Mais de 750 milhões de pessoas passaram fome no último ano. Ainda assim, uma parcela cada vez maior das culturas cultivadas no mundo tem sido usada para outros fins que não a alimentação direta das pessoas.

Uma análise recente mostrou que apenas 37% da área utilizada no cultivo das principais culturas é destinada para alimentação e consumo diretos – ou seja, culturas utilizadas em alimentos produzidos e consumidos domesticamente. Essas culturas são fundamentais para garantir a segurança alimentar em países em desenvolvimento onde a agricultura de pequena escala é uma das principais fontes de alimentos para as pessoas. O restante é destinado à exportação, processamento, uso industrial e outros usos. (Saiba mais sobre como definimos alimentação direta, exportação e outros termos – e como eles estão relacionados à insegurança alimentar – no quadro de texto abaixo.)

Embora tanto as áreas de cultivo quanto o rendimento das colheitas estejam aumentando, a parcela utilizada para alimentação direta tem ficado para trás. Esse cenário é especialmente problemático para os 50 países que devem passar a enfrentar insegurança alimentar até 2030 se as tendências atuais forem mantidas.

O sistema agrícola global vai precisar de uma correção de rota se quisermos alimentar uma população crescente e, ao mesmo tempo, combater o desmatamento e as mudanças climáticas.

A seguir, estão quatro tendências importantes sobre os rendimentos e usos das culturas que podem embasar um sistema alimentar mais sustentável:

1) As culturas mais populares possuem usos diversos e concorrentes

As áreas de cultivo ocupam 1,2 bilhão de hectares, aproximadamente 12% da superfície terrestre, e aumentaram 10% ao longo dos últimos 20 anos. A expansão contínua das áreas de cultivo em geral se dá às custas de florestas ricas em carbono e outros ecossistemas naturais. Ao mesmo tempo, são necessárias mais culturas alimentares para alimentar uma população em crescimento, e as projeções indicam que os rendimentos agrícolas não serão capazes de acompanhar esse ritmo, resultando em uma competição pelas formas como usamos (ou não usamos) a terra.

A competição não é apenas em relação ao uso da terra: entre as áreas de cultivo, também há competição entre as diferentes culturas que ocuparão o espaço.

Apenas 10 tipos de culturas fornecem 83% das calorias dos alimentos colhidos e representam 63% das áreas de cultivo globais: milho (grão), trigo, arroz, soja, óleo de palma, cana-de-açúcar, cevada, sorgo, colza e mandioca. No entanto, apenas 37% dessas culturas (por área) são destinadas à alimentação direta.

Além da alimentação direta, as culturas também são usadas para alimentação de animais, na produção de biocombustíveis, na indústria têxtil e farmacêutica, no processamento de produtos como sabão e bebidas alcóolicas, na produção de sementes ou para exportação. (Embora algumas das culturas exportadas possivelmente sejam utilizadas para alimentação direta, os dados não acompanham o uso para além das fronteiras.)

E entre todas as safras também há perdas consideráveis – com o desperdício que acontece em todas as etapas da cadeia, da plantação até a mesa das pessoas, como durante o armazenamento e o transporte.

Uso da colheita Descrição Exemplo
Alimentação direta Parcela de safra disponível para consumo humano, não considerada na contagem de outras categorias de alimentação Nessa categoria, “milho” inclui milho, fubá e quaisquer outros produtos derivados, como cereais de milho
Ração animal Parcela de safra fornecida ao gado (inclui produção nacional e importada) Mandioca seca ou farelo de soja; não inclui subprodutos como farelo e bagaços
Exportação Parcela de safra que sai do país Todas as culturas exportadas, incluindo as processadas em alimentos e produtos alimentares
Processamento Culturas usadas na fabricação de commodities processadas que não podem ser revertidas a seu estado inicial ou que fazem parte de um grupo alimentar separado Açúcares, gorduras e óleos, bebidas alcoólicas
Uso industrial ou outros usos Safra usada na fabricação de produtos não-alimentares Óleo utilizado para fabricar sabonetes, biocombustíveis, produtos têxtis e itens farmacêuticos
Produção de sementes Culturas utilizadas para fins reprodutivos Sementes, cana-de-açúcar plantada
Perdas Parcela de safra perdida com o desperdício em todas as etapas, desde o início da produção até a destinação final do produto Armazenamento, transporte e varejo; não inclui perdas em campo ou resíduos domiciliares

 

Em 2020 nos Estados Unidos, por exemplo, 35% do milho foi cultivado para alimentação animal, 31% para a produção de biocombustíveis e menos de 2% para o consumo humano. Se você dirige pelas estradas do estado americano de Iowa e passa por quilômetros e quilômetros de plantações de milho, quase nada dessa produção acaba em seu prato.

Como definimos o uso das culturas para alimentação direta?

Essa análise utiliza a definição dos dados de balanço alimentar da FAO, que considera “alimentação direta” a quantidade de uma commodity (cultura) disponível para consumo humano em um ano calendário e que não se encaixa em nenhuma outra categoria de uso. Nessa definição, culturas exportadas ficam em uma categoria separada. Embora saibamos que uma parte das culturas exportadas seja usada para alimentação direta, o estudo não acompanha o uso das culturas depois da exportação – mas esse é um tópico para pesquisas futuras.

Além disso, uma parcela das culturas nas categorias de “ração animal” e “processamento” também retornam, indiretamente, como alimentos – por exemplo, quando a ração animal é usada para alimentar animais criados para a produção de carne, laticínios, ovos e peixes.

A alimentação direta como métrica pode ser útil para avaliar o potencial de autossuficiência de cada país na produção de alimentos e é um quesito especialmente importante para nações e regiões que enfrentam insegurança alimentar. Neste artigo, culturas para alimentação direta se referem às culturas categorizadas como “alimentação direta”.

Se todas as culturas cultivadas no mundo fossem usadas para alimentação, poderiam suprir as calorias diárias necessárias para toda a humanidade. No entanto, devido à competição pelo uso das culturas – e à demanda cada vez maior pelas culturas não-alimentares –, isso não acontece. A análise estima que haverá um déficit global de cerca de 994 trilhões de calorias por ano até 2030 – 30% abaixo do necessário para alimentar o mundo.1

2) A parcela de áreas de cultivo usada para cultivar alimentos para as pessoas está diminuindo

Embora as áreas de cultivo estejam aumentando no mundo em termos absolutos, a proporção dessa terra usada para culturas destinadas à alimentação direta tem diminuído – e pode continuar a cair ainda mais, à medida que as áreas de cultivo aumentam.

Nos anos 1960, a área destinada ao cultivo de culturas para alimentação direta e para outros usos era aproximadamente a mesma (respectivamente, 297 milhões de hectares e 289 milhões de hectares). A área para o cultivo de culturas para alimentação direta permanece a mesma desde então, enquanto a parcela de terra utilizada para culturas destinadas a outros usos aumentou 77%, chegando a 512 milhões de hectares. Os maiores aumentos foram nas categorias de exportação (87 milhões de hectares adicionais), processamento (81 milhões de hectares adicionais), uso industrial/outros (35 milhões de hectares adicionais) e ração animal (25 milhões de hectares adicionais). A categoria uso industrial e outros usos foi a que registrou o maior aumento proporcional, de quase 500% entre 1960 e os dias de hoje.

gráfico mostra como a parcela global de áreas de cultivo à alimentação direta vem reduzindo

Se mantidas as tendências atuais, as culturas não-alimentares representarão mais 70% dos hectares de cultivo até 2030, com as áreas destinadas à exportação, processamento e uso industrial chegando a respectivamente 23%, 17% e 8% do total de hectares cultivados. As culturas destinadas à alimentação direta cairão para aproximadamente 29% da área total.

Esses padrões são reforçados pela demanda crescente por carne, laticínios e outros alimentos processados em países com uma classe média em ascensão, junto a políticas de incentivo aos usos não alimentares, como na produção de biocombustíveis.

3) Os rendimentos das culturas alimentares não acompanham o ritmo das demais

As culturas cultivadas para processamento e uso industrial têm rendimentos mais altos e apresentaram ganhos de rendimento mais rápidos nos últimos 50 anos em comparação às culturas cultivadas para alimentação direta. Estima-se que os rendimentos totais para as dez principais culturas cresçam 22,7% (ou 2,84 milhões de kcal/ha) até 2030 (a partir de 2010). No entanto, se mantidas as tendências atuais, os rendimentos das culturas para alimentação direta representarão menos da metade dos rendimentos das culturas para uso industrial e outros usos.

Os rendimentos pouco expressivos das culturas para alimentação direta se devem, em parte, a políticas agrícolas e incentivos econômicos que priorizam outros usos. Na América do Norte e na Europa, o campo de pesquisa e desenvolvimento costuma focar de forma desproporcional no cultivo de culturas não destinadas para alimentação direta (como milho e soja, frequentemente utilizados na produção de biocombustíveis e ração animal), em vez de culturas mais usadas como alimentos, como trigo, cevada e mandioca.

Uma vez que os investimentos agrícolas em novas cepas genéticas ou tecnologias beneficiam as culturas usadas na produção de ração animal e processamento, os rendimentos das culturas destinadas à alimentação direta não aumentam na mesma proporção. Essa realidade afeta principalmente países que já enfrentam insegurança alimentar, que dependem das colheitas domésticas de culturas destinadas à alimentação para alimentar populações que, conforme indicam as projeções, ainda devem crescer.

Além disso, algumas nações possuem regulamentações para biocombustíveis que impulsionam a expansão da produção de milho, soja, colza, óleo de palma e cana-de-açúcar em vez de alimentos. Por exemplo, novas políticas da União Europeia de incentivo à bioenergia podem levar à conversão de ainda mais áreas fora da UE, com custos consideráveis em termos de carbono e prejuízos para a natureza.

4) O uso das culturas varia de região para região e afeta a segurança alimentar dos países

O uso das culturas varia de lugar para lugar. Os impactos na segurança alimentar também, dependendo de uma série de fatores que incluem tipos de dieta, crescimento populacional e expansão agrícola.

Muitas culturas não utilizadas para alimentação direta são cultivadas em países ricos ou exportadas para esses locais para usos industriais ou para complementar dietas tipicamente ocidentais (na produção de alimentos processados ou como ração para a produção de carne e laticínios) e seus rendimentos são relativamente altos. Os Estados Unidos, por exemplo, possuem amplas extensões de terras agrícolas, e muitas vezes o país é considerado uma “cesta de alimentos”. Hoje, porém, seria mais como uma “cesta de ração”, uma vez que grande parte das áreas de cultivo é dedicada à alimentação animal e ao processamento.

Em contraste, muitas nações em desenvolvimento cultivam mais culturas usadas para a alimentação direta, mas convivem com a insegurança alimentar devido ao crescimento mais rápido da população e à lenta expansão e baixo rendimento das culturas de alimentação direta. Por exemplo, os países da África Subsaariana possivelmente não conseguirão eliminar a desnutrição até 2030 mesmo que todas as calorias colhidas sejam usadas diretamente como alimento devido ao crescimento populacional projetado para a região, associado aos rendimentos relativamente baixos.

E esse é apenas um exemplo. Em 2030, muitos outros países não conseguirão preencher a lacuna entre as calorias necessárias para alimentar suas populações e a quantidade de calorias cultivada para alimentação direta. Fazer isso de uma forma que evite a conversão de ecossistemas naturais e o aumento das emissões é um desafio ainda maior.

Um bom exemplo do que está em jogo é o caso do Brasil. Desde a década de 1960, a produção agrícola no país mudou de forma significativa – de culturas cultivadas majoritariamente para alimentação direta para o uso em processamento. Ainda assim, o país continua capaz de alimentar sua população de forma adequada devido às amplas expansões das áreas agrícolas, junto a investimentos em pesquisa e desenvolvimento em agricultura, além de melhorias em logística, linhas de crédito e mercados abertos. Mas essa expansão veio com um custo alto: a Amazônia Brasileira e o Cerrado, dois dos mais importantes ecossistemas do mundo para a preservação da biodiversidade e o combate às mudanças climáticas, estão ameaçados pelo desmatamento e pela conversão, em parte, devido à expansão das áreas de cultivo de culturas como a soja.

Como alimentar mais pessoas com menos áreas de cultivo

Se quisermos garantir a segurança alimentar e, ao mesmo tempo, conter as mudanças climáticas, recomendamos a seguintes ações:

  • Priorizar alimentos para as pessoas: formuladores de políticas devem priorizar o cultivo de alimentos para as pessoas nos planos, programas e subsídios nacionais de agricultura. Essas medidas podem incluir a flexibilização das normas de biocombustíveis, a fim de que os agricultores recebam o sinal do mercado para cultivar culturas usadas na alimentação humana, e não na produção de combustíveis veiculares. A União Europeia, por exemplo, usa 1 hectare de terra cultivada no exterior para cada 4 hectares cultivados internamente. As normas de biocombustíveis tornarão esse problema ainda mais grave.
  • Reduzir a demanda de culturas não-alimentares: países ricos podem reduzir a demanda de culturas não-alimentares para usos como a produção de biocombustíveis (como mencionado no item anterior) e ração animal. Mudar dietas ricas em carne e laticínios para incluir mais vegetais pode reduzir a demanda por terras agrícolas de dezenas a centenas de milhões de hectares em todo o mundo, contribuindo para evitar o aumento do desmatamento e liberando áreas para a restauração de ecossistemas. Investir no desenvolvimento de substitutos para a carne, promover o consumo de alimentos baseados em plantas e pratos ricos em vegetais e alterar políticas alimentares e padrões de compras públicas também podem incentivar dietas que usem menos áreas de cultivo.
  • Amenizar o desperdício e a perda alimentar: mais de 500 milhões de hectares de áreas de cultivo produzem culturas ou (indiretamente) carne e laticínios que acabam perdidos ou desperdiçados no percurso dos alimentos entre a fazenda e a mesa das pessoas. Governos e empresas devem adotar metas de redução do desperdício alimentar alinhadas com o Objetivo de Desenvolvimento Sustentável 12.3 da ONU, que visa reduzir o desperdício alimentar pela metade até 2030, fortalecendo ações em todos os países e em todas as etapas das cadeias de valor do setor de alimentos.
  • Aumentar a autossuficiência interna: identificar lacunas nos rendimentos e aumentar a assistência ao desenvolvimento agrícola – bem como o orçamento para pesquisas no setor – em países em desenvolvimento, a fim de impulsionar a produtividade e a resiliência de culturas pouco pesquisadas (como sorgo, painço, batatas, mandioca e feijão) é importante para assegurar a segurança alimentar e autossuficiência dos países. Avanços nas tecnologias de melhoramento de culturas, bem como nas práticas de gestão do solo e da água, como a agrossilvicultura, podem ajudar a aumentar a produção local de alimentos de forma sustentável e reduzir a dependência de importações.

Alimentar de forma sustentável uma população que deve atingir a marca dos 10 bilhões até 2050 é uma das questões existenciais mais importantes que a humanidade enfrenta hoje. Países ricos, líderes políticos e outros tomadores de decisão precisam se comprometer com soluções para proteger, produzir, reduzir e restaurar, a fim de fornecer uma alimentação nutritiva e adequada à população mundial – principalmente para os mais afetados pela insegurança alimentar.

 


1 Baseado na necessidade média diária de energia dos 86 países que abrigam populações subnutridas. Quinze cenários diferentes simulando a população subnutrida em 2030 mostram que os déficits calóricos globais podem variar de 880,7 a 1.755,6 trilhões de kcal por ano. Essa variação vai de 587,2 a 1.269,3 trilhões de kcal por ano quando considerado o mínimo necessário em vez da média de calorias diárias necessárias.


Este artigo foi publicado originalmente no Insights