Artigo publicado originalmente na Revista NTU Urbano.


O espaço público pertence às pessoas e os gestores têm por obrigação regular o uso para maximizar a utilidade. Passou o tempo em que não havia regulamentação da circulação viária. Todas as ruas permitiam tráfego nos dois sentidos e livre estacionamento. Com a explosão da posse e do uso de carros, chegou-se ao consenso sobre a necessidade de regular.

Hoje, quase todas as cidades brasileiras exercem esse poder, embora de maneira tímida quando comparadas às mais desenvolvidas do planeta. Não foi fácil introduzir faixas exclusivas para ônibus quando a métrica vigente era maximizar o volume de veículos por hora. Há uns 40 anos, centros urbanos hoje referência em qualidade de vida voltaram seu planejamento para as pessoas, priorizando a qualificação de calçadas, a implantação de ciclofaixas, o controle do estacionamento e a consolidação de redes integradas de transporte coletivo.

Eis que surge a grande revolução na mobilidade urbana com o advento dos serviços de transporte por aplicativos, realizados em automóveis privados. O impacto deles é tanto maior quanto menor for a qualidade e a diversidade dos serviços regulados existentes. Naturalmente, alcançaram imediato sucesso no Brasil. Se por um lado oferecem tarifas atrativas, por outro tiram clientes do transporte coletivo e introduzem mais carros na corrente de tráfego, tornando a mobilidade menos sustentável.

No limite da desregulamentação, apareceriam muitos entrantes ofertando uma variedade de soluções que acabariam por inviabilizar o transporte coletivo. Reproduziríamos nas vias um paralelo com a proliferação de ambulantes nas calçadas, com o agravante de não dispormos de capacidade viária urbana para acomodar, em carros, todos que hoje usam o transporte coletivo.

A solução passa necessariamente pela regulação. Não a convencional, estilo táxi, focada em concessão de licenças, mas uma mais inteligente que contribua para reduzir congestionamentos, emissões e acidentes e melhorar a qualidade do transporte coletivo. São inúmeras as tentativas, embora com sucesso ainda relativo. No Texas, os gigantes dos aplicativos, insatisfeitos com a regulação imposta por uma cidade, conseguiram que o governo estatual limitasse o alcance de leis municipais. Algo semelhante ocorre aqui, agora que o Congresso Nacional discute lei que relegaria às cidades brasileiras o mero papel de agente fiscalizador.

Quando compete à cidade estabelecer sua regulamentação, os serviços por aplicativos podem ser regrados dentro de uma visão integrada da mobilidade. Em eixos com elevado volume de tráfego, não faz sentido permitir uma competição predatória entre o transporte coletivo e o ofertado por carros via aplicativos. Seria justificável taxar tais serviços pelo uso do espaço viário nos casos de sobreposição das rotas consolidadas, assim como poderia haver um mecanismo financeiro para fomentar o seu papel alimentador das linhas de bairros com baixa densidade populacional.

Em novembro de 2017, Chicago, que já taxava os serviços por aplicativos como São Paulo, aprovou um aumento destinado a angariar recursos exclusivos para o transporte coletivo. Também recentemente, um estudo da universidade californiana UC Davis analisou sete grandes cidades americanas e concluiu que os apps substituíram viagens antes feitas a pé, de bicicleta ou transporte público e aumentaram a quilometragem percorrida pelos cidadãos em carros com baixa ocupação.

Outras tantas possibilidades se abrem caso a lei federal não impeça as cidades brasileiras de estabelecer regras próprias. Nesse sentido, cobrar financeiramente o impacto das externalidades do transporte por aplicativos despertaria na sociedade uma discussão que já se impõe: a de estender a taxação a todos os veículos de uso privado para subsidiar um serviço integrado de transporte coletivo de maior qualidade, esse sim capaz de tornar nossa vida urbana mais sustentável.