As receitas adicionais que poderiam ajudar a financiar o transporte coletivo no Brasil
O transporte é um dos pontos essenciais para a eficiência urbana. Cerca de 17 milhões de brasileiros das Regiões Metropolitanas levaram 114 minutos em média nos seus deslocamentos diários de casa ao trabalho em 2012, o que equivale a um custo de produção sacrificada de R$ 111 bilhões, de acordo com estudo da Federação da Indústrias do Estado do Rio de Janeiro (Firjan). Sem contar o gasto energético e as emissões de gases de efeito estufa.
Uma das soluções para evitar esse desperdício de recursos é um planejamento urbano adequado, com foco no desenvolvimento para o uso do transporte coletivo. Contudo, o desenvolvimento das cidades brasileiras tem a característica de deixar o transporte coletivo de lado. Um indicativo disso é que parcela considerável das cidades ainda não têm ou não fazem uso efetivo dos Planos de Mobilidade. Crescer sem planejamento adequado resulta em cidades espraiadas, que aumentam as distâncias para os cidadãos e têm redes de transporte coletivo com custos mais altos de implementação e manutenção."
Apesar de sua relevância, o transporte coletivo vem enfrentando desafios crescentes. Segundo a Associação Nacional das Empresas de Transportes Urbanos (NTU), a demanda pelo transporte coletivo reduziu 28% entre 1994 e 2016, enquanto a demanda pelo transporte individual, no sentido oposto, só aumenta. No mesmo período, o licenciamento de carros aumentou 103% no Brasil, de acordo com a Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea).
Atualmente, a tarifa é a base de receita para o pagamento dos custos operacionais dos ônibus. Novas fontes de extratarifárias são necessárias para a manutenção e ampliação do sistema. Nos sistemas mais bem-sucedidos no mundo em termos de qualidade, como em Seul, Londres e Paris, a obtenção de receitas adicionais é prática comum.
Mas de onde viriam tais receitas extratarifárias? Uma das abordagens utilizadas ao redor do mundo para responder essa questão é definir quem deve pagar pelo transporte público. Nesse caso, seriam todos aqueles que de certa maneira são beneficiários pela infraestrutura urbana de transporte: a sociedade, os usuários da via, o setor produtivo e os proprietários dos imóveis próximos às infraestruturas de transporte. A seguir, listamos cada um desses atores e como eles poderiam contribuir no financiamento do transporte coletivo.
Subsídios públicos são raros na maioria das cidades (Foto: Mariana Gil/ WRI Brasil)
- Sociedade: o transporte público beneficia a sociedade como um todo ao conectar as pessoas aos diferentes pontos de interesse da cidade: moradia, trabalho e lazer. Desde 2015, a mobilidade é um direito constitucional que deve ser garantido pelo poder público. Dessa forma, subsídios à operação dos serviços através do orçamento geral da união, estados e municípios constituem-se em uma forma de garantir o funcionamento do sistema. Essa é uma prática comum entre as cidades europeias e já é aplicado em alguns sistemas de ônibus de municípios brasileiros, como São Paulo, Brasília e Florianópolis.
Contudo, os subsídios devem ser destinados de uma maneira integrada entre os diferentes modais de transporte, como ônibus, metrô e trens para garantir a viabilidade do sistema de transporte como um todo. Além disso, a provisão do subsídio pelo ente público deve ser fiscalizada, para garantir que não sejam criados incentivos à ineficiência operacional dos operadores. Nesse sentido, indica-se que os subsídios públicos sejam responsáveis pelas gratuidades, como de estudantes e de idosos, o que vai ao encontro às políticas públicas de cunho social e desonera esse custo do sistema de transporte. Algumas cidades europeias chegam a subsidiar em mais de 70% os seus sistemas de transporte. A participação de São Paulo, a cidade que mais investe no Brasil, deve chegar a 40% neste ano.
Principais usuários das vias ainda pagam pouco por esse privilégio (Foto: Mariana Gil/WRI Brasil)
- Usuários da via: a infraestrutura viária é um bem público e seu uso deve ser partilhado por todos os moradores da cidade. No entanto, alguns usos causam externalidades negativas, e os responsáveis devem compensar os malefícios a toda sociedade. Os usuários do transporte individual são os principais causadores de poluição per capita e de congestionamentos viários. Os carros ocupam 70% das vias públicas e transportam somente 30% das pessoas, enquanto que emitem cerca de 4 vezes mais poluentes locais e 2 vezes mais poluentes de efeito estufa por passageiros em relação ao ônibus. Portanto, onerá-los pela utilização das infraestruturas urbanas e, simultaneamente, criar incentivos ao uso do transporte público são alternativas altamente indicadas para o financiamento da operação de transporte. Dentre as possibilidades, destacam-se a taxação de áreas de estacionamentos públicas e privadas, a taxação do congestionamento, a taxa sobre combustíveis e o imposto da propriedade de veículo individual.
A taxação das áreas públicas de estacionamento já é uma prática recorrente nos municípios brasileiros, realizada através dos parquímetros. Sua cobrança baseia-se na utilização da via pública para o estacionamento de veículos por determinado período de tempo, incentivando a rotatividade dos veículos estacionados na via. Entretanto, o valor arrecadado, em geral, não é destinado diretamente ao sistema de transporte público. Goiânia é uma cidade que já inverteu essa lógica. Já a cobrança pelos estacionamentos privados ainda não ocorre no Brasil. Poderia ser realizada indiretamente, com a elevação do IPTU sobre vagas de veículos privados ou com a taxação sobre as vagas de estacionamento em áreas com altos índices de congestionamento.
A taxação de congestionamento consiste em cobrar uma tarifa para o acesso de meios de transporte motorizados a vias urbanas congestionadas nos horários de maior tráfego. A aplicação da taxação de congestionamento ainda não foi realizada no Brasil, mas tem casos de sucesso em Cingapura (que começou em 1975), Londres e Estocolmo. Em Londres, de 2003 a 2013, foram arrecadados £ 1,2 bilhões, investidos em transporte coletivo e infraestrutura viária para ruas, pontes, pedestres e ciclistas. Outra parte foi direcionada especificamente para melhoria no sistema de ônibus.
Atualmente, existe uma tentativa de aplicação de algo semelhante à taxação de congestionamento no caso da regulamentação dos aplicativos de transporte particular responsivos a demanda, como Uber e Cabify, em São Paulo. Está em processo de aprovação a cobrança onerosa aos motoristas dos aplicativos pelo uso intensivo das vias, com taxas que elevam-se nos horários e nos locais com maiores índices de congestionamentos e reduzem-se quanto maior a distância da viagem e a lotação do carro. Os valores arrecadados teriam destinação exclusiva para melhorias urbanas e a arrecadação estimada seria de R$ 57,7 milhões para os cinco mil carros existentes.
Os impostos destinados aos usuários do transporte individual, como o imposto sobre a propriedade de veículos automotores (IPVA) e a taxação municipal sobre combustíveis, conhecida como a contribuição de intervenção no domínio econômico municipal (Cide-combustíveis), já existem no Brasil. Contudo, o uso destes recursos não é direcionado, em sua grande maioria, ao sistema de transporte coletivo, e acaba sendo comprometido para outras áreas. Por exemplo, 20% da arrecadação estadual e da cota-parte municipal com o IPVA destina-se ao setor de educação, direcionado ao Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (FUNDEB). Não há algo semelhante para o setor de mobilidade urbana.
Isso também ocorre com a arrecadação da Cide-combustíveis. Apesar de destinar-se originalmente para investimentos em infraestrutura de mobilidade, devido ao rateio entre as esferas governamentais, pouco se destina aos municípios e, portanto, para o sistema de transporte coletivo. Na tentativa de reverter o quadro, está tramitando no Congresso Nacional um projeto de lei que prevê a destinação dos recursos da Cide para um fundo direcionado unicamente para o custeio da operação e dos investimentos do transporte coletivo.
Prática semelhante a essa ocorre em Bogotá, na Colômbia. A taxação sobre os combustíveis é destinada a um fundo específico para o transporte coletivo, cujos recursos cobriram cerca de 20% do investimento das três primeiras linhas do Sistema BRT Transmilenio.
Iniciativa privada poderia contribuir mais com a mobilidade urbana (Foto: Mariana Gil/WRI Brasil)
- Setor produtivo: As empresas são beneficiárias indiretas do sistema de transporte coletivo, que permite o acesso da mão-de-obra aos seus postos de trabalho. Nesse sentido, as companhias que mais se beneficiam poderiam contribuir para a manutenção do sistema. Nesse contexto, o Brasil tem o Vale Transporte (Lei 7418/1985), que consiste na contribuição do empregador a uma parcela dos custos de deslocamento dos seus funcionários. Outra possibilidade existente seria a cobrança de tributo sobre a folha de pagamento para destinar ao sistema de transporte coletivo. Tal cobrança é bastante consolidada na França. Ocorre desde 1971, com o nome de Versement Transport. A taxa cobrada varia entre 0,5% a 2,6% da folha de pagamento para empresas públicas e privadas com mais de nove empregados. O valor é destinado para as autoridades de trânsito. Em Lyon, por exemplo, o valor atingiu cerca de 37% do orçamento da Sytral, autoridade de trânsito do município. Para o contexto brasileiro, contudo, a sua aplicabilidade é bastante delicada, uma vez que atinge a tributação sobre a folha de pagamentos, que já é considerada alta.
Instrumentos urbanísticos também podem contribuir com o financiamento do transporte coletivo (Foto: Mariana Gil/WRI Brasil)
- Proprietários de imóveis próximos a infraestrutura de transporte: Quando implementadas novas infraestruturas de transporte coletivo, em geral, os imóveis privados do entorno são beneficiados, ganhando valor. Dessa forma, a recuperação desta valorização da propriedade privada resultante do investimento público no entorno do imóvel privado seria uma forma de financiar o sistema de mobilidade urbana. Essa recuperação é denominada captura de mais valia territorial ou captura de valor. No Brasil, já existem instrumentos urbanísticos previstos no Estatuto da Cidade que permitem a captura de valor, como: a Contribuição de Melhoria, a Outorga Onerosa do Direito de Construir (OODC) e os Certificados de Potencial Adicional de Construção (CEPACs).
O uso dos recursos obtidos por esses instrumentos deve ser destinado para melhorias e ações de planejamento urbano como um todo na cidade. Por isso, a aplicação destes recursos no sistema de transporte deve estar alinhada com o plano de desenvolvimento urbano do município. Em São Paulo, por exemplo, os recursos da OODC são destinados a um fundo específico, chamado Fundo de Desenvolvimento Urbano (FUNDURB), em que 30% dos recursos devem ser destinados à provisão de sistemas de transporte público coletivo, cicloviário e de circulação de pedestres.
Existem outras maneiras de obtenção de recursos extratarifários que podem ser analisadas, como as receitas oriundas de alugueis de áreas comerciais e de serviços nas áreas de estações de transporte e no seu entorno. Também precisam ser levadas em consideração as receitas de publicidade em fachadas de prédios públicos e espaços de infraestrutura pública ligadas ao transporte, como pontos de acesso (pontos de ônibus, estações e terminais) e nos próprios veículos. Na cidade de São Paulo, por exemplo, 5% das receitas do metrô vem do aluguel de lojas dentro das estações e de publicidade.
A partir desse conjunto de opções de arrecadação de receitas extratarifárias, observa-se que existem opções para obtenção de mais recursos, inclusive algumas já estão implementadas no contexto brasileiro. Mas é latente a necessidade de uma avaliação sobre a destinação destes recursos e o seu direcionamento para o sistema de transporte urbano. A aplicação de receitas extratarifárias é uma condição necessária para a manutenção da operação do sistema de transporte coletivo, especialmente o de ônibus.
Contudo, apenas a aplicação das medidas não é suficiente se não houver uma gestão metropolitana do transporte coletivo e uma rede estruturada com integração modal e tarifária, como também a gestão do planejamento urbano municipal e metropolitano. Ainda, é importante que estas receitas extratarifárias estejam atreladas a critérios de qualidade, para garantir que sejam refletidas em melhorias no sistema de transporte público e na sua eficiência operacional.