Como adaptar uma das maiores metrópoles do mundo para que as suas ruas estejam entre as mais seguras? São Paulo acaba de se tornar a primeira cidade brasileira a adotar um Plano de Segurança Viária com base na abordagem de Sistema Seguro. Chamado de Vida Segura, a estratégia reúne ações de curto, médio e longo prazo com o objetivo de reduzir à metade as mortes ocorridas no trânsito da cidade até 2028.

Ao reconhecer que mortes no trânsito não são aceitáveis, a cidade começa a mudar a interpretação mais comum de que, por erros e distrações, as pessoas são culpadas pelos acidentes, e passa a assumir que essa responsabilidade é compartilhada. Historicamente, no Brasil, os governos e a sociedade tratam a segurança viária como tema de responsabilidade exclusiva do indivíduo, seja ele o pedestre, o condutor ou o ciclista. Mas experiências de Sistemas Seguros e Visão Zero pelo mundo comprovam que o número de mortos no trânsito só cai consideravelmente quando o poder público também assume a sua responsabilidade e amplia a atuação.

Para que o sistema de mobilidade ofereça um alto grau de segurança, é necessária uma abordagem sistêmica e abrangente capaz de reduzir as suas falhas. São Paulo está mostrando uma mudança de mentalidade: em vez de investir para que os indivíduos errem menos e sejam obedientes, passará a olhar para todos os aspectos do planejamento da mobilidade. Isso inclui as atitudes dos usuários, mas também a escolha do meio de transporte, os sistemas de segurança ativa e passiva dos veículos, a gestão das velocidades, as características das vias e seu entorno, a resposta pós-acidente, entre outros aspectos.

O WRI Brasil, assim como a Iniciativa Bloomberg para Segurança Global no Trânsito e a Global Road Safety Facility do Banco Mundial, deram apoio técnico à capital paulista na elaboração do plano Vida Segura, que tem como meta global salvar 2.734 vidas até 2028. "O horizonte do Plano Vida Segura é de 10 anos, e sua meta de reduzir o índice de mortes no trânsito para três óbitos por 100 mil habitantes até 2028 colocará São Paulo entre as grandes cidades com trânsito mais seguro do mundo. Além disso, outras metas globais do Plano traduzem a mudança de abordagem ao priorizar ações voltadas às pessoas mais vulneráveis e ao estabelecer o objetivo de reduzir à metade o número de mortes de ciclistas, pedestres e motociclistas", destaca Diogo Lemos, analista de Segurança Viária do WRI Brasil.

<p>Infográfico mostra a abordagem de sistemas seguros</p>

Veja alguns destaques e inovações do documento:

Gestão da segurança viária com base em dados

A governança sobre a segurança viária envolve os três níveis de governo, mas há muitas ações que as cidades podem liderar. Para garantir uma gestão mais eficiente e com base em evidências e análises de qualidade, a captura e o processamento de dados é fundamental.

Nesse sentido, uma das inovações previstas por São Paulo no plano é promover a abertura dos dados de equipamentos de fiscalização. Entre as informações geradas, destacam-se as de volume de tráfego e de velocidades reais praticadas nas vias. Ainda há muitos desafios para interpretar as informações geradas, mas a cidade se compromete a encontrar uma maneira de disponibilizar esse conhecimento em uma plataforma digital e aberta (na qual já estão disponibilizados os dados de acidentes), para que possam ser usados pela sociedade civil e o setor privado.

<p>plataforma dados Vida Segura</p>
Dados de mobilidade estão disponíveis na Plataforma Vida Segura (foto: Reprodução)

Informações mais qualificadas ajudam a cidade a tomar decisões melhores na hora de desenvolver novas soluções para aumentar a segurança do sistema de mobilidade.

Qualificação do desenho de ruas e da sinalização

Ponto fundamental da mudança de paradigma da abordagem de Sistema Seguro, a requalificação e o redesenho das ruas têm alto potencial de salvar vidas ao proteger, principalmente, os usuários mais vulneráveis. São muitas as ações previstas, que incluem a implantação de áreas de trânsito calmo, intervenções viárias em rotas escolares, adequação de ciclos semafóricos, requalificação e ampliação de calçadas e a conectividade e expansão da rede cicloviária.

Nesse eixo, destaca-se a intenção de requalificar de maneira integrada os corredores de transporte da cidade que hoje registram o maior número de mortos e feridos graves no trânsito. Isso significa aprimorar a sinalização para todos os usuários, inclusive com reforço eletrônico, adequar a geometria da via, melhorar ciclos semafóricos e tempos de travessia de pedestres, assim como reforçar a presença de agentes de trânsito e policiais. Esse tipo de intervenção já foi realizado com sucesso na Estrada do M’ Boi Mirim, com redução de 68% na mortalidade em um ano.

 

<p>intervenção na Estrada do M’ Boi Mirim</p>
Estrada do M’ Boi Mirim foi requalificada (foto: Heloisa Ballarini/SECOM/Prefeitura de São Paulo)

Além disso, o documento reúne um extenso diagnóstico de pontos críticos de acidentes graves da capital paulista que sofrerão intervenções pontuais. A meta é modificar 30 desses pontos mais perigosos por ano, melhorando a segurança dos pedestres. Áreas de maior circulação de pessoas vulneráveis, como entorno de escolas e creches, também receberão atenção especial para que a convivência com os motoristas fique mais segura.

Gestão das velocidades e reclassificação de vias

Atualmente, a classificação de ruas na maioria das cidades brasileiras se limita às previstas no Código de Trânsito Brasileiro: locais, coletoras, arteriais e de trânsito rápido. A classificação viária é uma forma de hierarquizar e organizar as vias da cidade. Em São Paulo, é a base utilizada pela CET para definição das condições de circulação e operação do trânsito, bem como da estrutura e padronização da sinalização.

No plano, a prefeitura se compromete a rever a classificação atual de acordo com a abordagem de Sistema Seguro, na qual a fluidez dos veículos fica em segundo plano e ganha relevância a segurança de todos os usuários. Com isso, todas as vias arteriais terão limite máximo de velocidade estabelecido em até 50 km/h, as coletoras em 40 km/h e as locais em 30 km/h. Muitas vias que não têm infraestrutura condizente terão sua classificação mudada, deixando de serem classificadas como de trânsito rápido para se tornarem arteriais. Tais medidas atendem, em grande parte, à recomendação da Organização Mundial da Saúde de limitar as velocidades máximas em 50 km/h dentro do perímetro urbano.

<p>Intervenção em Santana, na Zona Norte</p>
Intervenção em Santana, na Zona Norte (foto: Joana Oliveira/WRI Brasil)

Vale destacar a meta da prefeitura de implantar Áreas Calmas em lugares com grande circulação de pedestres, principalmente centralidades de bairro, limitando a velocidade máxima a 30 km/h e promovendo transformações na infraestrutura das ruas. De acordo com a prefeitura, projetos desse tipo em São Miguel Paulista (Zona Leste) e Santana (Zona Norte) serão licitados em breve.

Comunicação, educação e capacitação

Ao adotar uma mudança de abordagem tão importante, as autoridades precisam comunicar essa transformação para a população da cidade. Campanhas contínuas e de larga escala ajudam a consolidar o comprometimento da cidade com a segurança viária. Dentro da perspectiva de Sistema Seguro, adotada por São Paulo, a cidade passa a assumir a responsabilidade de proteger os cidadãos e projetar o sistema viário para reduzir mortes e lesões graves no trânsito, em vez de responsabilizar as pessoas que usam as vias e investir apenas em fiscalização e educação, como se faz normalmente.

Como medida de curto prazo, será lançada uma campanha publicitária abrangente com foco na conscientização de motoristas para que não misturem álcool e direção, um dos cinco mais importantes fatores de risco à segurança viária, já que o trânsito é a segunda principal causa de mortes de jovens de 15 a 29 anos na cidade. Chamada Nunca Beba e Dirija, a campanha vai ser veiculada em diversas plataformas e tem como público-alvo homens entre 18 e 39 anos, que são os que mais consomem álcool antes de conduzir. Essa ação terá abordagem sistêmica, pois será acompanhada de reforço na fiscalização policial sobre beber e dirigir, intensificando as operações nas ruas em lugares estratégicos e com novos equipamentos que permitem realizar não mais apenas um, mas seis testes por minuto.

<p>blitz em são paulo</p>
Blitz vão acompanhar outras medidas (foto: Joseph Marcus/IACP)

Iniciativas de educação não são resumem à população. Nesse eixo, também está prevista a capacitação de técnicos da Prefeitura para desenvolver suas atividades de acordo com a abordagem de Sistemas Seguros. Um dos temas a serem trabalhados são as auditorias de segurança viária, capacidade ainda ausente na maior parte das cidades brasileiras. As auditorias buscam identificar problemas de segurança em projetos ou vias em operação e gerar recomendações de ações para mitigar os riscos e melhorar a segurança nestes locais. Tal objetivo também demonstra uma mudança de abordagem, que normalmente iria na direção de educar os usuários da via e depois fiscalizar. Ao realizar auditorias técnicas, o poder público se mostra disposto a adaptar os projetos e a infraestrutura existente, reduzindo os riscos para todos os usuários com base em avaliações técnicas.

Esforço contínuo para resultados consistentes

Zerar as mortes no trânsito não precisa ser uma meta apenas de países ricos. Para que São Paulo tenha o índice de mortalidade no trânsito que deseja em 10 anos, de 3 mortes a cada 100 mil habitantes, similar ao de cidades da Suécia e da Holanda que adotaram a abordagem de Sistema Seguro há décadas, será necessário um esforço contínuo. A cidade acaba de dar um grande passo nesse sentido. O plano Vida Segura é uma política pública permanente que contempla o calendário eleitoral e permite que cada novo gestor possa definir suas prioridades dentro das premissas estabelecidas. Se for executado com sucesso, a cidade tem tudo para assumir um lugar entre as mais seguras do mundo.