O transporte coletivo precisa de novas fontes de recursos. As chamadas receitas extratarifárias tornam-se mais necessárias à medida que a pandemia de Covid-19 impacta os já combalidos sistemas de ônibus urbanos. O Brasil tem muito espaço para avançar na geração de receitas para o transporte sustentável, e há bons exemplos aqui mesmo, em cidades brasileiras, que podem inspirar outros centros urbanos do país a realizarem pequenas mudanças com impactos significativos.

A busca por alternativas para financiar o transporte tem sido uma viagem sem ponto final que cidades e operadores de ônibus empreendem há anos, mas que agora atinge um ponto crítico. Dependente principalmente das tarifas para operar, o transporte coletivo na maioria das cidades brasileiras se vê em um círculo vicioso de perda de demanda – e consequentemente, de receitas – que impossibilita a qualificação necessária para atrair e manter clientes.

Em reunião no ano passado, cidades do Grupo de Benchmarking QualiÔnibus já haviam compartilhado ações para lidar com impactos da pandemia. No encontro virtual mais recente, realizado no início de março, Belo Horizonte, São Paulo e Fortaleza apresentaram soluções alternativas para gerar receitas direcionadas para o transporte sustentável – e que já são ou podem ser empregadas como fontes extratarifárias específicas para o transporte coletivo.

Fortaleza recorre a receitas do estacionamento

foto de paraciclo

Fortaleza investe receitas do estacionamento rotativo em infraestrutura para bicicleta (foto: Prefeitura de Fortaleza/Divulgação)

Em 2018, Fortaleza passou a direcionar a receita do estacionamento rotativo integralmente ao transporte sustentável. A capital cearense conta com 6,2 mil vagas na chamada Zona Azul, que contribuem para a qualificação da infraestrutura cicloviária. O modelo pode ser adaptado para outros propósitos, como gerar receitas para o transporte coletivo, como anunciado por Goiânia.

No caso de Fortaleza, os recursos são integralmente destinados a investimentos de construção e manutenção de ciclovias, ciclofaixas, estações de bicicleta compartilhada Bicicletar, paraciclos, balizadores e cones para sinalização e operação de ciclofaixas. A arrecadação por estacionamentos tem sido um elemento importante para viabilizar as ações de priorização das bicicletas que a cidade empreende há anos. Entre 2013 e 2020, a malha cicloviária foi expandida de 68 km para 347 km.

São Paulo aprimora modelo de taxação dos aplicativos

São Paulo é a cidade brasileira que mais subsidia o transporte coletivo – foram cerca de R$ 3,3 bilhões em 2020. Por outro lado, gera receitas a partir de cobranças de modos de transporte menos sustentáveis. Desde 2016, a cidade tem aprimorado um modelo de taxação do transporte por aplicativo.

A chegada dos carros por aplicativo ao Brasil foi cercada de polêmica e gerou insatisfação entre operadores de ônibus e taxistas por ter encontrado condições favoráveis e menos obrigações financeiras. São Paulo logo reconheceu que a frota de carros por aplicativo representava uma carga significativa no trânsito saturado da metrópole e passou a realizar uma cobrança pelo uso do sistema viário que considera a quilometragem rodada.

A modelagem sofreu ajustes para encontrar um equilíbrio entre o estímulo, a concorrência e os custos de manutenção da via. Atualmente, o preço cobrado por quilometro é variável, e depende da faixa de quilometragem que foi percorrida no intervalo de uma hora, podendo variar de R$ 0,10/km rodado a R$ 0,36/km rodado.

Além de gerar receitas, a regulamentação de São Paulo incentiva bons hábitos como viagens compartilhadas e mais motoristas mulheres – por meio de abatimentos nas taxas que podem ser repassados ao cliente. Em 2019, foram arrecadados, em média, R$ 17 milhões ao mês, que vão para os cofres públicos e não têm destinação específica para a mobilidade urbana.

A taxação dos aplicativos para financiar a mobilidade sustentável é uma realidade em Fortaleza. Também tem sido discutida em Porto Alegre, que busca novas receitas para qualificar o sistema ônibus sem aumentar a tarifa.

Em Belo Horizonte, empresas qualificam abrigos

Em 2016, Belo Horizonte deu os passos iniciais de um projeto que hoje contribui para a qualidade do sistema ônibus da cidade: a concessão dos abrigos de ônibus para a iniciativa privada. A empresa que recebe a concessão pode comercializar espaço publicitário nos abrigos. Em contrapartida, deve instalar novas estruturas e realizar a manutenção nas existentes por 25 anos.

A BHTrans, órgão de transporte da capital mineira, também recebe uma taxa mensal de R$ 60 por abrigo, valor que pode ser mais alto em regiões turísticas. Quando todos os abrigos estiverem instalados, os recursos gerados somarão mais de R$ 60 mil ao mês, além da outorga inicialmente paga (R$ 1 milhão). Aqui, mais do que os recursos arrecadados, o foco é a retirada dos custos de instalação e de manutenção do poder público e a qualificação do transporte coletivo por meio de pontos de ônibus mais confortáveis, local onde começa a experiência das pessoas com o sistema. Cada abrigo instalado representa mais de R$ 20 mil economizados pelo poder público.

Os abrigos devem atender a normas de acessibilidade. Recentemente, a partir de uma solicitação da sociedade civil, passaram a incluir dispositivos de alerta para deficientes visuais. O contrato permite a revisão e adequação dos abrigos para atender a exigências futuras.

Boas práticas a serem multiplicadas e adaptadas

As boas práticas apresentadas pelas cidades do Grupo de Benchmarking QualiÔnibus não solucionam a crise financeira do transporte coletivo – isso depende de mudanças mais amplas e profundas, que passam por novos modelos de contrato de concessão e pela cobrança adequada das externalidades negativas do uso individual do carro, custos invisíveis que ainda precisam ser demonstrados à sociedade. Mas os exemplos acima são contribuições importantes – ainda mais na crise aguda experimentada pelo sistema ônibus.

A discussão sobre a cobrança de externalidades é inadiável. Não é preciso olhar para o caso exemplar de Londres – há exemplos na América Latina, como Bogotá, que, além de possuir uma das mais inovadoras estruturas de concessão do continente, taxa a gasolina na bomba de combustível e direciona as receitas a um fundo de estabilização tarifária para o sistema TransMilenio.

A troca de experiências em que se baseou este artigo foi promovida pelo Programa QualiÔnibus do WRI Brasil, que conta com um Grupo de Benchmarking formado por 21 participantes entre líderes de cidades e empresas operadoras para avançar na melhoria dos sistemas com foco no cliente.