2023 registrou recordes de temperatura em todo o mundo. Pessoas de diferentes regiões do planeta já enfrentam ondas de calor históricas, incêndios florestais e secas com apenas 1,1°C de aquecimento em relação aos níveis pré-industriais. Com as políticas atuais, que colocam o mundo a caminho de um cenário de 2,5°C a 2,9°C de aquecimento até 2100, o calor sufocante que sentimos este ano é apenas uma pequena amostra do futuro que temos pela frente.

Em um mundo em aquecimento, as cidades sofrem ainda mais com as altas temperaturas do que as zonas rurais. Em primeiro lugar, porque abrigam a maior parte da população. Mas a exposição às altas temperaturas também é amplificada pelo efeito das ilhas de calor urbanas, em que a concentração de edifícios, concreto e outras infraestruturas aprisiona o calor em uma determinada área. Densidade populacional, poluição atmosférica, pobreza e a geografia local são outros fatores que aumentam ainda mais a vulnerabilidade das pessoas nas cidades. 

Diante desse cenário, quais as implicações de temperaturas ainda mais altas no que diz respeito à exposição dos moradores de cidades ao calor extremo? Precisamos de dados mais detalhados para afirmar com precisão, mas modelos globais do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) começam a traçar um panorama.

Diferenças no calor urbano com 1,5°C e 3°C de aquecimento

De acordo com o IPCC, níveis potencialmente fatais de calor e umidade devem afetar de 50% a 75% da população mundial até 2100. As cidades – que atualmente já abrigam mais de metade da população do planeta e devem aumentar esse contingente em 2,5 bilhões de pessoas até 2050 – estarão expostas ao dobro do nível de estresse térmico em comparação às áreas rurais no entorno.

Sobrepondo a localização das cidades aos modelos do IPCC para gerar dados mais específicos, começamos a ter um panorama mais claro de por que é tão importante manter o aquecimento global dentro do limite de 1,5°C, a meta estabelecida pelo Acordo de Paris.

Observamos um indicador relacionado ao calor extremo: o número de dias por ano em que a temperatura máxima ultrapassa os 35°C. Esse nível de calor está associado a uma série de efeitos graves para a saúde, além do estresse causado em termos de economia e infraestrutura. O IPCC afirma que o calor extremo nas áreas urbanas vai aumentar os níveis de mortalidade e doenças cardíacas, principalmente entre crianças e idosos; prejudicar a concentração e a cognição, afetando o aprendizado e a educação das crianças, em especial na África e no Sul da Ásia; e reduzir a capacidade de trabalho durante os horários mais quentes em 20% ou mais até 2050 – mais do que os 10% já registrados atualmente. Apenas nos Estados Unidos, o calor extremo já representa um custo de US$ 100 bilhões por ano – e deve chegar a US$ 500 bilhões até 2050.

Esses riscos crescem a cada fração de aumento nas temperaturas, por menor que seja. O número de moradores urbanos expostos a pelo menos oito dias por ano a temperaturas superiores a 35°C passa de 66% com 1,5°C de aquecimento para 85% com 3°C.

Muitas cidades se tornarão lugares onde as temperaturas extremas prevalecerão por quase metade do ano. Com 1,5°C de aquecimento, 67 cidades devem enfrentar 150 dias ou mais com as temperaturas acima de 35°C; em um cenário de 3°C de aquecimento, esse número aumenta para 197 cidades. Mais de metade dessas cidades (103) estão na Índia. E, em muitas cidades, o aumento da temperatura tende a ser ainda maior, uma vez que essa modelagem não considera o efeito das ilhas de calor.

As cidades com poucos recursos e os moradores de baixa renda serão os mais afetados pelo calor extremo

O mapeamento da exposição ao calor extremo também ilustra a distribuição desigual dos impactos climáticos. Nem todas as cidades apresentam as mesmas vulnerabilidades ou a mesma capacidade de adaptação. As cidades com menos recursos para se adaptar estarão entre as mais duramente atingidas pelos altos níveis de calor.

Embora, em média, as cidades devam enfrentar 29 dias de calor extremo a mais em um cenário de 3°C de aquecimento do que com 1,5°C, a diferença é maior no caso das cidades em regiões menos desenvolvidas e de renda mais baixa. No Sul da Ásia, serão 40 dias a mais; na África Subsaariana, 38 dias; na América Latine e no Caribe, 34 dias. Para as cidades de países de renda média-baixa, 38 dias; nos países de renda baixa, 34 dias. Em geral, essas costumam ser cidades que também estão em rápido crescimento e carecem de capacidade institucional e fiscal para ser adaptar.

A pesquisa do IPCC mostra que, dentro das cidades, os grupos econômica e socialmente marginalizados serão os mais afetados. É a população de renda mais baixa – incluindo em torno de um bilhão de pessoas que vivem em favelas ou assentamentos informais: pessoas que, em geral, vivem em áreas mais quentes e de densidade populacional mais alta, respirando um ar de baixa qualidade, ou em edifícios com telhados de metal, sem sistemas de isolamento ou resfriamento. Por exemplo, uma análise do WRI Índia descobriu que a temperatura em uma das favelas de Mumbai chega a ser em média 6°C mais quente do que nas áreas do entorno. 

A população de baixa renda também tende a ter empregos que exigem trabalho braçal e ao ar livre – e com frequência não contam com a proteção e segurança necessárias. Hoje, um a cada três moradores urbanos não possui acesso a pelo menos um serviço básico, como moradia digna, água limpa, saneamento ou eletricidade segura. E essa lacuna nos serviços urbanos está se tornando cada vez mais profunda. Se nos mantivermos na trajetória atual, as favelas devem continuar crescendo nos países em desenvolvimento. 

A adaptação pode ser difícil mesmo para as cidades mais preparadas

A modelagem de cenários futuros para o meio urbano não é apenas um exercício hipotético – as cidades já estão passando por uma série de mudanças significativas. Ahmedabad, na Índia, sempre foi uma cidade quente, mas em 2013 condições próximas do insuportável levaram a cidade a lançar o primeiro Plano de Ação contra o Calor de âmbito municipal no Sul da Ásia. 

O plano foca em promover a conscientização da população, implantar um sistema de alerta, aprimorar a capacidade de atendimento do sistema de saúde, reduzir a exposição e implementar medidas de adaptação, como iniciativas lideradas por mulheres e baseadas nas comunidades. Devido à falta de áreas verdes, a cidade também tem trabalhado para aumentar a arborização. As autoridades locais e grupos da sociedade civil coletaram dados que mostram que essas medidas podem evitar 1.100 mortes relacionadas ao calor por ano, senão mais. 

Nossa análise indica que o calor extremo em Ahmedabad vai ficar muito pior. Com médias recentes já registrando 164 dias por ano com temperaturas acima dos 35°C, esse número pode chegar a 225 dias por ano em um cenário de 3°C de aquecimento. Isso é algo próximo do que já acontece em cidades próximas do Saara, como Maiduguri, na Nigéria.

No caso de Ahmedabad, uma série de desafios impede a cidade de progredir ainda mais, apesar de já ser uma pioneira em seus esforços. Os formuladores de políticas ainda não incorporaram por completo considerações relativas ao calor nas políticas de desenvolvimento da cidade, como o planejamento do uso do solo. A implementação do plano de ação foi relegada à condição de resposta de emergência, e a cidade luta para atender aos grupos mais vulneráveis. Aumentar a vontade política e os recursos financeiros para implementar e expandir as soluções com mais agilidade são outros desafios.

crianças e mulher em um assentamento precário em Ahmedabad
Em 2013, Ahmedabad lançou o primeiro Plano de Ação contra o Calor entre as cidades do Sul da Ásia, mas enfrenta temperaturas cada vez mais altas e possui poucos dados para embasar políticas locais. (Foto: WRI)

Preenchendo a lacuna de dados climáticos locais

O que poderia ajudar Ahmedabad e outras cidades em situação semelhante são dados mais acessíveis e precisos sobre os impactos específicos que suas cidades devem enfrentar e quando. Informações sobre mudanças bruscas de temperatura e outras ameaças climáticas atualmente são difíceis de acessar ou mesmo indisponíveis em escala municipal.

Como devem ser modelos climáticos para cidades?

Modelos climáticos mais úteis, feitos na escala das cidades, como os que o WRI tem desenvolvido, podem oferecer:

Maior resolução espacial: existem modelos de escala reduzida para alguns cenários climáticos, mas as informações contidas neles podem ser mais difíceis de acessar ou a resolução pode não permitir compreender os impactos na escala dos bairros e as desigualdades na escala das cidades.

Indicadores mais específicos conforme o propósito e o público da análise: indicadores municipais devem focar na gestão de ameaças às pessoas, meios de subsistência, serviços e ativos, considerando que diferentes setores municipais possuem diferentes necessidades. O sistema público de saúde, por exemplo, pode ter interesse em acompanhar ondas de calor noturnas, enquanto o setor de transportes pode estar mais preocupado com temperaturas extremas durante o dia.

Mais informações sobre probabilidades e incertezas: para um planejamento eficiente, as cidades precisam saber quais são os impactos específicos que tendem a afetá-las. Estabelecer prioridades de acordo com possíveis caminhos e aumentar a preparação para os riscos pode evitar as piores consequências.

Fácil acesso a informações, com a opção de se aprofundar no assunto: as cidades precisam de informações práticas e personalizadas. Tanto indicadores-padrão mais abrangentes para embasar novas políticas quanto indicadores personalizados que incluam parâmetros e limites para atender às necessidades locais. 

Dados integrados sobre ameaças, exposição e vulnerabilidade: ao combinar dados climáticos com informações socioeconômicas e populacionais locais, dados de alta resolução sobre ameaças climáticas podem viabilizar novos insights para embasar ações em comunidades vulneráveis.

WRI, Bloomberg Philanthropies e outros parceiros trabalham no desenvolvimento de novas soluções de dados para suprir essas necessidades. Dados climáticos mais precisos em escala municipal podem embasar decisões locais com informações de qualidade sobre eventos climáticos extremos e a frequência com que devem ocorrer, além de indicações sobre quais setores devem ser mais afetados. 

Modelos melhores podem ajudar a alocar mais recursos para a ação climática em âmbito municipal, como por meio da Cities Climate Finance Leadership Alliance (Aliança de Liderança de Financiamento Climático das Cidades). Informações que permitem ações práticas podem fortalecer o envolvimento da sociedade civil e a conscientização das comunidades mais vulneráveis, além de permitir mais autonomia e participação na ação climática. Dados melhores também podem fortalecer a colaboração entre os governos locais e nacionais, uma vez que os riscos – e possíveis caminhos de ação a partir das políticas públicas – seriam mais claros. Modelos climáticos mais precisos podem e devem ser usados para estabelecer, revisar e atingir metas de planejamento urbano e financiamento climático.

Para termos cidades habitáveis, precisamos manter o aquecimento abaixo de 1,5°C

Como mostram até mesmo os modelos de escala global da exposição das cidades a ameaças climáticas – sem falar no que passaram milhões de pessoas durante o ano mais quente de que se tem registro –, o mundo precisa se recomprometer a manter o aquecimento abaixo de 1,5°C para manter as cidades habitáveis. Aumentar a ambição de investimentos e compromissos de mitigação locais e nacionais é imprescindível, e isso precisa acontecer junto a capacitação e disponibilização de recursos para a adaptação nas cidades, a fim de lidar com os riscos climáticos já enfrentados pelas comunidades.

Mas não devemos subestimar o tamanho desse desafio. Cidades são os sistemas mais complexos da humanidade. Nós precisamos planejar, construir e viver de forma diferente nesses espaços para nos prepararmos para os impactos das mudanças climáticas e ajudar a transformar as cidades em soluções climáticas. Uma mudança transformacional desse tipo não pode acontecer sem intervenções em múltiplos níveis e informações locais mais práticas – a fim de justificar trilhões em investimentos, fazer escolhas políticas bem embasadas e proteger e empoderar os grupos que correm os maiores riscos.

Este trabalho conta com o apoio, em parte, da Bloomberg Philanthropies.

Observação sobre o método: o número de dias por ano com temperatura máxima superior a 35°C é medido usando o ajuste de viés TX35 do CMIP6, acessado a partir do Atlas Interativo do IPCC, calculado usando interpolação bilinear para cada cidade com mais de 500 mil habitantes em 2015, a partir do GHS Urban Center Database (GHS-UCD). As populações municipais também são do GHS-UCD. As categorias de renda das regiões e países são do Banco Mundial.