O ambiente afeta o comportamento, assim como o comportamento afeta o ambiente. Essa é uma das principais proposições da psicologia ambiental, área que estuda a inter-relação entre o comportamento humano e o ambiente que o circunda, seja ele construído ou natural. Se o ambiente tem o poder de influenciar nossas escolhas e hábitos, então é possível planejá-lo para que incentive escolhas mais sustentáveis. E ruas completas oferecem uma forma de fazer isso.

Zenith Delabrida, professora da Universidade Federal de Sergipe, psicológa e pesquisadora da área de psicologia ambiental, falou em detalhes sobre como se dá essa relação no seminário online “Interdisciplinaridade das Ruas Completas”, realizado pelo WRI Brasil em 2019.

Zenith Delabrida, psicóloga e professora da Universidade Federal de Sergipe (Foto: Arquivo pessoal)

O campo de estudos da psicologia ambiental, conforme explica a especialista, tem o objetivo de entender a relação pessoa-ambiente e, a partir disso, pensar em como promover mudanças, ou no ambiente ou no comportamento, que contribuam para o bem-estar das pessoas. “Não é possível entender os seres humanos sem compreender seu contexto”, afirma Zenith. “Na psicologia ambiental, analisamos a relação pessoa-ambiente a partir da perspectiva do indivíduo inserido em determinado contexto social e procuramos entender o que é preciso fazer para que as pessoas tenham uma relação positiva com seu entorno”.

Como se constitui a relação entre pessoa e ambiente, como podemos planejar os espaços públicos considerando a influência que exercem sobre o comportamento humano e como ruas completas podem ser uma solução nesse sentido foram os temas abordados pela professora, e os quais aprofundamos neste artigo.

Da consciência à inconsciência: a influência do ambiente no comportamento

Podemos considerar que a ação das pessoas no espaço em que vivem se dá por dois caminhos: o primeiro, quando o indivíduo age sobre a realidade, e o segundo, quando é a realidade do espaço que determina as escolhas do indivíduo. Um exemplo que ilustra essa situação é o uso da bicicleta. Muitas pessoas tendem a usar a bicicleta apenas como opção de lazer por questões de segurança. A escolha é feita porque, em geral, os espaços em que precisariam pedalar nos deslocamentos casa-trabalho não oferecem a segurança necessária. Temos, nesse caso, uma situação em que as condições do ambiente determinam o comportamento das pessoas.

Transferida para o planejamento urbano, essa é uma questão crucial. “Essas perspectivas ajudam a entender o grau de consciência do indivíduo nas escolhas do dia a dia. A tomada de decisão não é tão simples quanto imaginamos. E a diferença entre poder agir sobre uma dada realidade ou a realidade determinar nossas escolhas é muito importante”, reforça a especialista. Diante disso, é fácil perceber como as características físicas e estruturas presentes no meio urbano podem determinar muitos de nossos hábitos e comportamentos. Se temos o objetivo de incentivar a mobilidade ativa, o ambiente precisa influenciar essas escolhas. Ao planejarmos uma intervenção, como uma Rua Completa, as mudanças precisam ajudar as pessoas a fazer escolhas mais sustentáveis.

Psicologia ambiental e ruas completas

O ambiente físico pode potencializar ou inibir diferentes atividades. O planejamento dos espaços urbanos ou de intervenções como as feitas em projetos de ruas completas precisa considerar os usos existentes e desejados para a rua, o contexto em que a rua está inserida, os desejos e necessidades das pessoas que vivem ou circulam no local. Todas essas variáveis ajudam a determinar a chamada “vocação da rua”, elemento fundamental para que se estabeleça uma relação positiva entre pessoas e ambiente.

Para fazer essa análise à luz do conceito de ruas completas, explica Zenith, “uma das primeiras coisas que precisamos considerar é o tipo de atividade que é realizado na rua – quem são as pessoas, que ambiente físico é aquele e o que acontece na confluência entre os dois”. A seguir, apresentamos a análise feita pela especialista, relacionando conceitos da psicologia ambiental com os objetivos de projetos de ruas completas.

1. Respeitar e responder aos usos existentes de cada região, assim como aos usos planejados para o futuro | Está ligado ao conceito de territorialidade, que é a relação entre o grupo social a que pertencemos e o ambiente onde esse grupo está. Ao fazer parte de um grupo – moradores de um bairro ou de uma rua, por exemplo –, criamos um território ao qual esse grupo pertence e passamos a ter uma perspectiva de gestão desse espaço. Entender como o espaço foi planejado e construído e como é utilizado ajuda a evitar conflitos e a pensar nos usos para o futuro. “A dinâmica social é rápida e fluida, e os conflitos são inevitáveis, mas quanto mais os usos desse espaço forem claros, menor a chance de conflito”, avalia Zenith.

2. Priorizar os deslocamentos realizados por transporte coletivo, a pé e de bicicleta | Aqui, nos vemos diante de uma variável essencial: segurança. A violência compromete o tecido social, violando acordos fundamentais, como a integridade física das pessoas e a integridade patrimonial. “Para promover essas formas de deslocamento, que colocam a pessoa mais em contato com a rua e o ambiente, é indispensável levar em consideração a variável da segurança”, comenta a professora, “o que também nos coloca as questões de gênero – as mulheres são mais vulneráveis – e de infraestrutura, que pode favorecer a violência ou ajudar a inibi-la”.

3. Respeitar a escala das construções e recuos | Esse objetivo está ligado à relação entre público e privado. “Na nossa cultura, temos a tendência de entender tudo como privado”, Zenith avalia. “Se há uma área verde pública em frente ao portão, por exemplo, o proprietário tende a avançar com o portão para ocupar a maior área possível. Esse padrão é muito presente em Brasília”, completa. Na avaliação da especialista, para implementar um projeto de ruas completas, é preciso entender as normas vigentes nesse sentido e como o contexto social apreende essas normas.

4. Apoiar a diversidade de usos do solo, mesclando residências, comércio e serviços | Aqui temos o encontro com o conceito de cidades para pessoas, que vem da arquitetura mas também é utilizado na psicologia ambiental. “Isso se dá a partir do entendimento do espaço da rua como microterritório. Para promover a diversidade de usos, um projeto precisa respeitar e aproveitar esses microterritórios que já existem”, pontua a professora. Além disso, é necessário também acompanhar e avaliar os impactos das mudanças feitas: “Uma vez que uma mudança é feita em determinado contexto, essa mudança é absorvida – mas também pode e deve ser alterada, caso se entenda que não foi bem-sucedida”. É a proposta das ruas completas: diagnosticar, implementar a mudança, testar, avaliar e fazer os ajustes necessários.

5. Tornar a rua um lugar de permanência das pessoas e não somente de passagem | Esse objetivo é possível quando o ambiente oferece as condições para que diferentes tipos de atividades aconteçam na rua. “Para que as ruas sejam locais de convivência, que geram essa sensação de bem-estar, é preciso garantir que o ambiente seja favorável a elas. Pessoas atraem pessoas. Quando entendemos o papel do ambiente físico em proporcionar essa interação entre as pessoas, entendemos como essa interação é positiva para o ambiente”, avalia Zenith.

6. Envolver moradores e grupos da comunidade para entender o bairro e suas prioridades | Por fim, o sexto objetivo está diretamente relacionado aos processos de construção da identidade – o sentimento de pertencimento e ligação ao lugar. Quanto maior a identificação das pessoas com o lugar onde vivem, explica Zenith, maior a chance de apropriação e cuidado: “Quanto esse espaço está ligado à minha identidade? Para um lugar fazer parte da nossa identidade, precisamos realizar atividades ali”. Essa é uma variável potente para o planejamento de intervenções como as das ruas completas – as mudanças precisam estar alinhadas aos valores das pessoas que vivem naquele ambiente e à relação existente entre ambas as partes.


Assista à apresentação da professora Zenith Delabrida na íntegra (a partir de 35:15).