Instrumentos para tirar o DOTS do papel
A forma como uma cidade é planejada impacta diretamente o dia a dia das pessoas que vivem nela. Deslocamentos cotidianos, gastos com transporte, acesso a oportunidades de emprego e lazer – diferentes atividades básicas que fazem parte da vida no ambiente urbano são influenciadas por algo um tanto abstrato, como uma estratégia de planejamento. Se esta, contudo, for uma estratégia eficiente, articulada ao bom uso da infraestrutura urbana e um bom sistema de transporte coletivo, são grandes as chances de que a cidade se desenvolva de forma sustentável, garantindo qualidade de vida a seus habitantes.
O DOTS – Desenvolvimento Orientado ao Transporte Sustentável tem essa finalidade. É uma estratégia de planejamento urbano que alia transportes e uso do solo para chegar ao modelo de cidade 3C: compacta, conectada e coordenada. Esse modelo propicia que mais pessoas morem perto do transporte coletivo, mais empregos estejam próximos a uma estação e que seja mais fácil para qualquer um chegar a um parque, à escola, ao trabalho.
Para que isso seja viável, no entanto, o DOTS precisa estar previsto no Plano Diretor (PD), o que pode ser feito a partir de três princípios:
Crescimento urbano compacto. Medidas para controlar e qualificar o crescimento das cidades, com base em fatores como a quantidade de construções e residentes ao longo dos corredores de transporte coletivo e a distribuição equilibrada de infraestrutura na cidade. É fundamental induzir e consolidar o crescimento da cidade para as áreas onde há infraestrutura disponível.
Infraestrutura conectada. Medidas para aumentar a eficiência no uso das infraestruturas urbanas e reduzir a necessidade de deslocamentos. Isso pode ser feito a partir da mescla de usos em toda a área urbana (bairros que unem comércio, prédios residenciais, serviços e áreas de lazer), da criação de centralidades e de um sistema de transporte capaz de atender as diferentes regiões da cidade.
Gestão coordenada. Medidas para promover a gestão social da valorização da terra. O objetivo é fazer com que parte da valorização imobiliária gerada por obras, investimentos públicos e pela implantação de infraestruturas seja revertida em melhorias à coletividade. Essas medidas garantem também a “função social da propriedade”, premissa definida pelo Estatuto da Cidade e que conta com uma série de instrumentos que podem ser previstos no PD e utilizados pelos gestores públicos com este fim.
Diretrizes previstas nos Planos Diretores têm impacto no dia a dia das pessoas e no desenvolvimento de projetos futuros (Foto: Mariana Gil/WRI Brasil)
Como viabilizar
Muitos instrumentos urbanísticos de regulação do solo possuem também caráter de instrumento de financiamento, seja através da arrecadação de recursos ou da concessão de incentivos ao desenvolvimento urbano. Cidades bem planejadas são mais eficientes no uso dos recursos, reduzindo custos de provisão e aumentando a eficiência na manutenção de serviços urbanos e infraestruturas.
Atualmente, no Brasil, ainda há uma dissociação entre planejamento urbano e financiamento. O Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU), por exemplo, costuma ser cobrado sem uma conexão entre a arrecadação e o planejamento urbano e social da cidade. Em outras palavras: muitas cidades não levam em consideração a relação entre o valor da terra e a presença de infraestrutura na hora de cobrar esse imposto e também ignoram essas questões ao planejar o investimento em infraestrutura e serviços urbanos.
O Plano Diretor deve prever definições como essas, de forma que os instrumentos urbanísticos disponíveis sejam aplicados em prol de um uso eficiente das infraestruturas e do solo urbano. As diretrizes previstas no PD preparam o terreno para o desenvolvimento bem-sucedido de projetos, entre eles os concebidos de acordo com a estratégia DOTS.
Esses projetos DOTS são compostos por diversos elementos que precisam ser financiados e, por sua magnitude, requerem um conjunto de mecanismos de financiamento, que variam de acordo com as especificidades do projeto, o contexto local e os atores envolvidos. Entre esses mecanismos, há três tipos que podem ser viabilizados pelo Plano Diretor, conforme apresentamos a seguir.
1. Alinhamento com o orçamento público
O Plano Diretor pode alinhar estratégias de desenvolvimento urbano da cidade com os instrumentos de planejamento orçamentário municipal. Da mesma forma, as ações do PD devem ser previstas no orçamento anual do município. Os impostos mais indicados são os relacionados às questões urbanas, como o IPTU, e aqueles que incentivam o transporte coletivo e ativo, como o IPVA e a CIDE, além das receitas com multas de trânsito.
2. Gestão e recuperação da valorização imobiliária
O valor da terra é definido pela sua localização – proximidade a oportunidades e serviços, presença de infraestrutura – e, também, de acordo com a possibilidade de exploração/uso dessa área. O Estatuto da Cidade oferece uma série de instrumentos que podem ser previstos no Plano Diretor e utilizados pelos gestores públicos para fazer cumprir a função social da propriedade – ou seja, para evitar a ociosidade e a especulação imobiliária e garantir que a valorização de determinada área seja retornada à população em forma de qualidade de vida.
- Contribuição de melhoria: tributação da valorização da propriedade originada por investimento público no entorno do imóvel.
- Impostos – IPTU e ITBI: exemplos de impostos que capturam a valorização no preço da propriedade, gerada pela qualidade da infraestrutura urbana no local.
- Cobrança por potencial adicional construtivo: valor cobrado pela concessão adicional do direito de construir. A Outorga Onerosa do Direito de Construir (ODDC) e os Certificados de Potencial Adicional de Construção (CEPACs) são duas formas de aplicação desse instrumento.
Em São Paulo, por exemplo, a prefeitura planeja revisar a emissão desse título em duas operações urbanas, a fim de promover um maior adensamento nessas regiões da cidade. Já Fortaleza prevê a isenção da OODC para empreendimentos de habitação social e, nos casos em que é cobrada, os recursos são direcionados para o ordenamento da expansão da cidade, criação de espaços públicos, entre outras ações em prol do ambiente urbano.
- Outorga onerosa de alteração de uso: valor cobrado pela valorização gerada em virtude da alteração de uso do terreno ou do imóvel em questão.
- Consórcio imobiliário: nesse instrumento, os proprietários transferem ao poder público seu imóvel para a construção de infraestrutura, recebendo em troca parcela do terreno urbanizada ou edificada.
3. Incentivos
São um instrumento acessório para viabilizar o DOTS. Não são uma fonte de recursos propriamente dita, mas uma forma de reduzir os custos para o município ou agente implementador do projeto, além de garantir a implementação de projetos privados que tragam benefícios aos espaços públicos. Podem ser utilizados, por exemplo, para transformar os pisos térreos em espaços ativos ou de fruição pública, bem como na cessão de áreas privadas para o uso público, como praças e parques.
O Plano Diretor é capaz de determinar incentivos e benefícios fiscais e financeiros dessa natureza, conforme já previsto pelo Estatuto da Cidade. Em São Paulo, por exemplo, o PD criou incentivos ao uso misto das propriedades ao não considerar como área construída – e, portanto, não incidentes sobre a cobrança do IPTU – a parcela da propriedade com usos não residenciais que ocupam pelo menos 20% do total construído.
- Incentivos e benefícios fiscais e financeiros: concedidos pelos governos locais para promover a implementação das estruturas de acesso a estações de transporte, por exemplo.
- Cessão ou doação de terrenos: doação de terrenos ou cessão de uso de áreas por entes públicos.
- Transferência do direito de construir: permissão aos proprietários de terrenos/imóveis de exercer o direito de construir em determinado local que não o de sua propriedade.