRI) que facilita a projeção de impactos em escala urbana a partir de modelos climáticos globais.
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Os modelos climáticos globais em geral não produzem dados específicos o suficiente para uso em nível local. Para este artigo, então, produzimos um conjunto de dados com informações sobre 14 ameaças climáticas relacionadas ao calor e à precipitação de 996 cidades com mais de 500 mil habitantes. Os dados foram obtidos a partir de um novo método de modelagem estatística (desenvolvido pelo WRI) que facilita a projeção de impactos em escala urbana a partir de modelos climáticos globais.
As ameaças selecionadas para análise foram escolhidas em consulta com os tomadores de decisão das cidades avaliadas considerando seus impactos na saúde pública, meios de subsistência, infraestruturas e produtividade econômica. As magnitudes médias foram calculadas com base em três modelos climáticos para cada cidade (escolhidos com base no melhor ajuste com dados históricos) para três cenários de aquecimento global (1,5°C, 2°C e 3°C), além de um período de referência histórico recente (1995-2014). Neste artigo, visando a uma análise mais breve, descrevemos as descobertas para os cenários de 1,5°C e 3°C de apenas alguns dos indicadores de risco e relatamos apenas estimativas do melhor dos três modelos por cidade (com base na correlação histórica). Os dados dos três modelos estão disponíveis no conjunto de dados que acompanha o artigo.
Todos os dados são baseados em modelos. E, como em todos os modelos, há limitações e incertezas inevitáveis. A seguir, listamos algumas delas:
Incerteza inerente de modelos climáticos. Modelos climáticos são construídos com base no entendimento mais recente da comunidade de pesquisa sobre como o clima opera e como deve evoluir, mas estão longe de ser perfeitos. A complexidade dos sistemas da Terra e nossa impossibilidade de prever fatores importantes, como futuras emissões de gases de efeito estufa, fazem com que todos os modelos climáticos apresentem algum nível de incerteza. Os dados que fornecemos são estimativas baseadas em modelos de probabilidade, não previsões definitivas. O conjunto de dados completo inclui estimativas e medidas de incerteza para três modelos climáticos independentes usados para cada indicador e para cada cidade.
Resolução espacial. Nossos dados e os modelos que usamos têm a mesma resolução espacial: pixels de aproximadamente 25 km por 25 km. Embora seja uma melhoria em relação ao trabalho anterior, a resolução ainda é mais grosseira do que o ideal para o planejamento climático urbano. As estimativas que fornecemos são médias de áreas de mais de 600 quilômetros quadrados. Portanto, nossos dados provavelmente subestimam extremos que podem surgir de diferenças mais minuciosasno ambiente construído: locais muito quentes (pontos mais quentes do que a média dentro de suas células) parecerão mais frios, e locais frios parecerão mais quentes.
Efeito de ilha de calor urbana. Devido à pavimentação, aos materiais de construção e à relativa falta de vegetação, áreas urbanas tendem a ser mais quentes do que as rurais. É o que se chama de efeito de ilha de calor urbana – e, embora tenhamos incluído uma etapa de correção de viés para mitigar parcialmente o problema, os modelos climáticos não consideram esse efeito. Ou seja, muitos pontos nas cidades provavelmente são ainda mais quentes do que indicam nossos dados. As estimativas de frequência e duração de futuras ondas de calor e o número de dias de temperaturas extremas tendem a ser mais baixas.
Ameaças simplificadas de riscos de doenças. Baseamos nossas ameaças relativas a picos de transmissão de arbovírus e malária na comparação de temperaturas estimadas com faixas de temperatura ótimas para algumas espécies específicas de mosquitos (Aedes aegypti e Aedes albopictus para arbovírus e Anopheles gambiae para malária). Os ciclos de vida das doenças são muito mais complexos do que é possível avaliar em faixas de temperatura simples, além de que podem ser transmitidas mesmo em temperaturas abaixo do ideal e por vetores diferentes das espécies analisadas. Por exemplo, o Anopheles stephensi, um mosquito asiático transmissor de malária, tem se tornado uma ameaça crescente na África, principalmente nas áreas urbanas. Por fim, ressaltamos que nossas estimativas avaliam apenas o clima, e não a distribuição geográfica (atual ou futura) de mosquitos ou patógenos.
À medida que conseguimos acesso a melhores modelos climáticos, refinamos nossos métodos constantemente para reduzir as incertezas e aprimorar as estimativas. Por enquanto, nossa recomendação para interpretar esses dados é entender a incerteza inerente a esse trabalho de modelagem e considerar nossas descobertas como um possível cenário futuro, baseado em alguns dos melhores modelos globais existentes, por mais incertos que sejam.
A seguir, analisamos como podem ser as condições nas maiores cidades do mundo se o aquecimento global atingir 3°C, em comparação com o cenário de 1,5°C.
Ondas de calor mais longas e frequentes
Estudo após estudo mostram que, em períodos prolongados de temperaturas altas fora do normal, mais pessoas morrem e as economias desaceleram. Mesmo quando os picos de temperaturas não são uma ameaça à vida humana, as ondas de calor podem aumentar os riscos para a agricultura e infraestrutura, como perdas de safras e aumento da demanda por energia. Com 3°C de aquecimento, a maioria das cidades pode esperar ondas de calor ainda mais longas e frequentes do que em um cenário de 1,5°C.2
Em um mundo 1,5°C mais quente, a maior onda de calor do ano nas maiores cidades pode durar em média 16,3 dias, com 3% das cidades enfrentando uma onda de calor com duração de um mês ou mais por ano.
Na trajetória atual, com quase 3°C de aquecimento, a duração média da maior onda de calor em um ano pode saltar para 24,5 dias. Nesse cenário, mais de 16% das maiores cidades do mundo – que abrigam juntas 302 milhões de pessoas – estarão expostas a pelo menos uma onda de calor por ano com duração de um mês ou mais.3
A duração da onda de calor mais longa do ano também varia muito de região para região.
Com 1,5°C de aquecimento, Oriente Médio, Norte da África e América Latina e Caribe podem passar pelas ondas de calor mais longas em média, com cerca de 23 a 25 dias.
Com 3°C de aquecimento, o Oriente Médio e o Norte da África podem registrar o maior aumento estimado na duração da onda de calor mais longa do ano (+13,6 dias), elevando as ondas de calor mais longas da região para 36,3 dias, em média.
Leste Asiático e Pacífico e Sul da Ásia também podem registrar aumentos de 9 a 10 dias, resultando em ondas de calor com duração de 23 a 25 dias.
As ondas de calor também podem se tornar mais frequentes.
Com um aumento de 1,5°C na temperatura,, uma cidade pode registrar 4,9 ondas de calor por ano, em média.
Em um cenário de 3°C de aquecimento,, o número de ondas de calor pode aumentar para 6.4 por ano, com cada vez mais cidades enfrentando ondas de calor de dois dígitos a cada ano.
Cidades em países com diferentes níveis de renda passariam por mudanças diferentes.
Com 1,5°C de aquecimento, cidades em países de alta renda podem registrar uma média estimada de 5,2 ondas de calor por ano. Já as cidades em países de baixa renda podem passar por 4,7 ondas de calor por ano.
Em um cenário de 3°C de aquecimento, estima-se que o número de ondas de calor em cidades de países de alta renda passe de 0,7 para 5,9 ondas de calor por ano.
No caso de cidades em países de baixa renda, a frequência de ondas de calor pode passar de 2,1 para 6,9 ondas de calor por ano.
Ondas de calor mais longas e frequentes podem ter um impacto enorme na saúde pública e no desenvolvimento social e econômico. Os impactos do calor extremo podem ser fatais, especialmente entre os grupos mais vulneráveis, como gestantes, idosos e crianças. Dentro das cidades, os bairros mais pobres serão os mais afetados, pois em geral contam com menos áreas verdes para resfriar o ar, construções de qualidade inferior e menos acesso a alternativas de resfriamento mecânico.
Aliadas à poluição do ar, um problema comum nas cidades, as ondas de calor se tornam ainda mais mortais. Por exemplo, doenças cardiovasculares são agravadas pelas temperaturas extremas e pelo ozônio troposférico, cuja formação também aumenta em temperaturas mais altas. As ondas de calor também facilitam a formação de incêndios florestais, o que pode aumentar a exposição à poluição por PM2.5, um conhecido cancerígeno associado a doenças e mortes prematuras.
Além dos impactos na saúde humana, o calor extremo também prejudica os sistemas de água, energia e transporte, afetando as cadeias alimentares e a agricultura.
Solução urbana: resiliência inclusiva em Bengaluru, Índia
Em Bengaluru, na Índia, onde a onda de calor mais longa do ano pode ter uma média de 13,5 dias com 1,5°C de aquecimento e 37,8 dias com 3°C, o calor extremo já causa escassez severa de água e um aumento na demanda por energia. A cidade é a quinta mais populosa da Índia, e 16% da população, que registra um rápido crescimento, vive em assentamentos informais.
Em 2023, Bengaluru lançou seu primeiro plano de ação climática, que pode servir como um modelo de construção de resiliência em cidades grandes e com altos níveis de desigualdade. Trata-se de um plano inclusivo desde sua concepção, que reuniu todos os setores da sociedade para participar do planejamento e implementação de soluções baseadas na natureza para combater as mudanças climáticas, como plantar árvores e ampliar as áreas verdes.
O plano climático de Bengaluru incorpora medidas visando à qualidade do ar e outros componentes associados ao bem-estar humano. O plano também é amplo em termos de alcance, abrangendo setores como gestão de resíduos sólidos, águas pluviais, energia, transportes e biodiversidade.
Aumento da demanda por alternativas de resfriamento
Ondas de calor mais longas e frequentes e dias extremamente quentes aumentarão de forma significativa a demanda por alternativas de resfriamento4 em casas e escritórios – e, com isso, também a demanda por energia, caso essas necessidades sejam atendidas por meios mecânicos, como ar condicionado. Em muitos casos, essas necessidades podem ser atendidas com resfriamento passivo – incluindo seleção de material, sombra, isolamento e ventilação –, mas essas soluções costumam ser ignoradas em prol de métodos mecânicos, percebidos como mais convenientes.
Com 1,5°C de aquecimento, aproximadamente 8,7 milhões de pessoas podem precisar do dobro de sua demanda média (1995-2014) por alternativas de resfriamento.5
Com 3°C de aquecimento, aproximadamente 194 milhões de pessoas podem ter seus níveis de demanda duplicados.
Locais que até hoje não precisaram de estratégias de resfriamento devido ao clima mais ameno – como o norte da Europa ou o noroeste do Pacífico dos EUA – passarão a ter essa preocupação.
Se essa necessidade for atendida por meios mecânicos, o aumento no consumo de energia pode exigir um investimento considerável em infraestrutura e tecnologias de construção, mesmo que a demanda por resfriamento ainda seja relativamente baixa. Com isso, também seria mais difícil atingir as metas de descarbonização em regiões onde geração de energia é dependente de combustíveis fósseis.
Em paralelo, muitos lugares que já são quentes – como Teerã e Marrakesh – observam sua demanda por resfriamento aumentar mais rápido do que em locais mais frios.
Para muitas dessas cidades, o crescimento populacional e a adoção de tecnologias de resfriamento se tornam fatores complicadores. Aparelhos de ar condicionado com uso intensivo de energia são menos usados em cidades de baixa renda, mas a demanda aumenta à medida que esses países se tornam mais ricos e populosos. Espera-se, por exemplo, que a porcentagem de domicílios com ar condicionado na Índia iguale ou supere a da Europa até 2050.
Ao mesmo tempo, sem políticas e investimento público em alternativas de resfriamento passivo, as populações mais pobres em cidades que logo se tornarão mais quentes não terão acesso a soluções de resfriamento. Esse cenário pode aumentar a desigualdade social e os riscos à saúde.
Hoje, apenas cerca de 8% dos 2,8 bilhões de pessoas que vivem nos locais mais quentes (e em geral mais pobres) do mundo possuem aparelhos de ar condicionado em casa. Na Índia, por exemplo, estima-se que, devido à falta de infraestrutura e serviços de resfriamento, mais de 215 milhões de pessoas estão expostas a maiores riscos de desenvolver problemas de saúde associados ao calor. Desse total, mais de 121 milhões são mulheres e meninas, que em geral são afetadas de forma desproporcional pelo calor extremo, tanto em termos de saúde quanto na situação econômica. Existe um abismo entre os investimentos atuais em resfriamento e o que será necessário até 2050 para salvar vidas, especialmente nos países de baixa renda.
Solução urbana: mapeamento de pontos críticos em Johanesburgo, na África do Sul
Em Johanesburgo, na África do Sul, as ondas de calor têm se tornado mais longas e frequentes. Em um cenário de 3°C de aquecimento, estima-se que a demanda da cidade por resfriamento seja 69% superior do que com 1,5°C de aumento nas temperaturas. O ar condicionado não é uma solução adequada quando as altas temperaturas causam escassez de água e falta de energia, como aconteceu em uma onda de calor recente que afetou a maior parte da África do Sul. E, para muitos moradores de Johanesburgo que vivem em assentamentos informais – aproximadamente 1 em cada 5 pessoas – o abastecimento de água e eletricidade não é garantido o ano todo.
A combinação frequentemente mortal de altas temperaturas e alta desigualdade exige ações mais agressivas por parte de governos e comunidades. Em Johanesburgo, a mudança começou com um mapeamento. Em 2022, o governo local formou uma parceria com voluntários da comunidade para medir as temperaturas e criar mapas que mostram a interseção entre calor e vulnerabilidade. O esforço forneceu dados de alta qualidade aos tomadores de decisão, criou uma base de evidências para medidas específicas de resfriamento e uniu as partes interessadas de toda a cidade na mesa de planejamento. À medida que a cidade avança com o plantio de árvores e a implementação de telhados brancos, entre outras iniciativas de resfriamento, esses esforços contam com o embasamento de dados coletados pelos próprios moradores, melhorando a cobertura dos grupos mais vulneráveis.
O aumento e a variabilidade dos riscos para a saúde
Condições mais quentes em geral favorecem as doenças transmitidas por mosquitos. Em um cenário de 3°C de aquecimento, os padrões geográficos e a prevalência de doenças mudariam de forma significativa, exigindo mudanças profundas nas prioridades e investimentos em saúde pública. (Nossas análises são baseadas em mudanças de temperatura e não em outros fatores que afetam os ciclos de vida ou a prevalência atual ou futura de patógenos e vetores de doenças.)
À medida que os dias com temperaturas ideais para os mosquitos transmissores de doenças se tornarem mais recorrentes, a incidência de arboviroses como dengue, zika, febre do Nilo Ocidental, febre amarela e chikungunya provavelmente aumentará em todo o mundo.
Comparando os cenários de 1,5°C e 3°C de aquecimento, o aumento médio do número de dias de pico de transmissão de arboviroses no mundo será de 6 dias. Mas as realidades locais são ainda mais desafiadoras do que a média global.
Cidades de baixa renda serão as principais afetadas.
Com um aquecimento de 1,5°C, as cidades em países de baixa renda podem registrar 73,4 dias de pico de arboviroses por ano, em comparação com apenas 27,9 nas cidades de países de alta renda.
Em um cenário de 3°C de aquecimento, as cidades em países de baixa renda podem registrar 87,4 dias de pico de arboviroses por ano, em comparação com 32,1 dias por ano para as cidades de países de alta renda.
A incidência de malaria, em compensação, deve diminuir globalmente, uma vez que, em muitos locais, as temperaturas têm se tornado mais altas do que o ideal para os mosquitos transmissores da doença.
Um aumento de 1,5°C para 3°C no aquecimento global implica uma queda nos dias de pico de malária — de 114 para 104,4 dias em média –, mas esse declínio varia consideravelmente conforme a região. Por exemplo, em um cenário de 3°C de aquecimento, algumas cidades na Europa, Ásia Central e América do Norte verão o número de dias com temperaturas ideias para a transmissão da doença aumentar. Hoje, a maioria dessas cidades não abriga os mosquitos portadores de malária — mas, à medida que surgem relatos de malária adquirida localmente na Europa e nos EUA, aumenta a preocupação de que a doença possa se infiltrar em lugares onde até então não havia registros de casos recentes.
Solução urbana: o combate à dengue no Rio de Janeiro
As arboviroses são uma preocupação particularmente urgente na América Latina. O Brasil já tem passado por uma crise de dengue, e, com 3°C de aquecimento, 11 das maiores cidades do país podem enfrentar um alto risco de arboviroses durante pelo menos seis meses do ano. O Rio de Janeiro, em particular, pode registrar um aumento significativo nos casos de doenças se o aquecimento global atingir 3°C, já que, nesse cenário, o número de dias de pico de arbovírus aumenta em 71%, passando de 69 para 118 dias por ano.
À medida que as temperaturas no Rio de Janeiro se tornam mais favoráveis aos mosquitos transmissores da dengue, a cidade tem investido para ampliar a disponibilidade de vacinas contra a doença e controlar a reprodução dos mosquitos. Agentes comunitários de saúde cruzam a cidade em busca de pontos de água parada, onde os mosquitos podem se reproduzir. A cidade também tem usado outra doença – a Wolbachia, uma bactéria que infecta insetos – para inibir a transmissão da dengue em mosquitos infectados. No Rio e em outras cinco cidades brasileiras, mosquitos infectados com Wolbachia são liberados às dezenas de milhares. Esses mosquitos se comportam da mesma forma que os não infectados, mas abrigam menos vírus da dengue e infectam outros mosquitos. Um programa semelhante de transmissão de Wolbachia em Yogyakarta, na Indonésia, resultou em uma redução de 77% na incidência de dengue.
As cidades de baixa renda enfrentarão múltiplos riscos climáticos
As ameaças climáticas raramente acontecem de forma isolada. As cidades de baixa renda, em particular, enfrentarão riscos múltiplos e interconectados, como o aumento anormal da temperatura e da incidência de doenças, o que poderá sobrecarregar ainda mais sistemas de saúde, infraestruturas e orçamentos já insuficientes.
A África Subsaariana tende a ser a região mais atingida por vários indicadores em um cenário de 3°C de aquecimento global. As cidades da região podem sofrer múltiplos impactos climáticos severos, possivelmente ao mesmo tempo. Comparando os impactos de 1,5°C e 3°C de aquecimento, as cidades da região aparecem em primeiro lugar para o maior aumento estimado na frequência de ondas de calor (aumento de 56%, com 6,5 ocorrências por ano) e dias de pico de arboviroses (25 dias a mais, totalizando 129 por ano). As cidades da África Subsaariana também registram o terceiro maior aumento estimado na duração da onda de calor mais longa do ano (um aumento de 58%, chegando a 20 dias) e o segundo maior aumento estimado na demanda por energia para resfriamento (um adicional de 208 graus-dia de resfriamento).
Embora a África seja responsável por apenas 2 % a 3% das emissões de gases de efeito estufa do mundo, muitas cidades na região subsaariana estão entre as mais afetadas por ameaças induzidas pelas mudanças climáticas. No cenário de 3°C de aquecimento, cidades como Freetown, em Serra Leoa, e Dacar, no Senegal, podem enfrentar ondas de calor de mais de um mês, com uma média de sete ondas de calor por ano, o que exigirá mais energia para resfriamento (respectivamente, 13% e 20% a mais do que a média histórica para o mesmo período). Muitas cidades na região já passam por um rápido crescimento populacional, enfrentando conflitos e um desenvolvimento desregulado. As múltiplas ameaças decorrentes das mudanças climáticas aumentam ainda mais a vulnerabilidade da região.
As cidades latino-americanas, por sua vez, aparecem em segundo lugar no ranking do aumento estimado da frequência de ondas de calor (com um aumento de 48%, chegando a 7,5 ocorrências por ano). As cidades da região também apresentam o segundo maior aumento estimado no número de dias de pico de arboviroses no cenário de 3°C de aquecimento (13 dias a mais, chegando a 91 dias por ano) em comparação ao cenário de 1,5°C.
E na Indonésia as cidades enfrentam alguns dos maiores riscos decorrentes das temperaturas mais altas e da maior incidência de doenças. Na comparação entre os cenários de 1,5°C e 3°C de aquecimento, três das quatro cidades do mundo com o maior aumento estimado em dias favoráveis para a transmissão de arboviroses estão na Indonésia: Yogyakarta (aumento de 273 dias), Jember (aumento de 151 dias) e Padang (aumento de 148 dias).
O aquecimento de 3°C não é um destino inevitável
O futuro com 3°C de aquecimento parece terrível, mas esses dados são apenas uma estimativa dos efeitos para um dos caminho possíveis. Temos uma escolha a fazer em relação ao futuro do clima. A tecnologia já existe – com vontade política, ainda podemos mitigar o pior desses efeitos.
Governos nacionais e locais precisam agir com urgência para tornar as cidades mais resilientes e, ao mesmo tempo, reduzir emissões. Prioridades específicas incluem:
- Aumentar as políticas para reduzir emissões de gases de efeito estufa: os problemas climáticos só vão piorar até que o mundo reduza as emissões e chegue ao zero líquido. Os governos nacionais precisam implementar políticas alinhadas com o Acordo Internacional de Paris, enquanto as cidades podem definir metas e implementar medidas para contribuir com esse objetivo.
- Aumentar o financiamento para a adaptação climática:muitas cidades de baixa renda possuem planos de adaptação climática, mas a implementação das ações previstas demora devido à falta de financiamento. As necessidades de adaptação dos países de baixa renda somam US$ 387 bilhões por ano – 10 a 18 vezes maisdo que os atuais fluxos internacionais de financiamento público para adaptação.
- Investir em infraestruturas resilientes: soluções de adaptação comoinfraestruturas de resfriamento, sistemas de alerta e planos de ação para conter o calor protegem a saúde das pessoas e aumentam a resiliência de longo prazo das cidades. Soluções baseadas na natureza, como florestas urbanas e zonas úmidas, também contribuem com essas finalidades, além dos benefícios adicionais oferecidos pela natureza aos moradores das cidades.
- Melhorar a colaboração governos municipais e nacionais e entre os departamentos de uma mesma cidade: parcerias e coordenação entre diferentes setores e instâncias de governo são essenciais para reduzir as emissões e construir resiliência na escala necessária para evitar mortes e melhorar a vida das pessoas. Enquanto em muitas partes do mundo os diferentes níveis de governo tendem a operar de forma isolada, alguns governos nacionais reconhecem a importância das cidades e as consideram aliadas na ação climática. Na cúpula climática da ONU de 2023 (COP28), por meio da Iniciativa CHAMP, mais de 70 países se comprometeram a colaborar com as cidades em seus próximos planos climáticos nacionais, previstos para o início de 2025, e outros devem seguir o exemplo.
- Adotar uma abordagem de ação baseada em dados: previsões de ameaças climáticas para as cidades podem ajudá-las a focar nas ameaças mais prováveis e urgentes e, ao mesmo tempo, embasar investimentos e políticas. Dados relevantes para as cidades e em escala municipal, como os nossos, precisam estar no centro do planejamento e definição orçamentária de medidas de adaptação e resiliência.
Os dados para todas as 14 ameaças climáticas, calculados para 996 cidades, estão disponíveis aqui. Para este artigo, a menos que indicado de outra forma, usamos os dados do modelo climático de melhor desempenho para cada local (o modelo que melhor corresponde ao registro meteorológico histórico para cada cidade nos períodos de tempo em que se sobrepõem), mas o conjunto de dados inclui dados dos três modelos de melhor desempenho. Os dados também incluem desvios-padrão para nossas estimativas, bem como estimativas e desvios-padrão de probabilidades de que a magnitude da ameaça exceda certos limites. Os métodos subjacentes às nossas estimativas de magnitudes médias de ameaça e probabilidades de excedência de limite estão detalhados nesta nota técnica. Os métodos que utilizamos para modelar cenários de aquecimento, bem como nossas definições sobre os 14 ameaças climáticas avaliadas, estão detalhados nesta nota técnica.
O conjunto de dados é formatado para ser mais útil para analistas de dados equipados com software de análise estatística. Para todos os outros, nós reunimos esta ferramenta de exploração amigável.
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Este artigo foi publicado originalmente no Insights.
Notas de rodapé
1 Nossas cidades são baseadas nas definições, dados populacionais de 2015 e extensões espaciais do GHS Urban Centre Database.
2 Não existe uma definição universal de “onda de calor”. Para este artigo, definimos como três ou mais dias consecutivos nos quais a temperatura máxima é igual ou excede o 90º percentil local da temperatura máxima diária, conforme determinado pelo conjunto de dados ECMWF ERA5 durante o período de 40 anos de 1980 a 2019.
3 Exposure estimates are based on the 2020 populations in the Global Human Settlement Layer’s GHS-POP dataset.
4 Analisamos os graus-dias de resfriamento, a soma anual de desvios médios diários positivos de temperatura em relação a uma temperatura limite, além de um indicador de demanda de energia para resfriamento. Especificamente, calculamos o CDD21, a soma anual dos desvios positivos diários de 21°C.
5 As estimativas de exposição são baseadas nas populações de 2020 no conjunto de dados GHS-POP, da Global Human Settlement Layer.
6 Usamos as faixas de 22,9°C a 27,8°C e 26°C a 29°C para mosquitos transmissores de malária e arboviroses, respectivamente. Estima-se que essas sejam temperaturas ótimas para a atividade do mosquito, mas a transmissão também pode ocorrer fora dessas faixas. Além disso, observe que muitos locais apresentam temperaturas dentro das faixas ótimas, mas não têm registros de presença dos mosquitos transmissores. Nossas estimativas, portanto, podem superestimar o risco de mudança na prevalência da doença.