Ruas completas na universidade ajudam a pensar e projetar a cidade na escala humana
Ruas são espaços públicos estruturantes das cidades e locais de convergência por excelência. Do encontro das ruas temos os largos, as praças, os parques. Pelas ruas, tudo passa, e da qualidade das ruas dependem as pessoas para acessar oportunidades de emprego, educação, saúde e lazer. Mas basta olhar para as grandes cidades brasileiras para perceber a priorização que se dá aos veículos motorizados em detrimento dos outros modos. Em São Paulo, por exemplo, 41% das calçadas não têm a largura mínima exigida por lei.
Qualificar o espaço público sob uma ótica de baixo carbono, equidade e justiça significa redistribuir o espaço das ruas para os usuários de diferentes modos, para que possam não apenas deslocar-se em segurança, mas permanecer e socializar. O conceito de ruas completas tem se consolidado como caminho para propor uma nova distribuição do espaço viário, que contemple o bem-estar e a mobilidade de todas as pessoas, protegendo as mais vulneráveis e priorizando os modos mais sustentáveis.
Recentemente, as ruas completas também têm adentrado a universidade como ponto de partida para se pensar a cidade na escala humana. Este movimento pode repercutir no corpo técnico das prefeituras e, consequentemente, nas suas ações no espaço público. Além disso, é da natureza dos projetos de ruas completas o envolvimento de atores locais. Entre eles, incluem-se as universidades, que podem se tornar atores importantes de estímulo à ação do poder público e até mesmo subsidiar intervenções-piloto.
Mais ruas completas nas cidades brasileiras tendem a influenciar o comportamento da sociedade de forma mais ampla – e, assim, impulsionar a necessária transformação das cidades brasileiras em ambientes mais acolhedores para a mobilidade e a convivência das pessoas, independentemente do modo de transporte escolhido.
6 motivos para se ensinar o conceito de ruas completas
Em 2021, WRI Brasil realizou uma masterclass para a Rede de Professores Universitários pelas Ruas Completas, um grupo criado em 2018, que reúne mais de 80 professores universitários de diferentes áreas, das cinco regiões do país, identificados com a abordagem de ruas completas. Professores e professoras do grupo replicaram a aula com alunos e alunas de perfis diversos em suas instituições de ensino. A seguir, compartilhamos algumas reflexões sobre a pertinência da abordagem na academia diante dos muitos desafios que as cidades e o mundo enfrentam.
Um convite ao questionamento
Ao chegar à universidade, as pessoas tendem a carregar consigo a concepção de cidade e de uso do solo que conhecem. Na maioria das cidades brasileiras, isso significa projetos pouco inovadores, que buscam maximizar o espaço para veículos motorizados e o número de lotes. Ruas completas estimulam alunos a refletir sobre a prática de intervenção e requalificação urbana pela ótica de usuários diversos e incidir sobre o papel da rua como espaço público.
Por que o espaço junto ao meio-fio reservado para motoristas armazenarem seus carros não pode ser convertido em ciclovia? Por que as pontes só são feitas quando quem precisa delas são os carros? Por que não podemos ter transposições de rios para pedestres e ciclistas? Não seria possível que a rua atendesse às necessidades de diferentes grupos de forma mais equitativa?
Ruas completas estimulam alunos a pensar a cidade pela ótica de usuários diversos (foto: Daniel Hunter/WRI Brasil)
Abordagem que concilia justiça social e descarbonização
Ruas completas são soluções adequadas para grandes desafios de nosso tempo, como a desigualdade e a mudança do clima. Cidades de países em desenvolvimento têm o desafio de frear o aumento dos deslocamentos em veículos individuais motorizados para que mantenhamos ao alcance o limite de 1,5°C do aquecimento global. Ao mesmo tempo em que promovem uma redistribuição mais equitativa do espaço público, ruas completas são uma solução de baixo carbono. A abordagem está alinhada aos esforços por justiça climática, já que permite reduzir desigualdades, em especial no acesso a oportunidades, ao mesmo tempo em que promove os modos de transporte mais sustentáveis e de baixo carbono, como a caminhada, a bicicleta e o transporte coletivo. A contribuição ambiental de intervenções de ruas completas se dá tanto em escala global, frente aos efeitos da mudança do clima, como na escala local, inibindo a formação de ilhas de calor, o desconforto térmico e a geração de resíduos em suspensão.
Conceito flexível para se repensar o espaço urbano
O conceito de ruas completas não é fechado ou uma lista exaustiva dos itens que tornariam uma rua satisfatória. Trata-se, na realidade, de um ponto de partida para se repensar o projeto e o planejamento urbano e de mobilidade predominantes no último século, que priorizam o automóvel individual. Há um objetivo: semear uma mudança dessa cultura a partir de projetos adaptáveis a diferentes contextos e escalas, realizados em diálogo com a comunidade e implementados, muitas vezes, em formato piloto com custo relativamente baixo. Toda rua pode ser uma rua mais completa na medida em que atenda com mais conforto, acessibilidade e segurança às demandas de todos os usuários.
Intervenções condizentes com a realidade das cidades
Quem conclui a graduação em áreas afins ao projeto e planejamento urbano sabe, desde cedo em sua formação, das dificuldades financeiras que enfrentam municípios de todos os tamanhos. Sabe, também, que cidades são ambientes múltiplos, construídos por expectativas e saberes diversos. A abordagem de ruas completas propõe uma narrativa simpática para mudanças que enfrentam resistência, como a necessária redução de limites de velocidade em vias urbanas ou a conversão de faixas de rolamento e estacionamento em infraestrutura para a mobilidade ativa e a permanência. E tem, entre os caminhos possíveis para sua implementação, intervenções de urbanismo tático, que permitem mudanças rápidas e utilizam materiais de menor custo comparados aos utilizados em intervenções permanentes.
Fazer valer a Política Nacional de Mobilidade Urbana
A Política Nacional de Mobilidade Urbana (PNMU) estabelece a prioridade dos modos ativos e coletivo sobre o motorizado individual. Tratar da cidade na escala humana e com parâmetros adequados para o espaço viário contribui para a formação de profissionais habilitados a fazer valer a política, de modo a garantir mobilidade e segurança aos atuais deslocamentos e atrair futuros usuários para a mobilidade sustentável.
Participação social para compreender problemas existentes
O planejamento de uma cidade para as pessoas não pode prescindir do envolvimento delas. É parte da abordagem de ruas completas a realização de pesquisas com a comunidade e a sensibilização de grupos que possam ter resistência a intervenções como a redução do espaço para estacionamento, por exemplo. Em São José dos Campos, comerciantes passaram de opositores de um projeto de rua completa a zeladores do novo mobiliário urbano. A metodologia também envolve pesquisas de percepção com os usuários da rua antes e depois da intervenção, que têm demonstrado, em muitos dos projetos implementados em cidades brasileiras, o aumento na sensação de segurança e conforto.
Metodologia envolve pesquisas de percepção com os usuários da rua (foto: Daniel Hunter/WRI Brasil)
Universidades fomentando a transformação
Adriana Sansão, Carolina Stolf, Fernando César Manosso e Rodrigo Rinaldi são integrantes da Rede de Professores Universitários pelas Ruas Completas. Além da coautoria deste artigo, compartilham os três relatos a seguir, sobre suas experiências replicando a masterclass sobre ruas completas em diferentes contextos.
Fernando César Manosso, geógrafo, professor do curso de Engenharia Ambiental da UFTPR/Francisco Beltrão: “Repliquei a masterclass em uma das oficinas do VI Workshop de Ciência, Tecnologia e Inovação, da Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UFTPR), Câmpus de Francisco Beltrão, que já possui um caráter regional, mas nesta edição remota atingiu um público de diferentes regiões. Além das 50 pessoas que participaram ativamente das discussões na reunião virtual, a aula atingiu um público diverso a partir de sua divulgação em uma rede social. Um vereador de Francisco Beltrão se interessou no conceito e em propor sua aplicação na cidade. Universidade e vereador agora aguardam para conversar com o prefeito e os órgãos de trânsito a fim de identificar um local para um projeto-piloto em parceria com a Universidade.”
Carolina Stolf, professora do curso de Arquitetura e Urbanismo da Udesc: “Repliquei a masterclass em uma aula online aberta ao público durante a Semana da Arquitetura e Urbanismo da Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc), reunindo 94 pessoas entre estudantes, professores e comunidade externa, ampliando posteriormente sua propagação através da gravação e divulgação nas mídias digitais. Tenho inserido o conceito de ruas completas em aula. Os alunos realizam análise da área, entrevistas sobre percepções da população e necessidades para o local. Os projetos são desenvolvidos reestruturando o desenho e a sinalização viária, oferecendo acessibilidade, arborização, mobiliário urbano, iluminação adequada para pedestres e ciclistas e tratamento aos diferentes modos de transporte, priorizando os modos ativos e coletivo: requalificação das calçadas, faixas de pedestres, infraestrutura cicloviária, faixas e abrigos de ônibus. Importante destacar o reflexo na cidade em que a universidade está inserida, uma vez que muitos dos trabalhos acadêmicos em arquitetura e urbanismo são realizados em locais reais.”
Veja mais
Confira os trabalhos aqui.
Adriana Sansão e Rodrigo Rinaldi, professores do curso de Arquitetura e Urbanismo da UFRJ: “Optamos por um curso mesclando diferentes tipos de participantes: estudantes de arquitetura e urbanismo, técnicos de prefeituras, profissionais, ativistas, líderes comunitários, acreditando que esse entrosamento é fundamental para que as soluções se concretizem. Cada grupo de cinco cursistas trabalhou um diferente entorno escolar de forma a repensá-lo na escala da rua, priorizando os modos ativos. O foco foram seis bairros do Rio de Janeiro, priorizando-se os mais desassistidos e carentes de investimentos. O curso também se propôs a abrir um canal de diálogo com a comunidade escolar. Está sendo preparado um material de divulgação para que esse canal seja fortalecido e que possamos trabalhar conjuntamente com as escolas a continuidade das intervenções.”