Reduzir velocidades é uma das formas mais efetivas de se evitar mortes no trânsito e de diminuir a severidade dos traumas das vítimas. No ano em que a Covid-19 abalou o mundo, um movimento positivo de segurança viária avançou em vários lugares da Europa: a implementação do limite padrão de 30 km/h em vias urbanas, na esteira da assinatura da Declaração de Estocolmo. O que era exceção vira regra – com potencial de salvar milhares de vidas. Se faz sentido na Holanda, na Espanha, em Paris e em Bruxelas, por que não faria no Brasil?

Sabe-se que a velocidade é um dos principais fatores de risco associados a sinistros de trânsito (leia sobre o termo no quadro abaixo) em todo o mundo. A redução de 1,6 km/h na velocidade dos carros resulta em 6% menos mortes no trânsito. Além dos benefícios diretos em segurança, velocidades mais baixas significam menos emissões de carbono e poluição do ar e sonora. A cidade torna-se mais amigável e segura para quem caminha, pedala e convive nos espaços públicos.

Brasil deve adotar termo "sinistro"

A Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT) publicou no final de janeiro a norma NBR 10697, que determina que se passe a adotar a denominação de sinistro de trânsito para situações como colisões e atropelamentos, comumente chamadas de acidentes. É uma reivindicação antiga de especialistas em segurança viária, dado que esses eventos, via de regra, não são acidentes, mas fatos evitáveis, decorrentes de negligências ou erros técnicos no planejamento, na implementação e na manutenção das infraestruturas viárias, bem como de falhas das pessoas que as utilizam. O termo sinistro passa a ter embasamento jurídico em conformidade com os preceitos da Visão Zero e Sistemas Seguros, como já ocorre em diversos países (siniestro em espanhol e crash em inglês).

Em 2014, Nova York decidiu reduzir pela primeira vez na sua história o limite de velocidade para 40 km/h em cerca de 90% das vias da cidade. O resultado: enquanto os Estados Unidos observavam um aumento de 15% nas fatalidades, a cidade mais populosa do país obtinha uma redução de 25%. Exemplos latino-americanos seguiram a mesma tendencia. Em 2016, São Paulo reduziu a velocidade de suas vias arteriais para 50 km/h e hoje é uma das capitais com menor índice de fatalidades no trânsito no Brasil (6,2 mortes/100.000 habitantes). Bogotá lançou um Plano de Gestão de Velocidades em 2019 que estabelece limites de velocidade mais baixos para diferentes vias, incluindo 50 km/h para vias arteriais. O plano deu à cidade o prêmio internacional Prince Michael para Segurança Viária.

Cidades e países pisam no freio em nome da vida

Nos últimos meses, a tendência ganhou força na Europa em meio ao impacto profundo da pandemia de Covid-19 nos padrões de deslocamento nas cidades, que viabilizaram intervenções de segurança viária ao mesmo tempo que evidenciaram como ruas vazias trazem resultados nem sempre previsíveis para os sinistros de trânsito. No início de 2020, antes do avanço da pandemia, 140 países – incluindo o Brasil – assinaram a Declaração de Estocolmo, comprometendo-se a reduzir os óbitos no trânsito pela metade até 2030 – e subscrevendo uma série de medidas, como a de reduzir os limites de velocidade a 30 km/h em áreas compartilhadas por usuários vulneráveis e veículos automotores.

Nações e cidades europeias começaram a colocar as medidas em prática. Em Bruxelas, 2021 começou com ruas mais calmas, com a entrada em vigor do novo limite de 30 km/h em toda a cidade, à exceção de algumas arteriais. A prefeita Cécile Jodogne disse esperar que a medida torne a cidade mais segura para todas as pessoas e ainda contribua para vizinhanças mais silenciosas.

Outras cidades seguem o mesmo caminho. A prefeita de Paris, Anne Hidalgo, iniciou o segundo mandato em junho de 2020, em meio à pandemia de Covid-19, com a promessa de melhorias contundentes na mobilidade da cidade, incluindo tornar padrão o limite de 30 km/h que já vigora em 60% das vias parisienses. A mudança é esperada para o início de 2021. Na Noruega, Oslo implementou o limite de 30 km/h em áreas escolares e, em alguns casos, proibiu o tráfego de carros nessas áreas – as chamadas “zonas coração”.

As iniciativas também têm ocorrido em nível nacional, inclusive em países que já apresentam baixas taxas de fatalidade no trânsito. Na Espanha, depois de uma alta na morte de pedestres, ciclistas e motociclistas em 2019, as autoridades anunciaram o plano de reduzir o limite padrão de 50 km/h para 30 km/h. O parlamento holandês aprovou em novembro medida semelhante. O Instituto de Pesquisa sobre Segurança Viária (SWOV, na sigla em holandês) espera uma queda de 22% a 31% das mortes e lesões no trânsito.

Um dos principais fatores de risco no trânsito

Gestores não adotam medidas frequentemente impopulares como a redução de velocidades de forma arbitrária: a velocidade é um dos principais fatores de risco no trânsito, tanto para a ocorrência de uma colisão quanto para a gravidade dos danos quando a colisão ocorre. Um pedestre ou ciclista atingido por um carro a 50 km/h tem 15% de chance de sobreviver – se o carro estiver a 30 km/h, a chance sobre para 90%.

<p>Figura 2 - O risco de um pedestre ou ciclista morrer em uma colisão aumenta conforme a velocidade do veículo</p>

Além disso, a velocidade também aumenta as chances de sinistros acontecerem, já que restringe o campo de visão do motorista, comprometendo sua visão periférica e tornando-o mais suscetível a não perceber a presença de um pedestre ou ciclista próximo ao veículo.

Embora enfrente resistência de parte da sociedade que acredita que a medida atrapalha o dinamismo e a agilidade dos deslocamentos nas grandes cidades, isso não é necessariamente verdade. Um exemplo: a redução de velocidade nas marginais de São Paulo entre 2014 e 2015 (leia abaixo) não apenas salvou vidas, mas há indícios de que também contribuiu para a redução dos congestionamentos na cidade.

No Brasil, a velocidade tem vencido a vida

O Brasil é o nono país com maior taxa de mortes no trânsito nas Américas, segundo relatório de 2019 da Organização Panamericana de Saúde (Opas), com taxa de 19,7 mortes por 100 mil habitantes. É mais do que três vezes a taxa da Bélgica (5,8), quatro vezes e meia a da Espanha (4,1) e cinco vezes a da Holanda (3,8), para mencionar alguns dos países em que avança a adoção do limite de 30 km/h.

Quer dizer, embora o Brasil tenha obtido melhora sensível no número de fatalidades no trânsito nos últimos 10 anos, é possível construir um trânsito em que muito menos vidas sejam perdidas.

<p>gráfico com mortes no trânsito no Brasil segundo o Datasus</p>

O país tem emitido sinais dúbios, e a redução nos sinistros vem sendo mais fraca ano após ano, o que liga um alerta sobre o tema. Em 2019, o governo federal lançou o Plano Nacional de Redução de Mortes e Lesões no Trânsito (Pnatrans), com o mérito de incluir na política nacional de segurança viária o objetivo de reduzir pela metade o número de sinistros no trânsito em um período de 10 anos. Mas, no ano seguinte, deu passo em sinal contrário ao aprovar a alteração no Código de Trânsito Brasileiro (CTB) aumentando de 20 para 40 pontos o limite de infrações que acarreta a perda da carteira de habilitação – permitindo que motoristas que acumulam infrações graves sigam dirigindo impunes.

O CTB define limites de velocidade para onde não houver sinalização regulamentada pelas cidades, o que não as impede de estabelecer limites menores de acordo com critérios técnicos – o que é desejável, já que o CTB não está de acordo com os limites indicados pela OMS. E é assim que a pauta da segurança viária avança, ainda que muito timidamente, nas cidades brasileiras – e que pode avançar a redução de velocidades.

Caminhos para começar a reduzir velocidades

Um dos entendimentos das abordagens de Sistema Seguro e Visão Zero é que a mera punição de infratores não é suficiente para conter e reduzir mortes no trânsito. Usuários, planejadores e projetistas compartilham a responsabilidade pela segurança viária – ou seja, o desenho das ruas – a infraestrutura – deve ser projetado para “frear” comportamentos de risco e promover a segurança de todos os usuários, sobretudo dos mais vulneráveis: pedestres e ciclistas.

É preciso, sim, punir quem adota comportamento imprudente, mas também, adotar abordagens que priorizem salvar vidas desde a etapa de projeto das vias. Reduzir os limites de velocidade é um passo importante, mas deve ser acompanhado de mudanças no desenho viário. Há uma série de práticas e estratégias que podem ajudar a reduzir mortes, ao mesmo tempo em que proveem cidades mais humanas, resilientes e acolhedoras para quem caminha e pedala.

Áreas de acalmamento de tráfego como as implementadas em Oslo tratam de levar mais segurança a locais críticos, como o entorno de escolas, ou regiões com intenso fluxo de pedestres. Em 2015, Curitiba implementou uma área calma em 140 quarteirões da região central da cidade, limitando a velocidade a 40 km/h. Em um ano, a capital paranaense registrou 24,7% menos atendimentos em sinistros com vítimas, 46,7% menos atendimentos em sinistros sem vítimas e 34,5% menos registros de sinistros na região.

O novo Manual de Desenho Urbano e Obras Viárias de São Paulo traz diretrizes para a implantação de projetos do tipo, alinhadas ao Vida Segura, plano de segurança viária da capital paulista que tem meta de reduzir o índice de mortes no trânsito para três óbitos por 100 mil habitantes até 2028 e colocar São Paulo entre as grandes cidades com trânsito mais seguro do mundo. Para tanto, uma das estratégias é estabelecer zonas com limite de 30 km/h nas várias regiões da cidade. Há projetos em São Miguel Paulista, Santana, Lapa e Sé.

Reduzir limites de velocidade em vias arteriais, como fez São Paulo entre agosto de 2014 a dezembro de 2015. A cidade experimentou a redução de velocidade em quase todas as vias arteriais, chegando ao fim de 2015 com cerca de 700 km de vias com limite reduzido de 60 km/h para 50 km/h.

Também foi aplicada redução às marginais, onde estudos conduzidos pela própria CET-SP mostraram uma redução de 38,5% em sinistros com vítimas no período. Ao mesmo tempo, a cidade passou de 51º para 7º lugar no TomTom Traffic Index, a mais importante pesquisa global sobre congestionamento – quer dizer, com velocidades mais baixas, o trânsito da metrópole de modo geral passou a fluir melhor.

Em janeiro de 2017, a redução de limites nas vias expressas das marginais foi revertida. Nas vias arteriais da cidade, o limite de velocidade de 50 km/h se mantém até hoje.

Medidas do tipo costumam enfrentar grande resistência nas cidades em que são discutidas. Em Porto Alegre, um projeto semelhante foi apresentado em 2019 e recebeu muitas críticas por propor um limite de velocidade abaixo do previsto no CTB. Porém, embora o CTB indique velocidades máximas para as vias urbanas, as cidades podem – e devem – estabelecer limites menores com base em dados, evidências e melhores práticas de segurança viária.

Estratégias conjuntas têm sido empregadas por cidades brasileiras para reduzir velocidades. Além de redefinir os limites, também requalificam a via a partir de redesenho que priorize usuários mais vulneráveis. Isso pode incluir mais oportunidades de travessias de pedestres, melhorias nas calçadas, semaforização de interseções, implementação de ciclovias e reforço na fiscalização eletrônica.

Foi o caso de Fortaleza e Buenos Aires. As duas cidades alteraram os limites de 60 km/h para 50km/h em algumas vias a partir destas requalificações. As medidas reforçam o entendimento sobre uma nova configuração da via que prioriza também a mobilidade ativa.

Para evitar a preocupação recorrente com a fiscalização eletrônica a partir da redefinição de limites de velocidades, Fortaleza adotou uma abordagem de fiscalização interessante. A cidade estabeleceu um período de isenção de autuações acima do novo limite, levando em consideração a sensibilidade e o tempo de adaptação da população às mudanças no cotidiano.

Salvar vidas ou “salvar a velocidade”?

O ano de 2020 começou com 140 nações se comprometendo a reduzir mortes no trânsito na Declaração de Estocolmo e terminou com o saldo trágico da pandemia de Covid-19, que evidenciou como os sistemas de saúde, já penalizados por tragédias como as mortes no trânsito, sofrem ao ter de atender a uma nova emergência médica global.

Este início de ano – e de década – chega com a certeza de que a saúde e a segurança da população são desafios coletivos que devem ser garantidos com base na ciência e nos dados. À medida que se iniciam novos mandatos nas cidades brasileiras, gestores e legisladores devem ter isso em mente: a redução dos limites de velocidade, sobretudo se inserida em uma estratégia abrangente de segurança viária, salva vidas e contribui para o bem-estar da população e para cidades mais vibrantes. Há exemplos de sobra, inclusive no Brasil, a mostrar o caminho.