Em São Paulo, 83% dos moradores afirmam estar dispostos a deixar de usar o carro – desde que possam contar com uma boa alternativa de transporte. O desejo pode ser creditado ao declínio da era do automóvel: os carros ocupam a maior parte do espaço viário, transportam menos pessoas, poluem mais e geram congestionamentos que afetam a produtividade e a qualidade de vida. A boa alternativa com que as pessoas gostariam de contar está no transporte coletivo. Uma rede de sistemas integrados, eficientes, confiáveis, capazes de conectar as pessoas a seus destinos com conforto, segurança e agilidade. Como, porém, qualificar o transporte coletivo para atrair novos usuários e levar uma ruptura com o padrão hoje observado na mobilidade de tantas cidades brasileiras?

O assunto foi o tema do seminário “Como Viabilizar um Transporte Coletivo de Qualidade”, organizado pelo WRI Brasil nos dias 5 e 6 de dezembro em São Paulo. Cerca de 50 pessoas, entre técnicos de secretarias de mobilidade e fazenda, procuradores e representantes de tribunais de contas, acadêmicos e estudantes acompanharam a programação, que debateu como estruturar bons contratos para a operação do transporte coletivo, fontes alternativas de financiamento para sistemas e infraestrutura e a correlação entre transporte e forma urbana. O evento contou com o apoio da Frente Nacional de Prefeitos (FNP) e foi viabilizado pela Children’s Investment Fund Foundation (CIFF ) e pela FedEx .

<p>Seminário Transporte Coletivo</p>

Participantes do Seminário durante o painel de Annelise Vendramini, da Fundação Getúlio Vargas (Foto: Victor Moriyama/WRI Brasil)

Os caminhos para o transporte coletivo de qualidade passam, inevitavelmente, pela priorização da mobilidade sustentável. É necessário dedicar espaço exclusivo à circulação dos ônibus, para que se libertem dos congestionamentos, estruturar uma rede integrada, conectando o ônibus a outros modais, e promover um adensamento populacional adequado no entorno dos eixos de transporte. A concentração de amenidades, oportunidades de trabalho, comércio e locais residenciais nas áreas próximas a esses eixos reduz a necessidade de uso do carro e contribui para mais deslocamentos a pé, além de ser um estímulo ao próprio transporte coletivo, que atuará conectando essas centralidades.

A relação entre densidade populacional, transporte, território urbano e valorização da terra é delicada – e, para que tenha eficiência, a cidade precisa saber geri-la. Esse foi o foco do painel da pesquisadora do Lincoln Insitute of Land Policy, Camila Maleronka. “Nem sempre o problema das cidades é a rede de transporte estar aquém da necessidade – muitas vezes, o que temos é uma distribuição disfuncional de densidades”, começou a especialista, explicando que o equilíbrio no adensamento é essencial para a eficiência de uma rede. “Esse desequilíbrio acontece devido a dois fatores e nenhum deles é a falta de planejamento, como se pode pensar. Os motivos são a dinâmica do mercado somada a uma regulação ineficiente do território”, apontou.

<p>Camila Maleronka</p>

Camila Maleronka: cidades precisam de densidades funcionais (Foto: Victor Moriyama/WRI Brasil)

Imaginemos uma cidade que cresce em torno de uma única centralidade, onde estão concentradas as oportunidades de trabalho, serviços urbanos, comércio. Quando alguns podem pagar mais do que outros para viver perto dessa centralidade, e a oferta de transporte não atende de forma adequada às áreas mais distantes, temos o adensamento fora da norma nas piores localizações, aparentemente mais baratas. “Ou seja, o acesso às oportunidades é o fator determinante para os preços em uma cidade. Uma rede de transporte integrada, ampla e eficiente anula as diferenças porque promove o acesso a quem está longe”, afirma Camila.

Uma cidade orientada ao transporte sustentável é uma cidade em equilíbrio. Articular o planejamento de transportes com o do uso do solo é uma maneira de construir áreas urbanas mais compactas, conectadas, onde o uso do carro não se faz necessário para deslocamentos cotidianos. Para que essa seja uma realidade viável, as cidades precisam buscar alternativas de financiamento que viabilizem seus sistemas e autonomia financeira para implementar as mudanças necessárias.

“O transporte coletivo precisa ganhar as eleições”

Brenda Medeiros (Foto: Victor Moriyama/WRI Brasil)

Em junho de 2013, a população brasileira foi às ruas protestar contra o aumento das tarifas e pedir por um transporte coletivo de qualidade – uma reivindicação que, na prática, ainda não foi atendida. De lá para cá, o número de passageiros de ônibus caiu 18%, conforme avaliação da Associação Nacional das Empresas de Transportes Urbanos (NTU) – se considerado o período de 1996 a 2016, a queda é de 40%. “As pessoas têm expectativa de receber um serviço de qualidade pelo que pagam e devem ser o centro do planejamento de uma rede integrada de transporte”, avaliou a diretora de Mobilidade Urbana do WRI Brasil, Brenda Medeiros (à esquerda). A queda na demanda significa aumento do custo para os passageiros que permanecem e diminuição na receita gerada a partir da tarifa cobrada pelas passagens. É um círculo vicioso que implica em desequilíbrio para todo o setor. “A qualidade do transporte coletivo tem impacto direto na atração de novos usuários, na melhora da mobilidade urbana, na inclusão social. Mas, para usufruir desses benefícios, são necessários investimentos”, acrescentou Brenda.

Reestabelecer o equilíbrio entre oferta e demanda é o desafio que as cidades brasileiras precisam enfrentar se quiserem chegar de fato a uma mobilidade urbana mais sustentável. Luiz Afonso dos Santos Senna (à direita), PhD pelo Institute of Transport Studies, da Univerrsity of Leeds (Inglaterra) e professor na área de transportes na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), simplificou a equação: quando a oferta é menor do que a demanda, o resultado são os congestionamentos, quando a oferta é maior do que a demanda, há ociosidade. “Quando ambas estão no mesmo nível, temos o equilíbrio de que a mobilidade precisa para ser saudável e sustentável. Em todos os tipos de sistemas, encontrar o equilíbrio é a principal meta; na mobilidade urbana não é diferente. Precisamos ser gerentes e aprender a gerir nossos sistemas de transporte coletivo com muito mais eficiência do que fizemos até aqui”, afirmou.

No panorama brasileiro, as cidades em geral ainda dependem da arrecadação das tarifas para custear todos os elementos envolvidos na operação de um sistema de transporte: operação, manutenção, frota e estrutura. “Nos melhores casos, as tarifas cobrem operação, manutenção e custos relacionados à frota. Na maior parte, só os dois primeiros”, ponderou Arturo Ardila-Gomez, economista do Banco Mundial. “Ou seja, são necessários subsídios para o transporte coletivo. Entre outros motivos, porque se trata da maneira mais eficiente de garantir às pessoas acesso às oportunidades e construir cidades melhores”.

Hoje, são os carros que recebem mais subsídios, o que deixa o transporte coletivo em desvantagem. Por exemplo: do modo como em geral é feita, a cobrança pelo estacionamento nas vias públicas faz com que quem deixa o carro estacionado ao longo de um dia inteiro pague menos do que aqueles que estacionam apenas por uma hora ou duas. Outro exemplo de subsídio é o imposto pago pelo carro, que diminui conforme o tempo de rodagem do veículo – de forma que temos carros mais poluentes pagando menos para circular. “Em resumo: os carros não pagam pelas externalidades negativas que geram para a mobilidade, para as pessoas, para a qualidade do ar, para o transporte coletivo”, apontou Arturo.

<p>Arturo Ardila-Gomez</p>

Arturo Ardila-Gomez: transporte coletivo precisa de subsídios (Foto: Victor Moriyama/WRI Brasil)

Subsídios como esses, que são implícitos, contribuem para o subfinanciamento do transporte coletivo. E essa é a lógica que precisa ser invertida nas cidades. Segundo Arturo, há um princípio que as cidades devem pôr em prática: “se você se beneficia de determinada infraestrutura, deve ajudar a financiá-la”. Para isso, há fontes de financiamento alternativas:

  • road princing e taxação de congestionamentos
  • impostos sobre combustíveis
  • tributação dos veículos
  • mudanças no modelo de cobrança pelo estacionamento em vias públicas
  • PPPs para vias urbanas

Essas são todas fontes de financiamento mais difíceis de implementar e “impopulares”, que em um primeiro momento podem gerar resistência por parte da população (principalmente motoristas, hoje os mais beneficiados pelo espaço das vias), mas com resultados consideravelmente mais expressivos em termos de eficiência, equidade e impacto ambiental. “O transporte sustentável precisa ganhar as eleições”, enfatizou o especialista, que citou o caso das transformações em Bogotá ao longo das gestões de Peñalosa. “Comprometimento político é fundamental. Precisamos de pessoas comprometidas com a mudança no poder para que seja possível mudar a realidade”.

Em resumo, a qualidade do transporte coletivo não é apenas uma questão de bons contratos. Também não depende só de diversificar o financiamento ou de planejar a cidade orientada ao transporte sustentável. Todos esses elementos precisam estar articulados, complementando uns aos outros. Sistemas concebidos pensando na satisfação das pessoas que os utilizam, planejamento urbano considerando a correlação do transporte coletivo com a dinâmica urbana, projetos bem estruturados e financiáveis, bons contratos, novos modelos de financiamento, baseados em fontes alternativas que não mantenham os sistemas dependentes apenas da receita gerada com as tarifas. Dessa forma, podemos viabilizar um transporte coletivo de qualidade – que, como insistiu Arturo, é a forma mais eficiente de alcançar uma mobilidade sustentável e construir cidades melhores, com mais qualidade de vida para todos.

<p>Público seminário</p>

Cerca de 50 pessoas acompanharam os debates do Seminário (Foto: Victor Moriyama/WRI Brasil)