Por volta do meio-dia em Mathare, uma comunidade informal e densamente povoada em Nairóbi, no Quênia, o sol brilha com força sobre as fileiras apertadas de barracas de madeira e telhados de metal ondulado. Situada a uma altitude de 1.795 metros, Nairóbi sempre foi conhecida por seu clima ameno. Mas, nos últimos anos, o calor se tornou um problema inevitável – especialmente nas comunidades informais, que podem ser até 5°C mais quentes do que o restante da cidade.

Em Mathare, vendedores de rua que comercializam frutas, legumes e peixes frescos costumavam contar com um fluxo constante de clientes ao longo do dia. Agora, o calor muitas vezes estraga os produtos antes que consigam vendê-los.

“Se eles não vendem rápido, acabam acumulando prejuízos até o fim do dia”, disse Michelle Koyaro, associada de programa da Slum Dwellers International (SDI), do Quênia. Alguns vendedores passaram a vender à noite, quando a temperatura é mais amena, mas menos clientes circulam nesse horário. O resultado é que, depois de horas sob o sol forte, os comerciantes voltam para casa com dores de cabeça e poucos ganhos.

Em diversas cidades ao redor do mundo, o calor extremo deixou de ser um evento passageiro ou um transtorno sazonal. Passou a ser um problema frequente que tem modificado a forma como as pessoas vivem, se deslocam e trabalham – e a situação tende a piorar.

O calor é uma ameaça comprovada à saúde. Segundo a Organização Mundial da Saúde, quase 500 mil pessoas morrem todos os anos por causas relacionadas ao calor – um número que deve aumentar em 50% até 2050. Mas a crise vai além da saúde pública: o calor também compromete economias, infraestrutura, sistemas sociais e o bem-estar dos moradores das cidades.

rua na india
Vendedores ocupam uma rua em Mathare para comercializar seus produtos. Dias mais quentes aumentam o risco de estrago dos alimentos e prejuízos. (Foto: Ninara/Flickr)

À medida que as temperaturas aumentam, as cidades enfrentam um desafio urgente e complexo. Principalmente, porque o calor não é um problema isolado. Para se adaptar de forma eficaz, as cidades precisam entender como o aumento das temperaturas está transformando e ameaçando múltiplos aspectos da vida urbana – e reconhecer que não estão sozinhas diante desses desafios.

Mais de 350 cidades ao redor do mundo já enfrentam temperaturas de verão superiores a 35°C, e esse número só tende a crescer com o aquecimento do clima. Em seus esforços para se adaptar ao calor e mitigar seus piores impactos, as cidades têm um enorme potencial de aprender umas com as outras – tanto em relação ao que funciona quanto ao que não funciona.

A seguir, avaliamos os impactos do calor nas cidades a partir de quatro setores essenciais (saúde, transporte, trabalho e produtividade econômica) e apresentamos soluções concretas e escaláveis que podem ser usadas para desenvolver estratégias eficazes e abrangentes.

Saúde: priorizar o bem-estar à medida que as cidades esquentam

Quem já passou um tempo ao ar livre em um dia extremamente quente sabe o quanto isso pode ser desgastante – dores de cabeça, desidratação, cansaço e dificuldade de concentração. Mas o que acontece quando essa exposição se torna constante – não por algumas horas, mas todos os dias? Os efeitos no corpo podem deixar de ser apenas desconfortáveis e se tornar perigosos.

A exposição prolongada ao calor pode sobrecarregar órgãos vitais como coração e rins, prejudicar o sono, causar estresse mental e agravar doenças crônicas como asma e problemas cardiovasculares. Pesquisadores projetam que a exposição prolongada ao calor se tornará o padrão, com partes da África, sul da Ásia e América Latina entre as regiões mais afetadas.

O calor extremo representa um desafio particular para moradores urbanos de baixa renda, que podem viver em casas mal ventiladas ou trabalhar ao ar livre. E, ao longo do dia, a exposição prolongada ao calor agrava esses riscos. Crianças, gestantes e pessoas idosas estão entre os grupos mais vulneráveis.

Enfrentar esses riscos exige uma abordagem multidisciplinar, com ações de curto e longo prazo. No curto prazo, as cidades precisam investir em intervenções que reduzam a exposição nos locais onde as pessoas costumam passar mais tempo ou oferecer opções para escapar do calor. Sistemas de alerta precoce, como os implementados em AtenasBuenos Aires, avisam os moradores sobre ondas de calor iminentes e fornecem orientações práticas para manter a segurança.

Centros públicos de resfriamento – espaços comunitários com ventiladores, ar-condicionado e água potável – podem reduzir as ameaças imediatas à saúde, oferecendo refúgio temporário. Em Jodhpur, na Índia, que enfrenta ondas de calor cada vez mais intensas, um abrigo climático de zero emissões, equipado com ventiladores, painéis solares e uma torre de vento que circula o ar fresco, proporciona alívio para quem precisa permanecer ao ar livre. Dentro do abrigo, as temperaturas podem ser até 12°C mais baixas do que do lado de fora.

Em Phoenix, no Arizona – a cidade mais quente dos Estados Unidos –, um centro de resfriamento aberto 24 horas por dia recebeu milhares de visitantes durante o período mais quente de 2024, incluindo moradores em situação de rua, que têm muito mais probabilidade de morrer por causas relacionadas ao calor. Esse centro, junto com outras ações da cidade – como conectar as pessoas a recursos para consertos em aparelhos de ar-condicionado –, ajudou a reduzir em 20% o número de chamadas de emergência relacionadas ao calor. Mesmo pausas breves em ambientes frescos já ajudam a diminuir o estresse fisiológico e cardiovascular.

 

pessoas caminhando em ambiente urbano
Pessoas caminham pelas ruas de Atenas, na Grécia, durante uma onda de calor extremo em 2022. A cidade utiliza sistemas de alerta para informar os moradores sobre períodos de calor intenso e fornece orientações práticas para manter a segurança. (Foto: Alexandros Michailidis/iStock)

No entanto, apenas centros de resfriamento não são suficientes. As cidades também precisam investir em estratégias de longo prazo para expandir moradias resistentes e reduzir as ilhas de calor urbano em locais onde as pessoas passam mais tempo – como escolas, locais de trabalho e nos deslocamentos. O aumento da vegetação urbana e da arborização pode reduzir as temperaturas máximas em até 5°C.

Medidas emergenciais não bastam. Construir resiliência urbana a longo prazo exige priorizar quem é mais vulnerável. O WRI colabora com a iniciativa Salud Urbana en América Latina (Salurbal) – uma rede de instituições de pesquisa da América Latina e dos EUA, coordenada pela Drexel University – para estudar como fatores sociais e ambientais influenciam os impactos do calor na saúde em Campinas e Belo Horizonte. O objetivo é ajudar as cidades a desenvolver intervenções direcionadas e equitativas, como ampliar soluções baseadas na natureza e priorizar o acesso à saúde.

Em assentamentos informais, onde os telhados costumam ser feitos de materiais que retêm calor, como o aço galvanizado, programas participativos de requalificação – que envolvem os moradores nas melhorias – podem aumentar a resiliência e a saúde de forma significativa. Pesquisas mostram, por exemplo, que soluções como telhados frescos, cobertura vegetal ou superfícies reflexivas, podem reduzir a exposição dos moradores ao calor extremo em até 91% ao longo de um ano.

Ações de longo prazo precisam ser baseadas em dados que apontem o potencial de soluções eficazes. Estudos podem revelar não apenas quais áreas da cidade são mais quentes, mas também de que forma diferentes comunidades enfrentam os impactos do calor. Isso ajuda as cidades a selecionar áreas prioritárias nas quais concentrar medidas de resiliência.

Transporte: como manter as cidades em movimento em um mundo mais quente

A capacidade de se deslocar com segurança e eficiência pela cidade é essencial na vida urbana. Ao mesmo tempo em que que cada vez mais cidades adotam opções de transporte sustentável e de zero carbono, como ônibus elétricos, bicicletas e caminhada, o calor extremo tem levado as pessoas a permanecerem em casa ou a recorrerem mais aos carros.

Um estudo de 2024 realizado em várias cidades dos Estados Unidos, incluindo Chicago, Atlanta, Houston e Nova York, constatou que, em dias de calor extremo, o uso do transporte público cai, em média, 50%, uma vez que as pessoas optam por veículos com ar-condicionado. Mas, para quem não tem acesso a um carro, não existem alternativas fáceis. Sem sombra ou proteção adequada contra o calor nos pontos de ônibus, um problema comum em muitas cidades, os usuários do transporte público ficam mais expostos aos riscos do calor. Em Los Angeles, por exemplo, apenas um quarto dos pontos de ônibus oferece algum tipo de abrigo, mesmo com temperaturas frequentemente elevadas.

O uso de bicicletas também diminui em dias muito quentes. Em Nova York, uma análise mostrou que a adesão ao sistema de bicicletas compartilhadas da cidade cai cerca de um terço nos dias em que a temperatura supera os 26°C a 28°C. Ao mesmo tempo, o calor extremo pode intensificar a poluição do ar. Isso significa que, ao evitar meios de transporte sustentáveis nos dias mais quentes, as pessoas contribuem para a piora da qualidade do ar, agravando os riscos à saúde dos moradores mais vulneráveis.

As cidades precisam não apenas promover modos sustentáveis de transporte, mas garantir que todos possam se deslocar com segurança e conforto, independentemente da renda ou capacidade física. Para o transporte público, como ônibus e VLTs, o aumento na frequência dos serviços reduz o tempo que as pessoas passam expostas ao calor enquanto esperam. Instalar coberturas nos pontos de parada e plantar árvores ou paredes verdes também pode aliviar os efeitos do calor em locais de grande circulação.

Corredores verdes (vias conectadas com vegetação, como árvores, jardins ou parques, que ligam diferentes partes da cidade) também podem criar uma rede de ruas mais frescas para que as pessoas possam caminhar ou pedalar nos dias quentes. Medellín, na Colômbia, demonstrou os benefícios de integrar vegetação urbana à mobilidade sustentável. Desde 2016, o programa Corredores Verdes conectou mais de 30 vias principais com cobertura arbórea, jardins verticais e áreas verdes. Análises mostram que os corredores reduziram a temperatura média em 2°C, melhoraram a qualidade do ar e incentivaram o aumento de deslocamentos a pé e de bicicleta.

De forma semelhante, estudos em Houston, nos Estados Unidos, e em Shenzhen, na China, demonstraram que a cobertura vegetal e a presença de áreas verdes ao nível dos olhos estão associadas a maiores índices de uso da bicicleta.

pessoa andando de bicicleta
Ciclista percorre uma rua em Shenzhen, na China, onde pesquisas mostram que o aumento da vegetação e da cobertura de copa das árvores incentiva o uso de bicicletas. Áreas verdes ajudam a resfriar as cidades e promovem o transporte sustentável. (Foto: Huy Bui Van/iStock)

Trabalho: preparar os trabalhadores urbanos para o calor extremo

O impacto do calor sobre as economias urbanas tem várias camadas. Para trabalhadores informais ou que recebem por hora, as ondas de calor podem reduzir a produtividade, comprometer a segurança no trabalho e diminuir os rendimentos. Em Dhaka, Bangladesh, setores como o têxtil e o de construção já observam perdas de receita de cerca de 10%, pois a exposição ao calor reduz a capacidade de produção em galpões, canteiros de obras ou fábricas. Quando um trabalhador produz menos, ganha menos. Em escala setorial, a produção mais lenta reduz a receita, o que enfraquece a economia local como um todo.

O Centro de Resiliência Climática do Atlantic Council aponta que as mulheres, especialmente aquelas em empregos informais, estão entre as mais vulneráveis aos impactos do calor. Nos mercados têxteis de Nova Délhi, por exemplo, trabalhadoras passam as manhãs costurando e empacotando fardos de roupas para entrega com carrinhos abertos ou riquixás. No entanto, como só podem fazer as entregas à tarde, são obrigadas a se deslocar justamente nas horas mais quentes do dia e muitas vezes acompanhadas dos filhos, expondo-se a altos níveis de estresse térmico.

Para construir resiliência térmica nas economias urbanas, as cidades precisam priorizar tanto a segurança individual quanto a sistêmica. Os governos podem criar políticas que protejam os trabalhadores durante a jornada de trabalho. O Plano de Ação contra o Calor da Califórnia, de 2022, por exemplo, apresenta recomendações para garantir a segurança de trabalhadores expostos ao calor, tanto em ambientes externos quanto internos. Já um relatório da Organização Internacional do Trabalho, publicado em 2024, reúne um conjunto de medidas que os governos locais e nacionais podem incorporar às políticas públicas, como pausas obrigatórias, fiscalização de padrões de ventilação e resfriamento em edifícios e regulamentações sobre temperaturas máximas permitidas nos locais de trabalho.

As cidades também devem dialogar com os trabalhadores mais expostos aos riscos. Em Freetown, Serra Leoa, a diretora municipal responsável pelas medidas de enfrentamento ao calor, Eugenia Kargbo, liderou a instalação de toldos protetores, resistentes ao clima e com proteção UV, sobre bancas de vendedores (entre os quais muitas mulheres), para protegê-los do calor intenso da cidade.

Produtividade econômica: o calor impõe custos sistêmicos

O calor extremo nas cidades não afeta apenas os indivíduos: também representa um alto custo para os centros urbanos. Na região metropolitana de Los Angeles, estima-se que as perdas de produtividade causadas pelo calor cheguem a cerca de US$ 5 bilhões por ano.

As cidades enfrentam ainda o aumento da demanda por energia, danos à infraestrutura e elevação dos gastos com saúde pública. Um relatório do Banco Mundial estima que, em Bangkok, um aumento de temperatura de apenas 1°C pode elevar os custos com energia em 17 bilhões de baht(cerca de meio bilhão de dólares). Em 2023, uma onda de calor extremo provocou a dilatação e o rompimento de vias em Houston, exigindo reparos caros para o município e o estado. Em Londres, a onda de calor de 2022 revelou uma vulnerabilidade diferente na infraestrutura: quando as temperaturas chegaram a 40 °C, centros de dados de dois hospitais do NHS (sistema nacional de saúde) falharam, causando semanas de atrasos no atendimento e um prejuízo de £ 1,4 milhão de libras.

Se quiserem proteger suas economias dos prejuízos causados pelo calor, as cidades precisarão investir em infraestrutura resiliente em larga escala – como corredores verdes, telhados e pavimentos frescos, e estruturas de sombreamento bem localizadas –, além de ações direcionadas à proteção de trabalhadores. Não há solução única ou imediata para blindar as economias urbanas contra o calor, mas cada medida que protege a saúde da população, mantém os sistemas de transporte em funcionamento e sustenta a produtividade fortalece, em conjunto, a estabilidade econômica.

Como construir resiliência em um mundo em aquecimento

O calor extremo está transformando os próprios sistemas que mantêm o funcionamento das cidades – da saúde ao transporte, passando pelos meios de subsistência. Fortalecer a resiliência tanto no nível individual quanto sistêmico – dos vendedores ambulantes de Mathare às linhas de ônibus de Chicago – é essencial para proteger o bem-estar, manter a estabilidade econômica e garantir que as cidades possam prosperar em um mundo mais quente. Ao planejarem suas estratégias de adaptação ao calor, as cidades podem aprender com os desafios e êxitos umas das outras e priorizar soluções eficazes e oportunas.


Este artigo foi publicado originalmente no Insights