As cidades no controle do futuro da mobilidade
Artigo escrito por Luis Antonio Lindau e publicado originalmente na edição 32 da revista Exame CEO, que tem como tema a mobilidade urbana.
Em plena era da informação, na qual cresce rapidamente o uso em tempo real de dados para a tomada de decisões, cada vez menos toleramos a ineficiência. No momento em que urge retomar o desenvolvimento no Brasil, salta aos olhos qualquer irracionalidade nos serviços ofertados, especialmente naqueles de natureza pública. No caso do transporte urbano, é inaceitável que o Brasil tenha sistemas de tão baixa qualidade, seja por falta de infraestrutura, gestão, tecnologia, informação ou regulação adequada. Estudos mostram que os congestionamentos e o consequente tempo perdido no trânsito representam, em média, perdas anuais superiores a R$250 bilhões, ou 4% do PIB nacional. Em São Paulo e no Rio de Janeiro, estima-se que o espraiamento urbano onere o PIB das cidades em até 8%.
Bem planejada, a urbanização apresenta capacidade ímpar de contribuir para um desenvolvimento mais sustentável, a promoção do crescimento econômico e a geração de prosperidade. Na ausência de planejamento, viceja a iniquidade e a exclusão social. Toda cidade requer que uso do solo e transporte sejam planejados de maneira integrada. O futuro da mobilidade não pode ser pautado por novas soluções que surgem ao sabor do mercado e atendem apenas a determinados segmentos da população.
No limite, congestionamentos de carros autônomos, ainda que elétricos e, portanto, menos poluentes, não tornariam nossas cidades lugares melhores para se viver. Se continuarem sendo bens privados, como ocorre hoje, e não de uso compartilhado, seria a primeira vez na história que teríamos veículos circulando sem pessoas. Isso, certamente, não resolveria o problema da ineficiência.
No Brasil, a gestão da mobilidade urbana ainda é muito limitada. Pouco se pratica a integração física, operacional e tarifária entre os diferentes modos – na verdade, muitos competem entre si. Cidades vizinhas não conversam, há sobreposição de oferta para trajetos semelhantes, e cada vez mais as pessoas deixam de usar o transporte coletivo tradicional, que agora enfrenta uma crise de dimensão nacional. Enquanto isso, cresce a oferta de sistemas pouco ou nada regulados de transporte por aplicativos, que oxigenam com a inovação, mas não atendem completamente a cidade. Vamos esperar a falência total do sistema atual de transporte coletivo de braços cruzados? Ou quem sabe tratamos logo de consolidar toda a oferta de mobilidade em uma rede multimodal integrada que leve em conta a dimensão metropolitana?
Durante as Olimpíadas do Rio, quem visitou a cidade contou com um bilhete único que permitia acesso a todo sistema de transporte coletivo. Também se beneficiou de uma ampla oferta de informações que facilitava as conexões e o acesso aos locais de competição, distribuídos por diversos bairros da cidade. Terminados os jogos, foi-se o bilhete único e sumiram as informações. Da integração entre os sistemas BRT, ônibus, VLT e metrô, quando muito permaneceu a física, mas não mais a tarifária e a operacional, tão valorizadas pelos usuários.
Gestão da mobilidade urbana ainda é muito limitada no Brasil (Foto: Joana Oliveira/WRI Brasil)
Naturalmente pouco serviria, para o dia-a-dia dos habitantes do Rio, poder comprar um bilhete único a R$ 25 por dia. Para reverter a espiral da morte – ciclo de queda dos passageiros pagantes e consequente aumento da tarifa – enfrentada pelo sistema ônibus no Brasil, precisamos contar com outras fontes de receitas, assim como ocorre fora do país em cidades que oferecem um bom sistema integrado de transporte urbano.
A eficiência que se almeja também precisa contemplar o uso do limitado e valiosíssimo espaço público. Faz quase um século que o automóvel determina a forma e a expansão das cidades. Enquanto cresce a motorização, veículos privados não pagam um valor justo pelo espaço que consomem e o impacto negativo que geram. Por exemplo, vagas gratuitas em vias públicas estimulam o uso desnecessário do carro, atrapalham a circulação de quem anda a pé ou de bicicleta e reduzem a capacidade das vias. Deveriam gerar receita ou deixar de existir, abrindo espaço para a priorização do transporte coletivo e do ativo, praticado por pedestres e ciclistas. Cidades com um mínimo de planejamento já fizeram isso. Outras foram além e criaram mecanismos de cobrança pelo impacto causado por quem insiste em circular em modos individuais motorizados nas áreas mais centrais, como no caso de Singapura, Estocolmo e Londres.
Sem cobrar pelas externalidades causadas pelos veículos privados, não haverá justiça na distribuição do espaço público de circulação. Esse tipo de cobrança gera pelo menos outros três benefícios. Primeiro, o ganho na fluidez do trânsito proporcionado por uma menor quantidade de veículos transitando. Segundo, a redução tanto na poluição do ar local, que afeta diretamente a saúde das pessoas, como nas emissões globais que alteram o clima do planeta. Terceiro, aumento de receita para melhorar a qualidade do transporte coletivo e diminuir as tarifas.
Muitas cidades evitam o espraiamento planejando a sua expansão a partir da consolidação de eixos de transporte coletivo. Estimulam o crescimento vertical, a oferta de moradia, trabalho e serviços ao longo desses corredores e utilizam mecanismos financeiros para capturar a valorização do uso do solo, canalizando essa arrecadação para investimentos em sistemas sustentáveis de transporte.
Em 2012, por ocasião do projeto SP 2040, que consultou 25 mil paulistanos para construir uma visão estratégica da cidade, emergiram duas importantes demandas: as pessoas queriam viver a, no máximo, 30 minutos do trabalho e até 15 minutos a pé de um parque. A partir dessas preferências é possível redesenhar uma metrópole: quem mora em São Paulo sonha em reduzir a hora e meia ou mais que leva hoje, em média, ao se deslocar ao trabalho, e ter oportunidades de lazer em áreas próximas de casa.
Crescimento vertical é uma das estratégias para evitar o espraiamento urbano (Foto: celeumo/Flickr)
Aumentar a qualidade de vida nos centros urbanos passa por prover mais espaços verdes e aproximar empregos e serviços das residências, consolidando uma metrópole policêntrica. Também demanda requalificar áreas urbanas hoje vazias ou degradadas e reduzir a exclusão social encurtando a distância e o custo da mobilidade entre habitações de baixa renda e centros urbanos. As ruas voltadas para os automóveis precisam ser redesenhadas para a escala das pessoas, favorecendo o comércio e os serviços e proporcionando uma salutar experiência de convivência social na dimensão local.
Difícil ainda predizer qual será o futuro da mobilidade urbana. Recentemente, Daniel Sperling, autor do livro Three Revolutions (ainda sem edição em português), que reflete sobre um cenário de veículos autônomos, elétricos e compartilhados, levantou aspectos relevantes a considerar durante painel na edição de 2019 do Transforming Transportation, evento anual sobre mobilidade sustentável organizado pelo WRI e pelo Banco Mundial. Para ele, não devemos esperar que soluções mirabolantes, como uma rede de túneis subterrâneos para carros, ganhem escala, pois enfrentam muita inércia ao demandarem grandes investimentos e dependerem de múltiplos atores. O mais provável é que as inovações incrementais levem às transformações, incluindo aqui os veículos autônomos.
Sperling ressaltou a importância de interrompermos a espiral da morte do transporte coletivo, que pode assumir escala mundial. Destacou a equidade no acesso como elemento chave a ser considerado em todas as políticas e investimentos relacionados ao espaço urbano e ao transporte. Frente ao crescimento acelerado de soluções inovadoras para a mobilidade, indicou a necessidade de aumentar a capacidade de gestores e operadores do transporte coletivo para lidar com elas.
Ainda há um longo caminho a trilhar para que o planejamento da mobilidade contribua para termos cidades de baixo carbono. Sem um espaço urbano distribuído de maneira mais justa e planejado para dar segurança e estimular a mobilidade sustentável – como a disponibilizada pelo transporte coletivo, a bicicleta e a caminhada –, continuaremos tendo que lidar com mortes no trânsito, ar poluído e desigualdade no acesso às oportunidades. As cidades precisam usufruir do lado positivo da inovação, mas saber gerir e evitar os impactos negativos que prolongam os seus problemas. Chegou a hora de elas assumirem o controle do futuro da mobilidade urbana.