Afinal, o que são ruas completas?
Desde 2017, o WRI Brasil trabalha com o conceito de ruas completas por meio da Rede Nacional Para a Mobilidade de Baixo Carbono e, a partir de 2021, também na Rede Ruas Completas SP. É comum associar a palavra “completa” à perfeição ou deduzir que esse tipo de rua terá sempre espaços segregados para cada usuário da via, como pedestres, ciclistas, ônibus ou carros, por exemplo. Por isso, tentamos tirar algumas dúvidas sobre a nossa abordagem para o conceito.
O que são ruas completas?
Ruas completas são ruas desenhadas para dar segurança e conforto a todas as pessoas, de todas as idades, usuários de todos os modos de transporte. O conceito tem como base distribuir o espaço de maneira mais democrática, beneficiando a todos. Não existe uma solução única de rua completa. Todas as melhores alternativas de desenho urbano podem ser incorporadas desde que respondam ao contexto local da área onde se localizam, reflitam a identidade da rua e as prioridades daquela comunidade.
Principais objetivos dos projetos de ruas completas:
- Respeitar e responder os usos existentes de cada região, assim como usos planejados para o futuro.
- Priorizar os deslocamentos realizados por transporte coletivo, a pé e de bicicleta.
- Respeitar a escala das construções e recuos.
- Apoiar a diversidade de usos do solo, mesclando residências, comércio e serviços.
- Tornar a rua um lugar de permanência das pessoas e não somente de passagem.
- Envolver residentes e grupos da comunidade para entender o bairro e suas prioridades.
Quais os benefícios das ruas completas?
Como não há um desenho único para as ruas completas, os benefícios também podem variar bastante. A tendência é que esse conceito traga alguns impactos básicos, comuns a todas as configurações, já que elas estimulam melhorias na igualdade, segurança, saúde, tornando os espaços urbanos mais compartilhados e vivos, com muitos benefícios indiretos. Com acesso a ruas mais completas, as pessoas se sentem seguras para adotar padrões de deslocamento mais sustentáveis e com menos impacto climático, como a bicicleta e a caminhada. Há ganhos relevantes de acessibilidade, crianças e idosos se relacionam melhor com a cidade e muitas áreas degradadas podem começar a ser revitalizadas a partir desse conceito de desenho urbano. O transporte coletivo também pode ter melhorias, seja na qualidade do acesso das pessoas até os pontos de parada, seja na operação, a partir de vias exclusivas, por exemplo.
Como o Código de Trânsito Brasileiro define as ruas?
O Sistema de Classificação Funcional de vias urbanas, definido no Código de Trânsito Brasileiro (CTB), estabelece categorias de ruas de acordo com sua importância relativa para a cidade em geral, os tipos de usuários e o uso do solo. O sistema é baseado em características operacionais predominantemente relacionadas à mobilidade e à capacidade de tráfego de veículos motorizados, e deve ser usado para recomendar valores para elementos da via como largura das faixas, velocidades máximas, geometria e configuração das interseções.
Em um extremo da hierarquia existem as vias de trânsito rápido, caracterizadas pelo trânsito livre de veículos motorizados, onde não existem interseções em nível, travessia de pedestres ou acesso direto aos lotes adjacentes. No outro extremo estão as vias locais, que permitem fácil acesso para residentes em baixas velocidades. Entre as vias de trânsito rápido e as locais estão as vias arteriais, que dão prioridade à mobilidade, conectando as diferentes regiões da cidade, e a viagens mais longas, e as vias coletoras, caracterizadas por um balanço entre acessibilidade e mobilidade. As classificações funcionais são a base para a maioria dos guias de projetos e manuais de vias a nível municipal, estadual e nacional.
Porém, as recomendações do Sistema de Classificação Funcional por si só não são suficientes para desenhar uma rua completa. O projeto de uma rua completa deve também levar em consideração o contexto da vizinhança local e o tipo e a concentração de usos dos terrenos adjacentes, pois esses fatores influenciam em como as ruas são utilizadas. Um sistema de classificação mais integrado que reflita esses diversos usos e funções das ruas é necessário para complementar o Sistema de Classificação Funcional. As cidades podem desenvolver uma classificação de ruas que forneça uma orientação adicional para a seleção dos elementos de projeto.
Quando uma rua se torna completa?
Mais importante do que classificar se uma rua é completa ou não, é mudar o paradigma de desenho viário do último século e ainda em prática no Brasil, baseado em soluções para o tráfego de veículos e não para o uso das pessoas. O conceito de ruas completas foi concebido para influenciar o poder público a levar em consideração outros aspectos no momento de planejar os perfis viários de uma cidade. Uma rua se torna mais completa quando há uma distribuição mais democrática do espaço e segurança para todos os seus usuários.
Para iniciar esse processo de disseminação e entendimento do conceito pelo país, o WRI Brasil formou, em parceria com a Frente Nacional de Prefeitos (FNP), a Rede Nacional Para a Mobilidade de Baixo Carbono, composta por 10 cidades brasileiras e o Distrito Federal. Cada uma delas selecionou uma rua para receber um projeto piloto sob a ótica das ruas completas. Alguns municípios, inclusive, já estão trabalhando na implementação. O WRI Brasil oferece apoio técnico às cidades, contribuindo para que os projetos saiam do papel.
O investimento precisa ser feito todo de uma vez?
A mudança de paradigma na concepção das ruas passa também pelo processo de implementação. O primeiro passo não precisa ser um grande investimento em infraestrutura, já que é possível adotar soluções com materiais de baixo custo para a redistribuição do espaço. A Rua Joel Carlos Borges, em São Paulo, é um bom exemplo. O projeto para a requalificação daquela via foi separado em diferentes fases. A primeira delas já foi implementada, com uso de materiais de baixo custo e rápida implantação, como tinta e sinalização. Agora, será possível medir como as pessoas irão se comportar nesse novo espaço, entender os fluxos e medir os impactos. Após toda essa análise, a prefeitura da cidade poderá adaptar o projeto definitivo, de acordo com observações técnicas ou dos moradores, utilizando recursos maiores apenas quando a população local já estiver acostumada ao novo desenho da rua – com espaços distribuídos democraticamente, segurança para todos usuários, etc.
Na Joel Carlos Borges, os números mostram que são 22,5 pedestres para cada carro nos horários de pico. A vocação daquela rua é atender à alta demanda de pessoas caminhando. O limite de velocidade reduzido, de 20 km/h, permite que ciclistas e carros compartilhem a faixa de rolamento existente. É uma rua completa porque o novo desenho distribui o espaço viário de acordo com o real uso, mesmo que não disponha de faixa dedicada ao transporte coletivo, para bicicletas ou outras soluções de desenho viário.
Fazer apenas uma rua completa na cidade é o suficiente para construir cidades para as pessoas?
Com certeza, não. É comparável a fazer uma ciclovia em apenas uma rua, sem conexão com outras. A intenção do WRI Brasil é disseminar o conceito de ruas completas para as pessoas e gestões municipais, para que levem em consideração os benefícios desse tipo de projeto ao planejar o desenvolvimento urbano da cidade. Quando visitamos a Rua da Hora, no Recife, onde ocorrerá um projeto de rua completa, percebemos que as pessoas ouvidas por nós, mesmo as que andavam apenas a pé na região, não conseguiam imaginar uma maneira de melhorar aquela rua. Muitas diziam que era melhor não mexer para não prejudicar o trânsito de carros, que já era confuso. Quando o projeto de ruas completas for implementado na Rua da Hora, aqueles que puderem experimentar uma rua pensada para pessoas terão a oportunidade de avaliar se o desenho proposto atende à vocação daquela via e se torna a experiência de passagem e permanência mais agradável.
A ideia é que as cidades incluam diferentes perfis viários nas suas políticas de planejamento urbano, levando em consideração uma distribuição do espaço mais democrática e que atenda aos diferentes usuários. Tanto os Planos de Mobilidade como o Planos Diretores podem incluir princípios e conceitos de ruas completas. Ao disseminar esse conceito, buscamos mudar o paradigma da forma como as ruas são projetadas, para construir cidades mais seguras, equitativas e vivas para as pessoas.
O caso de Boston
Boston, nos Estados Unidos, incorporou a política de ruas completas oferecendo um balanço entre a classificação funcional, usos adjacentes e as necessidades demandadas por todos meios de transporte. Foi a estratégia adotada pela cidade para incentivar o transporte ativo e um trânsito mais seguro, além de dar mais vida às ruas. Parte importante para o sucesso do projeto foi o premiado guia de desenho, recheado de infografias e ilustrações, além de um site interativo.
Segundo a política, cada tipo de rua prioriza usuários e elementos viários baseados no contexto e características da vizinhança e da própria rua. Em áreas onde há empreendimentos com direito de passagem restrito, foi estimulado o uso de opções de transporte saudáveis e ativas como as bicicletas e a mobilidade a pé. Além disso, refletindo a variedade de diferentes usos das vias e seus contextos, a classificação inclui três tipos especiais – Ruas Compartilhadas, Parkways e Boulevards – que são caracterizadas também por elementos viários únicos para cada tipo.
Boston também determinou larguras mínimas e recomendadas para as faixas de tráfego de uma rua completa de acordo com cada tipo de rua. Para a calçada, essas medidas foram especificadas para a faixa livre, a faixa de transição e a faixa de serviço.
Veja a largura das faixas de acordo com o tipo de rua:
Largura de cada zona da calçada de acordo com o tipo de rua: