Com formação em Direito e mestrado em Ciências Sociais, Daniely Votto descobriu a sua vocação para trabalhar com pessoas quando atuou na prefeitura de Porto Alegre. Percebeu que governos também são formados por pessoas e são melhores quando estão abertos a ouvir. O aprofundamento em questões relacionadas à participação social permitiu a formação da área de Governança Urbana no WRI Brasil, na qual assumiu a gerência e hoje atua para auxiliar diversas cidades a melhorarem suas relações com a população.

Entusiasta da democracia participativa, para além da representativa, Daniely e sua equipe auxiliam governos com metodologias inovadoras de participação, que permitem o envolvimento dos mais diferentes estratos sociais nas decisões da gestão pública. Nesta entrevista, ela fala um pouco mais sobre esse trabalho e os seus objetivos para o futuro.


Você tem formação em Direito. Quando começou o interesse por aprofundar os estudos na área de participação social e como essa formação te ajuda hoje?

Eu sou formada em Direito pela PUC-RS e sempre gostei de trabalhar com a área social, com pessoas. Isso me levou a vários trabalhos nesse sentido dentro do Direito e em algum momento senti que precisava mudar e comecei a trabalhar com algumas consultorias, com a Unesco, entre outras. Mas principalmente, acho que a questão de como encarar a participação social como algo muito necessário foi no momento que comecei a participar do governo municipal da prefeitura de Porto Alegre. Aí pude ver realmente a relação, a fortaleza e a legitimidade que isso trazia para dentro do governo.


Por que ouvir as pessoas é tão importante para a gestão pública?

Durante muito tempo no Brasil ficamos com a questão de que na democracia representativa bastava votar em alguém. A pessoa era então o teu representante e tu não fazias mais parte da política local, estadual ou federal. Com o tempo houve uma evolução desse conceito. Hoje, quando falamos de democracia representativa, falamos não só das pessoas nas quais a gente vota, mas todo um elenco de atores que existem, como as organizações da sociedade civil, os fóruns de planejamento, o orçamento participativo, que ajudam nessa democracia representativa para que ela seja mais participativa. É importante, pois isso traz maior legitimidade para o governo, faz com que as relações fiquem mais transparentes. Antigamente, era muito fácil os legisladores, junto ao executivo, se organizarem de uma maneira que a gente não soubesse porque as decisões estavam sendo tomadas daquela maneira. Quando se tem a participação social constante e vigilante, a coisa melhora muito, conseguimos ter acesso aos porquês. Isso falta muito na nossa população. 

 

Existem diferentes escalas de participação social, que levam tempo para serem construídas. Como se dá esse processo?

Existe uma escala de participação, um conceito difundido internacionalmente, em que começamos naquela base da informação, que o governo informa o que está fazendo. Isso não é uma participação social, apenas informação. Depois, você parte para outro estágio, que é dividir a informação com a pessoa, embora ela não tenha poder de decisão ali dentro. Não é deliberativo, é apenas consultivo. Só então você passa para colaboração, envolvimento, engajamento e empoderamento, que são as grandes etapas da participação social, em que as pessoas podem realmente dizer sim ou não, por que não querem ou por que deve ser diferente. No empoderamento, as pessoas fazem cogestão com o governo. Tudo é através de um projeto de cocriação, as leis muitas vezes são discutidas através de minutas online, é todo um processo. No Brasil, vemos que estamos muito na fase ainda da colaboração e também de informar e comunicar, não é amplamente difundida a questão da participação.

 

Alguns governantes têm um certo receio de que ouvir a população é atrasar o processo de entrega de uma obra ou de uma nova iniciativa de gestão. Como mudar essa percepção nos governantes?

Muitas vezes, quando vamos conversar com os prefeitos e trazemos para eles a possibilidade de colocar o conceito de participação social dentro dos seus mandatos, eles ficam receosos. Principalmente pela questão tempo, pois eles consideram que a participação social toma muito tempo. O que a gente procura explicar dentro desse conceito de governança é o seguinte: a participação social tem como ter começo, meio e fim, existem métodos e ferramentas que usamos para isso. Que é importante a participação social principalmente para projetos de grande monta ou grande repercussão, pois isso vai criar uma legitimidade ao processo. Vamos conseguir 100% de aprovação ao projeto? Não, nunca vai acontecer, a sociedade é plural, as pessoas têm seus interesses políticos ou pessoais envolvidos ali. Mas o interessante é que quanto mais você ramificar, mais informar, mais trazer a pessoa para entender o porquê daquela decisão, mais fácil vai ser para ela se engajar e fazer parte, dizer que acredita no projeto ou que ele fará bem à cidade. É interessante trazer essa perspectiva para o administrador público, que ele vai ter um ganho não só político, mas também de respeito.

A tecnologia pode ajudar nesse processo? Madri é uma cidade que já experimentou esse formato com sucesso.

A tecnologia ajuda muito a destravar a participação social nas cidades. Mas ela consegue sanar toda a falta de participação presencial? Não. O ideal é que aconteçam as duas, pois os públicos são bem diferentes. Nas pesquisas que temos, a maioria das pessoas que participam online têm entre 25 e 45 anos, classe média ou alta. Os participantes das reuniões presenciais geralmente são um pouco mais velhas e de uma classe educacional, econômica e de renda um pouco mais baixas. Mas a tecnologia pode ajudar muito na participação. Madri fez uma proposta, um dos compromissos da cidade dentro da Rede de Governo Aberto era a criação de um software livre que proporcionasse consultas online. Ele já está em mais de 75 governos subnacionais e, através dessa ferramenta disponibilizada gratuitamente, se pode fazer orçamento participativo, consulta online, minuta de lei online, praticamente todas as ferramentas de participação social que se pode fazer presencialmente, também é possível repetir para um público mais online. Isso garante uma diversificação das pessoas que participam, é bem interessante.


Uma das bandeiras que o WRI tem defendido é a questão de gênero. Conte mais sobre as iniciativas nesse sentido.

Temos algumas iniciativas de gênero no WRI, sempre voltadas aos temas que trabalhamos. Por exemplo, mobilidade urbana, que para nós é um tema muito caro, que trabalhamos há vários anos. Percebemos que não tínhamos muita representatividade de mulheres falando sobre o tema. Apesar de termos um grupo de profissionais dominantemente feminino, nos outros lugares de fala sempre vemos homens falando. No final de 2016, a Câmara de Vereadores de São Paulo resolveu fazer audiências públicas para tratar da mobilidade urbana de São Paulo. Havia 10 pessoas convidados para falar, nove homens e apenas uma mulher, que era de um setor ativista, não era uma economista ou engenheira. E esse é um papel muito delegado à mulher. Houve uma pequena grande revolta, digamos assim, entre os grupos que trabalham mobilidade urbana e gênero. Nós nos juntamos, WRI, ITDP, Sampapé, várias organizações, e montamos um debate com apenas mulheres experts. Tivemos um dia inteiro de capacitação sobre mobilidade urbana e a perspectiva de gênero em que tivemos apenas palestrantes mulheres, com mais de 200 pessoas participando.  Mostramos que a mulher tem muito para expor, não só o ativismo enquanto pessoa que usa o transporte público, que é muito importante, mas também a mulher expert, que tem formação, é  engenheira, arquiteta, que pode e deve se posicionar. Isso gerou uma repercussão bem interessante. Hoje em dia, quando vão fazer um evento sobre mobilidade em São Paulo, sempre nos procuram para saber quem podemos indicar. Para todas nós que fizemos parte desse movimento foi um ganho, algo que a gente se orgulha muito de ter feito parte.


Qual a tua visão de futuro, que tipo de sociedade poderíamos construir a partir de uma participação social melhor do que é feita hoje?

Acho que se a gente conseguisse avançar na questão da participação social como um direito de fato, conseguiríamos ter uma sociedade mais solidária. Porque a participação social também ajuda a enxergar o outro. Não é só tu pedindo pelo teu bairro, pela tua organização. Tu consegues ver a organização que o outro trabalha, consegue ver o outro grupo social e sentir um pouco das dores que o outro sente e compartilhar um pouco dos teus desafios. Se a participação social realmente fosse efetivada no Brasil como um direito e uma obrigação por parte dos governos, acho que teria mais empatia. Isso ajudaria um pouco a sociedade a ser mais solidária. Até por parte dos governos, porque eles são compostos por pessoas. Não tem como tirar o fator humano de dentro dos governos. Quando a gente proporciona essa conversa e conhece o governo, ele deixa de ser governo para ser as pessoas que formam o governo, as relações ficam mais tranquilas e talvez até mais solidárias.