Ainda que mercados de beira de rio como o Ver-o-Peso, em Belém, ou o Adolpho Lisboa, em Manaus, revelem diariamente a potência da floresta amazônica em sua diversidade de produtos, o Brasil ainda não parece ter despertado para todo esse potencial. A pujante economia local em todos os cantos da Amazônia, mediada pelas cidades e calcada em produtos da biodiversidade a partir de tecnologias criativas, tem sua relevância ofuscada pelos setores convencionais – fica escondida na informalidade, deixando sistematicamente de ser registrada pelas estatísticas oficiais.

A ênfase, tanto no suporte técnico e financeiro quanto nos registros estatísticos, tem sido dada para setores primários convencionais, sobretudo de commodities agrícolas e minerais de baixo valor agregado. São produtos cujos processos produtivos entram em oposição com o ambiente natural da região, pois demandam vastas áreas de terras sem floresta, tornando esse ciclo de geração de riqueza “para fora” muito intensivo em desmatamento e emissões de gases de efeito estufa. Como a demanda de commodities é externa à região, avançar sobre a floresta não resolveu a desigualdade de renda muito menos a desigualdade fundiária.

desembarque de açaí pela manhã no mercado ver-o-peso
Açaí fresco após o desembarque no início da manhã no mercado Ver-o-Peso, em Belém, Pará (foto: Joana Oliveira/WRI Brasil)

A bioeconomia pode mudar isso. Tem ganhado notoriedade nos últimos anos como uma resposta para a quebra de tais ciclos crônicos. É um termo em disputa, com diferentes definições pelo mundo. Por isso, é preciso definir qual a bioeconomia mais adequada ao contexto da Amazônia. O WRI Brasil se debruçou sobre esse assunto, primeiro lançando um trabalho que explorou conceitos, limites e tendências, depois com uma análise mais completa presente no relatório Nova Economia da Amazônia, que tirou da invisibilidade parte do PIB da bioeconomia da floresta em pé e dos rios fluindo. Com isso, sabemos que o PIB atual da bioeconomia na Amazônia Legal é de pelo menos R$ 12 bilhões por ano. Isso considerando apenas 13 produtos, para os quais há registros estatísticos.

E que bioeconomia é essa? Para responder, é preciso analisar o processo de produção, e não  os produtos finais. Ou seja, para ser um produto da bioeconomia, não basta ser um produto nativo: deve ser produzido mantendo a floresta em pé e os interesses de seus povos O reconhecimento dos saberes e valores dos povos originários e tradicionais e a distribuição justa dos benefícios são inegociáveis.

No estudo Nova Economia da Amazônia foram analisados os casos do açaí e do cacau, dois produtos da Amazônia que se expandiram e geram diferentes impactos econômicos no território. Neste artigo, explicamos a diferença entre as duas trajetórias e destacamos aprendizados dessas culturas que podem contribuir para a bioeconomia no futuro.

Açaí da floresta para as cidades amazônicas e de lá para o mundo

A cadeia do açaí no estado do Pará é um exemplo de como um produto local pode provocar o nascimento e a expansão de um setor através da multiplicação de arranjos produtivos já existentes na cultura, preservando a floresta e agregando valor no território. O açaí conseguiu expandir-se do território rural para o urbano, das periferias às elites de Belém, da Amazônia para o mundo, gerando renda para todos os elos da cadeia produtiva.

O primeiro grande crescimento ocorreu quando populações rurais migraram do Marajó e Baixo Tocantins para Belém e levaram consigo o costume de comer açaí diariamente. O segundo crescimento veio com a inovação: uma despolpadora para bater o fruto de forma suave, preservando o sabor à preferência local. A difusão desse processo simples, mas inteligente, permitiu a expansão do consumo das periferias para os centros urbanos e a permanência na dieta de uma população que estava em franco crescimento, como a Belém dos anos 1970. Assim como cresciam como mercado consumidor, as cidades amazônicas serviram de centro de mediação para o desenvolvimento de novos produtos e processos.

homem segura cacho repleto de açaí
Extrativista de açaí da comunidade de Arraiol, no arquipélago do Bailique, Amapá (foto: Diego Baravelli/Greenpeace)

O mercado de açaí fora da Amazônia se aquece a partir dos anos 2000, período que marcou um conflito concorrencial entre arranjos bastante diferentes. Um que atendia a população local, com uma rede de pequenas unidades produtivas pulverizadas no território, gerando empregos e renda localmente e preservando técnicas tradicionais de produção da polpa. Outro baseado em grandes unidades industriais e voltada para a exportação, com processos de produção e apresentação do produto desconectados do gosto local.

Apelidado de “açaízação”, o processo que caracteriza o arranjo produtivo para exportação é a monocultura de palmeiras de açaí, o que não se enquadra em uma bioeconomia que respeita a biocapacidade do bioma, como descrito no início deste artigo. A partir da Matriz de Insumo-Produto de Contas Alfa (MIP-Alfa), os autores da Nova Economia da Amazônia fizeram uma análise mais granular da produção de açaí, diferenciando esses dois arranjos concomitantes.

O arranjo voltado para a indústria e mercados externos processa 47% da produção e Valor Agregado (VA) de R$ 4,7 bilhões. Já o arranjo produtivo direcionado para o mercado local processa 53% dos frutos coletados e tem R$ 1,08 bilhão de VA. Quando se considera o VA total dos dois arranjos, verifica-se que 81% do agregado é gerado no interior da economia do Pará. Ou seja, a economia paraense, além do que é gerado e consumido localmente, ainda absorve 49,6% do valor referente à demanda externa do açaí.

Considerando a economia do açaí sob a perspectiva da geração de postos de trabalho, o emprego total nas cadeias e nos arranjos produtivos locais, em 2020, foi de 164,4 mil trabalhadores. Desse total, 86% foram postos de trabalhos na produção rural. Além desses, 2% dos postos de trabalho foram gerados na intermediação primária, isto é, os atravessadores. No processamento artesanal da polpa, os chamados batedores, somaram 3% desses postos de trabalho. No processamento industrial, 3%, e nas economias não locais, 5%.

Em conclusão, ao ser analisada de um ponto de vista geral, a cadeia do açaí paraense cumpre os requisitos da bioeconomia amazônica. Possui raízes locais profundas, utiliza-se de conhecimentos tradicionais, como o manejo do açaí, aprimorando-o com inovações tecnológicas, como a máquina despolpadora, e cria vários e disseminados postos de trabalho, cuja maioria é no próprio território. Além disso, absorve a riqueza gerada pelo produto com adicional de 49,6%.

Cacau é nativo da floresta, mas responde à demanda de fora da Amazônia

Diferentemente da cadeia do açaí, as atividades ligadas ao cacau na Amazônia não têm permeabilidade em todas as camadas sociais, nem aprimoramento tecnológico no manejo da fruta e de seu processo produtivo. Mesmo sendo um produto nativo do bioma, a cadeia do cacau não gera os mesmos benefícios para a economia e as populações locais.

No território brasileiro, o cacau é produzido principalmente no Pará (49%) e na Bahia (45%). Em termos de volume, a produção de amêndoas de cacau alcançou 160 milhões toneladas em uma área colhida de 504 mil hectares. A produção familiar foi responsável por 57% desse total, em 51% da área.

No Pará, embora parte da produção ocorra em sistemas agroflorestais, o que garante uma produção adequada à biocapacidade da floresta, os produtores de cacau têm praticamente uma única entrada na cadeia de valor: os atravessadores no interior, que recebem 98% da amêndoa. A produção local de manufaturados, que inclui o chocolate, é muito restrita, isolada e sem efeitos de escala. Assim, embora a participação de pequenos produtores seja muito grande na cadeia, é apenas no setor primário que ocorre essa permeabilidade, de forma que todos os setores a montante se afunilam em grandes empresas.

Comparada à cadeia do açaí, a do cacau é menos densa e capilarizada, em parte porque as características bioquímicas do açaí exigem o processamento rápido após a colheita. Já o cacau, especialmente a amêndoa, não precisa de um aparato de processamento com o mesmo nível de complexidade tecnológica. Não por acaso, as atividades logísticas e comerciais, exercidas pelos atacadistas, são o aspecto principal da economia urbana da cadeia do cacau.

Traçando um paralelo entre as duas cadeias, a do açaí possui uma característica de maturação endógena, isto é, o mercado consumidor local e regional teve um papel importante de solidificação do produto, tanto criando uma demanda constante como ramificando o mercado para diversos pontos de revenda em bairros periféricos de Belém e dos arredores.

Mulheres quebrando cacau nativo na região do rio Madeira, em Novo Aripuanã, Amazonas
Mulheres quebrando cacau nativo na região do rio Madeira, em Novo Aripuanã, Amazonas (foto: Ricardo Oliveira)

Em contrapartida, a cadeia de cacau, desenvolvida para suprir demandas exógenas à região, não produziu efeitos similares. Nesse sentido, as cidades amazônicas não tiveram um papel significativo, não houve ramificações de inovação nos processos de produção e distribuição do produto. Assim, a maior parte da transformação em derivados de chocolate ocorre fora da Amazônia, principalmente em indústrias localizadas no sul da Bahia e em São Paulo.

É preciso estimular a bioeconomia certa na Amazônia

A bioeconomia já é uma atividade importante na Amazônia Legal e os métodos aplicados no estudo Nova Economia da Amazônia revelam que ela penetra o território, do setor primário ao terciário, sendo vetor de forte dinamismo da economia circular e de proximidade. Sua expansão ocorre pela multiplicação dos pequenos negócios, com tecnologia simples e criativa, gerando grande capilaridade e capacidade de inclusão.

O caso da cadeia do açaí revela como um produto, com processo baseado em tecnologias e relações econômicas do território, pode promover crescimento econômico agregando valor e gerando empregos inclusivos próximos à floresta. Em contraponto, a cadeia do cacau, desenvolvida a partir de demandas exógenas, mostra que não basta um produto ser regional para gerar efeitos socioeconômicos similares.

Os arranjos produtivos na bioeconomia importam quando o objetivo é gerar empregos inclusivos, capazes de reduzir desigualdades de oportunidades, benefícios e riquezas na região. Como a bioeconomia é praticada sobretudo pela população local, de baixa renda e em milhares de pontos de venda, a expansão da bioeconomia gera maior capacidade de inclusão social além de estimular a economia local. Deve, por isso mesmo, ocorrer pela multiplicação dos arranjos produtivos típicos e já existentes no território, intensivos em mão de obra, baseados nos produtos da floresta ou da restauração, e que combinem soluções locais com adaptação de inovações tecnológicas eficientes sem extrapolar a biocapacidade da floresta.

O potencial da bioeconomia, sem dúvidas, é muito grande. Considerando apenas 13 produtos, o estudo Nova Economia da Amazônia estimou que deve chegar em 2050 com PIB de quase R$ 38,5 bilhões. Acabar com o desmatamento e desenvolver atividades da floresta em pé também é imprescindível para a geração de serviços ecossistêmicos para os quais não há substitutos viáveis economicamente nem disponíveis em escala para atender às demandas produtivas do padrão mecânico-químico, em especial da agropecuária. Não se pode negligenciar o fato de que 97% da agricultura e praticamente 100% da pecuária na Amazônia Legal dependem exclusivamente da irrigação das chuvas. É preciso que governos, empresas e sociedade estimulem a bioeconomia certa, aquela capaz de gerar crescimento econômico, segurança na produção das cadeias alimentares e inclusão social.