Como comunidades religiosas na América Latina se tornaram defensoras da vida e dos territórios
“Se perdermos a natureza, também nos perderemos.”
Essas são palavras de uma líder religiosa cuja comunidade foi ameaçada pela construção da Barragem de Belo Monte, em Altamira, no Pará. A barragem, que começou a operar em 2016, inundou terras indígenas e deslocou mais de 40 mil famílias, muitas das quais ainda aguardam um reassentamento adequado. A construção também causou graves danos ambientais, levando os pescadores locais a falar da “barragem que matou o rio”.
Essa líder religiosa é uma entre tantas pessoas de comunidades locais que lutam contra as ameaças às florestas, rios e ecossistemas dos quais dependem para obter alimentos, medicamentos e meios de subsistência e manter suas tradições culturais. O panorama está cada vez mais perigoso: a América Latina é a região mais letal para ativistas ambientais, onde mais de mil pessoas perderam a vida desde 2012 e muitas outras sofrem com intimidações, assédio e ameaças às suas vidas e famílias.
Mas eles não estão sozinhos: uma nova pesquisa do WRI e do Instituto de Pesquisa Laudato Si’ concluiu que as comunidades religiosas na América Latina desempenham um papel fundamental na defesa da vida e do território.
Algumas comunidades religiosas no Brasil, na Colômbia e no México têm redefinido seus papéis, expandindo para além das práticas religiosas tradicionais e se tornando defensores ativos dos territórios, ecossistemas e das pessoas que os protegem. Esses grupos oferecem não só apoio moral e espiritual aos ativistas ambientais, mas recursos práticos e redes que contribuem para sua segurança e para a eficácia de suas ações.
Pelo fim da exploração de petróleo em Caquetá, na Colômbia
Na região de Caquetá, na Colômbia, no coração da Amazônia colombiana, comunidades religiosas têm se organizado para resistir à exploração de petróleo liderada por empresas multinacionais com o apoio do governo colombiano. Se concluído, o bloco petrolífero El Nogal pode se tornar o maior projeto de exploração de petróleo na Amazônia colombiana, cobrindo 239.415 hectares e ameaçando a saúde das pessoas e dos ecossistemas com a contaminação da água e do solo.
Caquetá e seus moradores conhecem bem os conflitos socioambientais. Durante décadas, as políticas governamentais flexibilizaram as regulamentações ambientais e promoveram o investimento internacional em indústrias como combustíveis fósseis, mineração e culturas de exportação. Essa combinação de fatores incentivou a extração dos recursos naturais da região e a expansão da agricultura. Como resultado, Caquetá assistiu a uma rápida perda florestal: a região perdeu 791 mil hectares de cobertura florestal entre 2000 e 2021, uma área quase do tamanho de Porto Rico. As comunidades próximas alegam que essas atividades também esgotaram e poluíram a bacia do rio Caquetá, que representa 31% da Amazônia colombiana.
A população local convive com as consequências dessa degradação ambiental. Muitos vivem com problemas crônicos de saúde causados pela poluição, perderam o acesso à água potável, meios de subsistência e foram até mesmo forçados a migrar.
A Igreja Católica Vicaría del Sur foi criada para defender o povo e a natureza de Caquetá dessas ameaças. O grupo atua para apoiar os ativistas ambientais e fortalecer a unidade enraizada na crença espiritual de que “água é vida”. As Comisiones por la Vida del Agua (Comissões pela Vida da Água) surgiram como resposta aos novos projetos de exploração de petróleo na década de 2010. São organizações da sociedade civil não formais e não hierárquicas por meio das quais as comunidades religiosas locais se unem para refletir e traçar estratégias de resistência para proteger a água, da qual depende a vida como um todo. O trabalho parte de uma visão de mundo baseada na fé que motiva a transformação social e ecológica e oferece às pessoas perseverança e força para prosseguir apesar das adversidades.
Ao mesclar espiritualidade e direitos humanos, as Comisiones por la Vida del Agua tornaram-se centros de ação coletiva não violenta e até hoje conseguiram impedir o avanço de projetos como o El Nogal e outros na região. Os grupos agem por meio de protestos e atividades simbólicas de resistência em Caquetá, como liturgias especiais sobre a água, e organizam comunidades rurais para zelar pela Amazônia “como prática de fé”. Colaborando com outros atores sociais da região, as Comissões proporcionam às comunidades locais conhecimentos essenciais sobre direitos humanos, titulação de terras e outros aspectos relevantes para o dia a dia na região. Também facilitam o monitoramento comunitário da água, munindo as comunidades com as ferramentas necessárias para defenderem os seus direitos e protegerem as suas terras.
Já se passaram oito anos desde que as empresas por trás do projeto de El Nogal entraram em Caquetá para iniciar a exploração de petróleo. Apesar de terem recebido licenciamento ambiental, não têm conseguido realizar outros estudos exploratórios para além de estudos sísmicos. Como a licença expirou em setembro de 2023, é muito provável que essas explorações não ocorram. As Comissões continuam agindo, unindo-se cada vez mais a outras organizações da sociedade civil para gerar oportunidades econômicas e sociais alternativas em harmonia com a natureza, como as iniciativas agroecológicas.
Resistência à “Rodovia das Culturas” em Chiapas, no México
A Carretera de las Culturas (Rodovia das Culturas) em Chiapas, no México, é uma rodovia de 157 km planejada para conectar os municípios de San Cristóbal, no sudoeste de Chiapas, e Palenque, no nordeste – além da conexão ao Trem Maya, a ferrovia intermunicipal atualmente em construção na Península de Yucatán. Além da perda de terras e dos danos ecológicos causados pela construção da rodovia, as comunidades locais temem que a via traga para a região atividades econômicas industriais, extrativistas e outras ambientalmente negativas.
O projeto motivou um grande movimento social liderado pela fé, conhecido como “Movimiento en Defensa de la Vida y el Territorio” (Movimento em Defesa da Vida e do Território, ou Modevite). O Modevite abrange uma ampla gama de comunidades católicas e indígenas, incluindo os grupos étnicos tseltales, tsotsiles e ch'oles, e faz parte da Diocese de San Cristóbal de las Casas. O movimento atua para resistir à Rodovia das Culturas, capacitando os povos indígenas locais para que possam estabelecer uma base sólida da sociedade civil, conhecer seus direitos e fortalecer a coesão social.
O Modevite contesta a narrativa dominante de que os megaprojetos de infraestruturas trarão maiores oportunidades socioeconômicas para as comunidades da região. O grupo trabalha para desenvolver modelos alternativos de desenvolvimento socioeconômico, como a agroecologia e iniciativas de economia social e solidária. O objetivo é criar empregos locais e dignos para os jovens e proteger a “Mãe Terra” e toda a vida no território.
Nossa pesquisa mostra que a fé tem desempenhado um papel fundamental nos esforços do Modevite. As ações do grupo têm sido facilitadas pelo trabalho da Diocese de San Cristóbal de las Casas, que atua historicamente na formação em direitos humanos, formação bíblica, educação para a não-violência, programas sociais, entre outras frentes. Essa colaboração ajuda a promover um senso de pertencimento, unidade, solidariedade, persistência e esperança diante das violências estruturais e adversidades sistêmicas.
O grupo enfrenta situações complexas e desafiadoras. Os membros do movimento citam ameaças de crime organizado, pobreza, exclusão social, racismo e degradação ecológica associados ao projeto da rodovia. Em 2023, cinco indígenas da filial do Modevite em Cancuc que se opuseram à construção rodovia foram condenados a 25 anos de prisão, acusados de um assassinato do qual são inocentes. No entanto, a fé, entendida como uma conexão com Deus e com a vida de forma geral, é o que lhes dá forças para superar as adversidades. Como comentou um informante do Modevite: “Ter [uma] ligação à natureza dentro de nós é a base da defesa da vida e dos territórios. A espiritualidade que nossos ancestrais nos deram é o que nos dá força. Sem espiritualidade, não podemos entrar nessa luta”.
O poder das comunidades religiosas para defender a vida e a terra
As comunidades religiosas podem ajudar a promover transformações fundamentais na estrutura da sociedade civil da América Latina. Podem forjar um profundo sentimento de esperança e unidade entre diferentes grupos étnicos e inspirar um sentimento de solidariedade diante dos imensos desafios ambientais e de desenvolvimento enfrentados hoje.
As comunidades religiosas locais também podem alavancar redes poderosas. O reconhecimento e o apoio de instituições religiosas globais podem amplificar os esforços das comunidades locais, proporcionando a visibilidade e os recursos de que precisam para continuar seu trabalho. Em Caquetá, por exemplo, a Igreja Católica facilitou o financiamento de uma avaliação alternativa de impacto ambiental. De forma geral, o Papa Francisco chamou a atenção da mídia global e das plataformas políticas para a vida das comunidades indígenas e a situação na região amazônica. Nas palavras de um líder religioso local de Altamira, no Pará, falando sobre a barragem de Belo Monte: “A Igreja sempre defendeu a vida. A natureza é a vida. Ela [a Igreja] está defendendo a natureza, a vida que vem de Deus. O Papa chamou nossa atenção para o modo de vida moderno, do mercantilismo e do utilitarismo. Nós precisamos lutar contra isso”.
No entanto, essas comunidades precisam de mais reconhecimento e colaboração, tanto dentro quanto fora de suas organizações, para que possam ter um impacto ainda maior.
Apesar de suas contribuições significativas, as mulheres de comunidades religiosas muitas vezes não recebem o reconhecimento formal por seus papéis de liderança – uma disparidade que ressalta algumas estruturas eclesiásticas e sociais mais profundas. Ainda assim, as mulheres com frequência estão à frente dos movimentos, impulsionando iniciativas que não só desafiam os modelos de desenvolvimento existentes como os reimaginam. Por exemplo, no trabalho da Igreja Vicaría, na Colômbia, as estratégias de proteção territorial incluem o empoderamento das mulheres, a igualdade de gênero e a ênfase na liderança feminina. Lutar contra a violência de gênero também é uma prioridade no movimento Modevite.
Para concretizar a promessa de um desenvolvimento sustentável e liderado pelas comunidades, organizações internacionais, governos e sociedade civil precisam reconhecer e envolver as comunidades religiosas como parceiras essenciais na defesa ambiental. Isso envolve:
- Reconhecer de forma explícita o papel das comunidades religiosas nas disputas socioambientais e suas contribuições para a defesa da vida e dos territórios.
- Apoiar a liderança das mulheres e garantir que suas contribuições e participação na defesa da vida e dos territórios recebam apoio e reconhecimento formal.
- Adotar estratégias de desenvolvimento lideradas pelas comunidades que integrem as visões e valores das comunidades religiosas locais.
- Fornecer apoio financeiro e jurídico para que as comunidades religiosas tenham os recursos financeiros e garantias jurídicas necessárias para manter seu trabalho na defesa de direitos com segurança e eficácia.
- Utilizar plataformas políticas e da sociedade civil – rádios comunitárias, ativismo nas redes sociais, coalizões políticas, entre outras – para amplificar as vozes e histórias de comunidades religiosas e ativistas ambientais, dando visibilidade para as lutas e o trabalho que realizam a um público mais amplo.
A fé traz esperança
As comunidades religiosas trazem perspectivas e estratégias únicas para as disputas socioambientais e podem desempenhar um papel fundamental na proteção da vida humana e ecológica. Mas elas não podem fazer isso sozinhas: todos os atores devem trabalhar em conjunto para apoiar e ampliar seus esforços na defesa do meio ambiente.
Como explica o líder comunitário do estudo de caso de Belo Monte: “A conexão com a vida é a fonte de esperança para reconstruir o que foi destruído. Sem essa conexão, essa força que vem da conexão com as florestas, com os rios e com nossos ancestrais, não haveria motivação para lutar... Nossas lutas são lutas pela sobrevivência. Rios e florestas são tudo, sem eles não há vida”.
Este artigo foi publicado originalmente no Insights.