Em 2020 e adentrando 2021, agências de transporte, empresas e sociedade civil agiram rápido diante da crise de saúde pública e das rupturas sem precedentes causadas pela Covid-19 globalmente. Esses grupos ofereceram soluções que ajudaram a manter em movimento os trabalhadores da linha de frente, mercados, serviços de saúde e outras necessidades essenciais. O que surpreendeu muitos especialistas foi não apenas a velocidade com que essas respostas foram mobilizadas em todo o mundo, mas também o quão eficazes foram e a criatividade visível em cada esforço, desde a realocação do espaço viário até a construção de infraestruturas emergenciais ou temporárias para pedestres e ciclistas.

No entanto, permanecem algumas questões em relação ao processo de planejamento por trás das intervenções, bem como se essas soluções estão ajudando a combater iniquidades ou, pelo contrário, aumentando-as.

Logo depois do início da pandemia, começamos a coletar dados referentes às medidas de mobilidade adotadas, principalmente as focadas em infraestrutura e transporte ativo. Esse esforço de crowdsourcing resultou na criação do Banco de Dados de Mobilidade da Covid-19 Shifting Streets (em português, “Mudando as ruas”), que documenta e cataloga medidas adotadas pelo setor público que afetam o uso e o acesso à infraestrutura de transporte em mais de 500 cidades, estados e países.

Usando a base de dados do Shifting Streets, publicamos uma análise, revisada por pares, das medidas catalogadas como resposta a esse fenômeno único em nossas vidas. As lições obtidas a partir da diversidade e eficácia das ações revelam descobertas de mudanças significativas em como nos deslocamos, bem como em relação às expectativas para nossos sistemas de transporte.

Resposta ágil e massiva da mobilidade ativa à Covid-19

Quando a pandemia estourou, as cidades se movimentaram com velocidade e flexibilidade extraordinárias para aplicar intervenções de mobilidade não testadas, no estilo “fazendo a aprendendo”.

Mapa mostra número de medidas para a mobilidade ativa analisadas por país



Elas responderam quase da noite para o dia com medidas para melhorar a infraestrutura para pedestres e ciclistas – ações que em geral teriam levado anos para serem implementadas. As medidas variaram de ajustes operacionais para limitar o contágio, como a automatização de semáforos para pedestres, até realocações concretas de infraestrutura física para permitir a mobilidade ativa de forma segura e com distanciamento.

Nossa análise, que não cobre o transporte coletivo, catalogou medidas como essas entre março e agosto de 2020. Embora tenha sido verificada uma ampla variedade de ações relacionadas à mobilidade ao redor do mundo, uma parcela considerável foi concentrada na América do Norte e na Europa.

Descobrimos que a realocação dos espaços de estacionamento junto ao meio-fio e a ampliação do espaço viário destinado à caminhada e ao uso da bicicleta estão entre as medidas mais populares tomadas pelas cidades para melhorar a mobilidade. Na América do Norte, a abertura de rodovias inteiras para usos não relacionados ao carro, como caminhada, pedalada e atividades comerciais ao ar livre, foi a mudança física mais comum. Realocações das faixas de estacionamento e também de faixas de tráfego foram mais utilizadas na Europa e na América Latina. O ritmo e a popularidade das diferentes medidas pareceram acompanhar a progressão da pandemia.

Apesar do número considerável de ações avaliadas, ainda estamos apenas na superfície da compreensão sobre a variedade de respostas adotadas pelas cidades e quais lições podemos aplicar ao transporte e ao planejamento urbano daqui para frente. Para começar a responder a essas perguntas e ver como evoluem as medidas de mobilidade, precisamos coletar mais dados – e com mais detalhes – durante um período de tempo mais longo.

Cinco perguntas pendentes

Embora tenhamos chegado a muitas descobertas, surgiram cinco questões ainda sem resposta.

1. Como exatamente emergiram as medidas das cidades em resposta à Covid-19?

Responder essa pergunta exige desdobrar os fatores institucionais, regulatórios e culturais que orientam os processos de planejamento, um passo necessário para entender como podemos construir sistemas de transporte melhores, mais acessíveis e equitativos. O banco de dados Shifting Streets oferece algumas pistas para dar início a esse processo, mas compreender em nível estrutural como essas iniciativas de mobilidade avançaram requer uma análise mais aprofundada das informações disponíveis, como os dados catalogados no COVID Mobility Works e em relatórios recentes como o Atlas Europeu de Mobilidade.

2. Como os hábitos de deslocamento vão mudar no longo prazo?

É possível que o aumento da atividade e do estímulo à caminhada e à bicicleta sinalize uma mudança mais ampla em direção a um transporte mais sustentável. Ao mesmo tempo, existe a preocupação de que a percepção sobre o risco de contágio da Covid-19 no transporte coletivo continue a afastar as pessoas dos modos compartilhados em prol dos veículos privados, o que poderia contrapor os ganhos em mobilidade ativa.

3. Os benefícios das medidas de mobilidade foram distribuídos de forma equitativa?

Essa precisa ser uma pergunta recorrente entre as comunidades de planejamento e transportes: se os processos por trás de nossas intervenções estão gerando resultados equitativos.

O acesso a opções de mobilidade seguras e financeiramente acessíveis tem sido negado de forma sistemática a comunidades historicamente marginalizadas, e esses grupos são obrigados a arcar com os custos e as externalidades mortais de sistemas de transporte centrados no carro. Nos Estados Unidos, em particular, as comunidades não brancas são as mais afetadas pela iniquidade nos transportes. Embora muitas cidades tenham implementado rapidamente programas-piloto de ruas abertas como resposta à pandemia, décadas de desconfiança e falta de investimento nas áreas mais carentes levaram a protestos por parte de grupos defensores da justiça da mobilidade, os quais levantaram questionamentos em relação a participação inclusiva, fiscalização e a quem essas medidas beneficiam.

Essas questões desafiaram muitos planejadores a repensar as abordagens, mas os estudos até agora sugerem resultados ambíguos sobre se as intervenções em resposta à Covid-19 feitas para melhorar o acesso à mobilidade segura realmente melhoraram esse acesso ou reforçaram as disparidades existentes.

4. Instalações temporárias para pedestres e ciclistas implementadas rapidamente oferecem benefícios similares aos de infraestruturas permanentes convencionais em termos de segurança e mobilidade?

As infraestruturas para pedestres e ciclistas que brotaram nas cidades foram em grande parte planejadas para serem temporárias e fáceis de implementar. Mas ainda é preciso realizar estudos detalhados em relação à segurança dessas intervenções e seus benefícios específicos e de longo prazo para a mobilidade. É o que precisamos para avaliar de forma minuciosa se e quando essas implementações rápidas fazem sentido.

Se for comprovado que instalações construídas rapidamente geram benefícios de mobilidade e segurança comparáveis aos de estruturas tradicionais, então as primeiras podem servir de estímulo para instalações permanentes. Esses projetos também podem incentivar empresas de transporte a experimentar novas ideias de projeto com benefícios de segurança comprovados, mas que ainda não foram incluídas nos manuais de engenharia ou entram em conflito com os padrões atuais focados no carro.

5. Como o engajamento da população influenciou as medidas das cidades em resposta aos desafios de mobilidade da Covid-19 – em particular no que diz respeito à equidade?

Historicamente, o planejamento de transportes tem baixos índices de engajamento da população – um aspecto que muitas das medidas de mobilidade em resposta à pandemia revelaram apenas mais tarde. As principais críticas às ruas abertas, por exemplo, são relacionadas ao fato de essas soluções não considerarem de forma adequada as necessidades e preocupações das pessoas de baixa renda e das comunidades não brancas, ou como essas ruas até mesmo perpetuaram ou reforçaram ambientes públicos não seguros.

Algumas cidades, no entanto, estão promovendo uma participação social mais inclusiva. Oakland, na Califórnia, começou um processo interativo embasado pelo engajamento com a comunidade local para repensar seu programa de ruas de baixa velocidade a fim de assegurar uma distribuição equitativa de acesso e benefícios. De forma similar, Los Angeles anunciou a reavaliação de seu piloto de ruas de baixa velocidaqde para ajustar o foco em saúde e equidade depois que ativistas de mobilidade locais expressaram preocupações sobre como o projeto afetaria diretamente comunidades carentes.

Está claro que as intervenções de mobilidade que seguem uma abordagem top-down (de cima para baixo), para serem implementadas o mais rápido possível, tendem a gerar resistência e apelos por um processo mais inclusivo, principalmente por parte de comunidades marginalizadas que não sentem que suas contribuições são consultadas ou consideradas em novos programas e investimentos de transporte. Agora, existem oportunidades para substituir, modificar ou complementar iniciativas de mobilidade em resposta à Covid-19 com processos de participação mais inclusivos e acessíveis, com o objetivo de garantir o envolvimento ativo e o sentimento de propriedade entre as comunidades.

Como profissionais de transporte, planejamento urbano e outros, devemos sempre nos perguntar como podemos melhorar nossos métodos e soluções. Se você está inspirado a fazer isso também, pode nos ajudar enviando mais iniciativas para a base de dados do Shifting Streets. Afinal, não existe atuação individual na criação de cidades mais sustentáveis, equitativas e saudáveis.


Este artigo foi publicado originalmente em TheCityFix.

Carlos F. Pardo é consultor sênior da NUMO, a aliança pela Nova Mobilidade Urbana.

Tabitha Combs, PhD, é pesquisadora associada com especialização em planejamento e políticas de transporte no Departamento de Planejamento Urbano e Regional da Universidade da Carolina do Norte.