Todas as segundas-feiras, no comecinho da manhã, a família Soares se reúne à mesa na zona rural de Juruti, às margens do rio Amazonas. O município fica a 45 minutos de voo em avião pequeno ou pelo menos 5 horas de navegação de Santarém, o segundo maior aglomerado urbano do Pará. Na casa de farinha de onde saem dezenas de produtos do beneficiamento da mandioca, além do café da manhã, acontece a reunião que define as tarefas da semana. O planejamento da coivara, o método de queima de áreas verdes para preparar a terra antes do plantio, está perdendo espaço para o “projeto”, novidade que está fazendo os filhos de Messias e Nilda sonharem.

O café da manhã que define as atividades da semana (Foto: Asteroide)

Ao passo que a família formada por 4 filhas mulheres e um homem foi crescendo e prosperando graças a um único produto, a mandioca, novos conhecimentos e técnicas para melhorar a relação com a floresta emergiram. Entre eles a restauração florestal. Hoje, os Soares estão trocando a prática ancestral de usar o fogo para limpar novas áreas e trabalhar uma única variedade pelo consórcio entre diferentes espécies. Nasceu o “projeto” de vida que está mudando a relação deles com a terra: a agrofloresta. Se no início dependiam apenas da farinha, ao longo dos anos se aperfeiçoaram e da mandioca criaram mais de 20 produtos. Com a agrofloresta, a família poderá impulsionar a renda pela venda de frutas, óleos, essências e outros produtos agrícolas que trarão mais segurança alimentar, renda e resiliência.

Os Soares são como um time, coeso e unido, que olha para a floresta amazônica como parte de sua casa. Como muitos homens na região, Messias vem de uma família que trabalhou no ciclo da juta e depois se tornou hábil com a motosserra, principal instrumento de trabalho por muitos anos até comprar um pedaço de terra no início dos anos 2000. Cortar árvores centenárias sempre foi um trabalho duro para as mãos e sofrido para o coração. “Eu não gostava, mas não tinha outra saída, ou era isso ou meus filhos iam passar fome, até que a roça chegasse ao ponto de produzir”, conta. Aos poucos a lavoura de mandioca passou a dar retorno e ele foi escapando dos convites para derrubar a floresta em troca de dinheiro.

Família Soares durante passeio de barco em um braço do Rio Amazonas (vídeo: Bruno Felin/WRI Brasil)

Dona Nilda precisou aprender passinho por passinho o longo e duro processo de transformar a mandioca em farinha, um conhecimento indígena que de boca em boca permanece vivo – embora cada casa de farinha tenha seus segredos. Messias orgulha-se de ter inventado diversas ferramentas para ralar, torrar, peneirar, e assim aumentar a qualidade e a quantidade de mandioca que a família consegue beneficiar. Com o passar dos anos e as filhas crescendo, também fermentaram novas ideias para usar cada vez melhor a matéria-prima.

Mandioca, a rainha do Brasil

A mandioca ganhou esse apelido por ser o alimento base primeiro das comunidades ancestrais desta parte da América do Sul, depois dos outros povos que foram chegando. Muito nutritiva, é de fácil digestão e garante longos períodos de energia.

Existem dois tipos, popularmente chamados de mansa e brava. A grande diferença é que a mansa pode ser cozida e ir direto para a mesa, enquanto a brava tem alta concentração de ácido cianídrico, extremamente tóxico. Foram os povos indígenas que desenvolveram o processo de retirar toda a água da madioca para transformá-la em farinha, tornando o consumo seguro.

Veja os passos da mandioca à farinha:

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Descascar. Os Soares usam facas pequenas ou instrumentos que chamam de rapadeira. Depois, lavam.

Hoje, além de três tipos de farinha (comum, tapioca e para farofa), eles fornecem 7 variedades de beijus (mole, cica, ponta de lenço, macaxeira, tapioca, com castanha e isca de coco), tucupi (o sumo da mandioca ralada, que inicialmente é venenoso por conter ácido cianídrico, e após um processo longo é usado em molhos), goma, carimã e diversos bolos. As iguarias da mandioca são a base da culinária da região Norte, uma rica mescla de influências indígenas, africanas e portuguesas, e são vendidas para supermercados, na feira da cidade ou apresentadas em cafés da manhã típicos da região que eles preparam sob encomenda.

Produtos da Mandioca


Beiju com castanha do Pará

Beiju d’água e Beiju Cica

Beiju de Tapioca

Bolo de Macaxeira e Bolo de Puba

Tapioquinha

A partir da esquerda: Mariele, Marliane, Melissa e Marlice, as filhas mulheres de Messias e Nilda (Foto: Joana Oliveira WRI Brasil)

Mulheres que inspiram

Um mapeamento social realizado pela equipe do WRI Brasil na na zona rural de Juruti com o objetivo de estimular plantios agroflorestais diagnosticou que as mulheres do campo têm acesso à informação limitado, restringindo seu poder de decisão e reforçando a desigualdade de gênero. Não é o caso dos Soares. “Papai sempre deu espaço para a gente aprender e propor coisas”, ressalta Marliane, 24 anos, a filha mais velha. “Ele fazia do jeito dele, da maneira como foi criado. Hoje ele procura perguntar o que achamos. Se indicamos que falta adubação, pede como fazer. Ele respeita muito nosso conhecimento”. Aos poucos Marliane foi liderando processos e mostrando aos pais – que fazem a maior parte do trabalho pesado na roça – que seus aprendizados poderiam tornar aquela terra ainda mais fértil.

Messias foi sábio na gestão do time. Soube dar confiança às filhas e estimular que todos na casa estudassem, identificassem as tarefas que se davam melhor e se sentissem livres para criar. Aos poucos esse processo foi se invertendo. Elas começaram a trazer as descobertas da escola para a propriedade rural. Primeiro foi a horta, projeto de conclusão de curso da escola técnica em agropecuária realizado por Marliane. Logo depois o projeto da agrofloresta. Hoje, Marliane e Maiele, 19 anos, têm sinal de internet na propriedade e cursam Gestão Ambiental na Universidade da Amazônia. Um olho no computador, outro na floresta.

A paixão na relação de Messias e Nilda com a natureza, passada para a geração seguinte, virou objetivo de vida. E a família que “sofre junto, sorri junto e se diverte toda junta”, nas palavras do próprio Messias, deposita agora seus maiores sonhos no sistema agroflorestal.

De olho em soluções sustentáveis para a produção, Marliane trouxe à família a proposta de trabalhar com agrofloresta (Foto: Asteroide)

Agrofloresta, produzir sem destruir

O Sistema Agroflorestal (SAF) é um modelo de restauração de florestas que tem como característica um uso da terra capaz de aliar a produção à preservação. O modelo produtivo, que pode ser adaptado para qualquer bioma, consiste em misturar na mesma área espécies com diferentes ciclos produtivos, para que o consórcio gere renda a curto, médio e longo prazo. Assim é possível alternar espécies arbóreas nativas de grande porte, fundamentais para a captura de carbono e a preservação da biodiversidade, com árvores frutíferas de alto valor agregado e cultivos agrícolas como mandioca, milho e feijão.

Para ter sucesso e capturar carbono na escala necessária para se tornar um potente instrumento de combate ao aquecimento global, é importante que gere renda e prosperidade para os agricultores. Não é apenas pelo amor à floresta que os Soares estão investindo tempo e paixão no projeto, mas também pela perspectiva de um futuro melhor.

A maioria das terras daquela região do interior do Pará é preparada para o plantio da mandioca à base de fogo, o que atualmente significa desmatamento seguido de degradação do solo, em função da quantidade de vezes que é realizada em um curto espaço de tempo. A coivara, como é chamada essa técnica, é herança dos indígenas, que tinham um modo de vida seminômade. Eles queimavam uma área e só retornavam a ela décadas depois, quando a floresta já havia se regenerado, um processo considerado sustentável. Com a consolidação fundiária, hoje os agricultores permanecem na sua terra e acabam queimando uma mesma área a cada dois anos.

Coivara nas redondezas da propriedade da Família Soares (Foto: Joana Oliveira/ WRI Brasil)

Família Soares trabalhando na agrofloresta (Vídeo: Asteroide)

Com o conhecimento agrícola todo voltado para um único produto, boa parte dos alimentos básicos consumidos em Juruti, como frutas e hortifrutigranjeiros, por exemplo, são trazidos de fora. Isso significa que uma simples salada de alface e tomate navega durante boa parte de um dia antes de chegar à mesa no município de cerca de 50 mil habitantes rodeado de floresta.

Quando falamos da Amazônia, estamos tratando de uma área maior do que a União Europeia, por isso é natural para alguns moradores da região imaginar aquilo que chamam de “mato” como algo infinito. Mas além de preservar a floresta ainda intacta, é possível fazer um uso muito mais qualificado das áreas já desmatadas, e os sistemas agroflorestais oferecem um caminho para aliar um melhor uso da terra a um futuro mais próspero. A família Soares encontrou no beneficiamento da mandioca e na busca por conhecimento alternativas para se diferenciar e criar diversos produtos, mas muitos ainda dependem apenas da farinha como ganha pão, um produto que tem demanda certa, mas rentabilidade baixa e alta carga de trabalho.

Marlice Soares, 9 anos, com uma das mudas de árvores amazônicas plantadas no sistema agroflorestal (Foto: Joana Oliveira/WRI Brasil)

Sistemas modulares e replicáveis

Quando o conhecimento técnico chega nessas comunidades, os produtores rurais percebem que a dependência da mandioca estabelece um limite de sucesso e que o consórcio com árvores frutíferas e espécies florestais nativas pode gerar mais renda em uma mesma área. Ainda em 2018, Messias e a família, assim como outros 21 agricultores, aceitaram receber ajuda do WRI Brasil e da Preta Terra para implementar unidades demonstrativas de sistemas agroflorestais que pudessem ser expandidos. “Ao conversarmos com as famílias rurais e perguntarmos suas ambições, ficou muito claro que não sonhavam em vender a terra e sair da zona rural, ao contrário, todos tinham muito orgulho. Percebemos que com conhecimento técnico e apoio, eles avançariam rapidamente para um novo paradigma de produção”, lembra Mariana Oliveira, analista de pesquisas do programa de Florestas do WRI Brasil.

Foram alguns meses de diagnóstico realizado junto à Preta Terra, empresa especializada em implementar sistemas agroflorestais, para identificar famílias engajadas e dispostas a investir no novo modelo produtivo, que tivessem boa representatividade feminina, com jovens dispostos a permanecer na área, entre outros critérios de seleção. Definido o grupo, começou o desenho de cada sistema. A proposta foi trabalhar com módulos (de até 1 hectare) replicáveis em qualquer tamanho de área e com possibilidade de serem realizados ajustes e substituições de espécies ou plantios ao longo do processo.

No sistema agroflorestal desenvolvido pelo projeto junto com a comunidade, o agricultor pode continuar o tradicional plantio de mandioca de 1 m x 1 m, mas evitar a queimada total para preparação da área. Entenda no infográfico abaixo:

O desenho da agrofloresta

O modelo parte do plantio de mandioca já adotado pelos produtores, porém sem uso de fogo. A matriz de mandioca também pode ser substituída por outras culturas anuais ou até por pastagem para criação de animais.

Na matriz são inseridas espécies arbóreas nativas de ciclo longo e alto valor, espaçadas em 10 metros. Entre as espécies estão pau rosa, cumaru, andiroba ou cedro vermelho, que servem para madeira, essências, sementes e outros usos.

Entre as árvores nativas são incluídas árvores frutíferas de sombra, distantes 2,5 metros entre si. Os Soares, por exemplo, optaram por açaí, manga, romã, tangerina, limão, laranja, açaí, cupuaçu, acerola e graviola.

Para produzir biomassa dentro do sistema ao longo do ciclo, que pode ser de até 30 anos, foi sugerida uma linha de espécies de serviço que inclui bananeiras espaçadas intercaladas pelo plantio de uma muvuca de sementes com espécies como paricá, urucum, taperebá, feijão guandu, milheto e milho.

 

Fonte: Preta Terra
Ilustração: Joana Oliveira/WRI Brasil

Com o novo modelo produtivo, os agricultores diversificam e aumentam as fontes de renda a médio e longo prazo, além de ganhar maior segurança alimentar e resiliência. Tudo isso a partir de um sistema livre de desmatamento e degradação em uma região que carece de dinamismo econômico sustentável. Com o tempo e a partir do ganho de escala, a prática contribui com a mitigação e adaptação às mudanças climáticas e o resgate da biodiversidade local, além de evitar o avanço da derrubada da floresta. “A mudança serve para trazer qualidade de vida às famílias, que terão uma renda maior e mais alimento com menos trabalho pesado na roça. É um método sustentável, resiliente ao clima e mais eficiente. Mas, acima de tudo, traz esperança de um futuro melhor”, explica Mariana Oliveira, do WRI Brasil.

Foto: Asteroide

Às vezes eu e o Messias ficamos com as partes mais pesadas, mas todas nossas filhas ajudam em tudo, a gente trabalha em conjunto e se divide. A agrofloresta traz muitos benefícios, tanto para a natureza quanto para nós. A minha maior preocupação é a gente deixar um meio de sobrevivência para elas.

Maria Cidenilda de Chagas, a Nilda

Aposentadoria sustentável

Com menos de um ano, a área ainda não está produzindo, mas Messias e seu time agora se permitem sonhar um futuro com sistemas agroflorestais em toda a propriedade, com potencial para gerar empregos para outros trabalhadores e manter os filhos por perto para levar adiante a cultura da região. “O projeto é como uma aposentadoria para elas, que não só elas vão poder ganhar, como será uma oportunidade até para empregarmos outras pessoas que precisem trabalhar. Também vai servir de modelo para outras gerações por mostrar que filho da roça também pode ser um doutor e investir o conhecimento aqui na roça. Não é ir embora e deixar isso aqui para trás. Elas vão levar em frente porque elas ajudaram a construir”, diz o pai orgulhoso de poder ter proporcionado aos filhos a oportunidade que não teve de estudar.