Zerar mortes no trânsito não precisa ser uma meta apenas de países ricos
As taxas de mortalidade no trânsito de países como Suécia e Holanda (3 e 4 mortes a cada 100 mil habitantes, respectivamente) surpreendem e despertam interesse sobre como foi possível atingi-las. A meta tanto de suecos quanto de holandeses de zerar as mortes no trânsito ainda não foi alcançada, mas as taxas já estão entre as mais baixas do mundo. No Brasil, ao cruzar dados preliminares do Ministério da Saúde para acidentes em 2017 com a população estimada pelo IBGE, a taxa fica em 16,5 a cada 100 mil habitantes. Não por acaso, Suécia e Holanda estão entre os países que adotaram a abordagem de Sistema Seguro, um método sistêmico que integra elementos centrais de gestão e áreas de ação para criar um ambiente de mobilidade seguro.
Sistemas Seguros se baseiam no princípio de que erros humanos irão acontecer, portanto o sistema viário deve fazer com que esses erros não resultem em ferimentos graves ou fatalidades. Essa abordagem traz uma mudança de paradigma ao promover o princípio da responsabilidade compartilhada. Governos são os principais responsáveis por oferecer um sistema de mobilidade seguro e devem trabalhar de forma conjunta com o setor privado e a sociedade civil para reduzir acidentes.
As áreas de ação da abordagem de Sistema Seguro são integradas e compreendem a atuação em diversos aspectos intrínsecos às cidades, como o uso do solo e o planejamento da mobilidade, a gestão dos limites de velocidade, desenho viário, tecnologia de veículos, atendimento de emergências, entre outros.
A publicação Sustentável e Seguro, lançada pelo WRI e pelo Banco Mundial, descreve a abordagem de Sistema Seguro e orienta sobre como criar um sistema desse tipo, especialmente em países de baixa e média renda, como o Brasil.
Oportunidade para países em desenvolvimento
Os impressionantes dados de Suécia e Holanda podem parecer distantes, já que são realidades urbanas características de países ricos. No entanto, se faz urgente a adoção de Sistemas Seguros também em países de baixa e média renda, onde as taxas de vítimas do trânsito são ainda maiores.
A abordagem de Sistema Seguro teve início de forma pioneira na década de 1990, por meio de programas como Visão Zero, na Suécia, e Segurança Sustentável, na Holanda. Ambos países passaram anos testando ações específicas para chegar a respostas capazes de salvar vidas de forma mais rápida e eficaz.
Hoje, as estratégias adotadas em um Sistema Seguro servem também para países de baixa e média renda, já que tratam de desafios fundamentais enfrentados nesses locais, como projeto viário inadequado, falta de planejamento e de infraestrutura para usuários vulneráveis nas vias urbanas e rurais, desigualdade nas mortes no trânsito e espraiamento da expansão urbana. Esses desafios crônicos oferecem uma importante janela de oportunidade para disseminar conhecimentos e medidas baseadas em evidências.
Em Sustentável e Seguro, são destacados três desafios para a adoção de Sistema Seguros em países com esse perfil:
1. Priorizar investimentos
Poucos países contam com um órgão gestor de segurança viária com poderes e recursos financeiros adequados para administrar a implementação de uma abordagem sistêmica de segurança viária. A questão financeira pode parecer uma das principais barreiras na construção de infraestruturas seguras e outras iniciativas que protejam a vida da população no espaço viário. Porém, a publicação destaca que o desafio geralmente não é a disponibilidade de financiamento, mas a forma como os recursos são gastos.
É possível garantir maior proteção às pessoas com pequenas intervenções e mudanças de prioridade nas vias. De acordo com estudo do iRAP, com apenas 1% a 3% dos orçamentos usados para a construção de vias já é possível melhorar as condições de segurança viária. Além da captação de novos recursos, também é possível destinar outros fluxos financeiros para projetos de infraestrutura viária segura.
Fortaleza decidiu utilizar todos os recursos gerados pelo sistema de estacionamento rotativo, a Zona Azul, para as políticas cicloviárias da cidade. A Lei 10.752, em vigor desde julho de 2018, prevê a aplicação de 100% dos recursos na ampliação de ciclofaixas, ciclovias e do programa de bicicletas compartilhadas. A melhoria das opções de mobilidade é uma das áreas de ação de um Sistema Seguro, que também reúne políticas para a redução do uso de veículos motorizados.
Bicicletar é o sistema de bicicletas compartilhadas de Fortaleza (Foto: Mariana Gil/WRI Brasil)
Em março, foi anunciada a instalação de 130 novas estações do sistema de Bicicletas Compartilhadas de Fortaleza (Bicicletar), que atualmente conta com 80 estações. Segundo o prefeito Roberto Cláudio, o fundo da Zona Azul permitirá que Fortaleza amplie o sistema com muito mais rapidez: "Demoramos mais de dois anos e meio para implantar 80, pois dependíamos de recursos do patrocinador. Agora, também com o fundo da Zona Azul, podemos acelerar a implantação".
2. Fortalecer instituições e estruturas de gestão
A carência de instituições fortes ou mecanismos de cooperação intersetorial pode dificultar a implementação da abordagem de Sistema Seguro. Processos verticalmente coordenados em vários níveis de governo podem ajudar a superar essas deficiências ou limites de capacidade.
O México conseguiu reverter a tendência de crescimento de mortes no trânsito entre 2009 e 2012 ao implementar o primeiro esforço continuado em âmbito nacional com essa meta. A Iniciativa Mexicana de Seguridad Vial (IMESEVI) foi um modelo multisetorial, no qual foram somados os esforços de diversos órgãos como a Secretaria Técnica do Conselho Nacional para Prevenção de Acidentes (CONAPRA), a Secretaria de Saúde, governos dos estados, sociedade civil, e apoio técnico da Organização Mundial de Saúde e da Bloomberg Philanthropies.
O esforço ocorreu por seis anos, de 2008 a 2013, e hoje é considerado como fator fundamental para a diminuição de mortes relacionadas ao trânsito no país. A taxa caiu de 17 para 13,8 mortes a cada 100 mil habitantes, apesar do crescimento populacional de 18% e do aumento de quase três vezes da quantidade de veículos em circulação no mesmo período.
3. Reforçar leis, regulamentações e diretrizes
A publicação aponta como um problema comum a muitos países em desenvolvimento a falta de leis e regulamentações de segurança viária adequadas. A mesma dificuldade ocorre a nível estadual e municipal, inclusive em termos da fiscalização das leis existentes.
No Brasil, o Código de Trânsito Brasileiro (CTB), sancionado em 1997, ainda permite a velocidade de 60 km/h em vias arteriais, limite acima do recomendado pela OMS, que indica 50 km/h como velocidade máxima para essas vias. No entanto, a legislação brasileira concede autonomia para as autoridades locais determinarem os limites de velocidade nas vias.
A redução dos limites de velocidade para os automóveis é fundamental para a redução de fatalidades e ferimentos no trânsito (Foto: Mariana Gil/WRI Brasil)
Enquanto o CTB ainda não é alterado, municípios podem adequar suas velocidades para garantir maior segurança à população. Desde 2011, São Paulo vem aos poucos reduzindo os limites de velocidade em suas vias. De janeiro de 2013 até junho de 2015, reduções no limite máximo de velocidade permitido nas vias expressas e arteriais foram realizadas em conjunto com as implantações de faixas exclusivas de ônibus, projetos cicloviários e outras medidas de segurança viária. Cerca de 932 km de vias foram afetados pela redução de velocidade, sendo que em 80% houve uma redução de 60 km/h para 50 km/h e em 10% – especialmente as com volume maior de pedestres – os limites foram reduzidos de 40 km/h para 30 km/h.
Para cada realidade, um jeito de fazer
Para cada desafio destacado pela publicação existem respostas e caminhos para superá-los, como demonstram os exemplos de Fortaleza, São Paulo e México. O bom planejamento pode ajudar a redirecionar investimentos e contornar entraves específicos de cada contexto nacional ou local. Metas ambiciosas, gestão e governança institucional abrangentes, dados, monitoramento e avaliações são fundamentais. A responsabilidade está sobre os governos de agirem para salvar vidas no trânsito em conjunto com a sociedade e não apenas no comportamento das pessoas que utilizam as vias.