A floresta nublada Bosque de Niebla, nos Altos Andes da Colômbia, é uma área crítica para a biodiversidade, habitat de centenas de espécies de plantas e animais, como o papagaio-de-orelha-amarela, o urso-de-óculos e a águia-de-crista. A região abriga dezenas de espécies que não existem em outras partes do mundo e atua como um valioso corredor de vida selvagem conectando diferentes habitats. A floresta fornece ainda serviços ecossistêmicos essenciais para comunidades do entorno, como o abastecimento de água para seis aquedutos locais e o armazenamento de enormes quantidades de carbono.

No entanto, apesar de sua importância, desde a década de 1980 grande parte da floresta foi derrubada para abrir espaço a pastagens. A saúde da floresta hoje está degradada, colocando pelo menos 20 espécies em risco e ameaçando comunidades próximas que dependem dela para obter água potável e outros benefícios. Mas há um esforço em andamento para proteger o que resta da floresta.

Em 2020, ClimateTrade e Terrasos, duas empresas especialistas em investimentos baseados no clima e em ecossistemas, lançaram um projeto para conservar 340 hectares do Bosque de Niebla vendendo “créditos de biodiversidade” para empresas privadas. Para cada crédito adquirido a um custo de cerca de US$ 35 (preço em 26 de fevereiro de 2024), a iniciativa trabalha com proprietários de terras locais para conservar ou restaurar uma área de dez metros quadrados por 30 anos.

Esse tipo de arranjo é um exemplo de um nicho ainda emergente, mas que vem crescendo. Os créditos de biodiversidade têm despertado interesse em todo mundo nos últimos anos, em meio a uma onda de esforços para ampliar o financiamento para a natureza.

Criando um mercado para a biodiversidade

A biodiversidade continua subfinanciada, com pesquisas recentes indicando uma lacuna de mais de US$ 700 bilhões entre o financiamento anual atual e o que seria necessário até 2030 para manter a integridade dos ecossistemas. Para enfrentar essa falta de recursos, 196 países estabeleceram o Marco Global de Biodiversidade de Kunming-Montreal em 2022, comprometendo-se a interromper e reverter a perda de biodiversidade até 2030. Os países concordaram em redirecionar US$ 500 bilhões em subsídios prejudiciais para a biodiversidade e mobilizar outros US$ 200 bilhões adicionais por ano para a conservação e restauração.

Até o momento, os governos contribuíram com a maior parte – 83% – do financiamento global para a natureza. No entanto, orçamentos apertados e outras prioridades nacionais indicam que os recursos públicos provavelmente não serão suficientes para preencher a lacuna restante.

É por isso que a sociedade civil, junto a governos, instituições filantrópicas e até mesmo algumas empresas cada vez mais conclamam o setor privado a assumir uma maior participação no financiamento de projetos positivos para a natureza. Existem, também, incentivos econômicos e pressão pública que conduzem a essa direção. De um lado, as empresas se veem diante de uma expectativa cada vez maior para que divulguem informações sobre seus riscos e danos relacionados à natureza. Financiar esforços de proteção e restauração também pode ajudar as empresas a gerenciar os riscos relacionados aos ecossistemas em suas próprias operações, como transtornos na cadeia produtiva, danos causados a florestas e plantações, conformidade com políticas relacionadas à natureza e outros aspectos.

Algumas organizações e governos veem os créditos de biodiversidade e outras iniciativas de mercado como uma solução promissora para ampliar o financiamento privado para a natureza. Outros consideram uma alternativa arriscada. A preocupação é de que essas ferramentas podem ser uma distração da necessidade de engajar atores relevantes, como os governos, para gerar uma mobilização efetiva de financiamento para a biodiversidade.

À medida que esse mercado se desenvolve, entenda o que precisamos saber a respeito.

Gado pastando em uma área próxima à cidade de Salento, no entorno da floresta nublada Bosque de Niebla, na Colômbia
Gado pastando em uma área próxima à cidade de Salento, no entorno da floresta nublada Bosque de Niebla, na Colômbia. Grande parte da floresta foi desmatada para dar espaço a pastagens nas últimas décadas, mas um novo programa de créditos de biodiversidade visa proteger a área e a vida selvagem local (Foto: RAWFILE REDUX 2/iStock)

O que são créditos de biodiversidade e como eles funcionam?

Os créditos de biodiversidade são um instrumento econômico que permite que empresas privadas financiem atividades que gerem ganhos para a biodiversidade, como conservação ou restauração florestal.

Funciona assim: organizações sem fins lucrativos, governos, proprietários de terras ou empresas que tenham como meta prioritária conservar ou restaurar a natureza geram uma oferta de créditos ou “certificados”. Um crédito pode ser equivalente a uma determinada área de terra conservada ou restaurada durante um período específico de tempo. O projeto da Terrasos, na Colômbia, por exemplo, estabeleceu o valor de um crédito de biodiversidade em dez metros quadrados de terra conservada ou restaurada ao longo de 30 anos.

A partir disso, empresas privadas podem adquirir esses créditos para cumprir suas próprias metas de biodiversidade, de forma semelhante ao que acontece com a compra de créditos de carbono para as metas de redução de emissões. No entanto, existe uma diferença importante. Créditos de biodiversidade visam a um impacto líquido positivo na natureza e na biodiversidade, enquanto compensações de biodiversidade – uma ferramenta diferente, baseada no mercado – têm o objetivo de compensar os impactos negativos e inevitáveis das empresas na natureza.

Considere, por exemplo, a Tondwa Game Management Area, na Zâmbia. A reserva de caça está situada em uma Área Crítica para a Biodiversidade, na qual, devido à falta de financiamento governamental e fiscalização, as populações de vida selvagem entraram em declínio. Essa área, em breve, vai sediar um dos maiores projetos de créditos de biodiversidade do mundo. A comunidade local e a organização não-governamental Conserve Global ganharam direitos de gestão de biodiversidade e, junto à entidade desenvolvedora do projeto, ValueNature, trabalharão para fornecer créditos aos compradores do setor privado. No caso desse projeto, um crédito de biodiversidade – ou o que foi chamado de “Certificado de Investimento na Natureza” – equivale a um acordo de dez anos para conservar ou restaurar um hectare de terra dentro da reserva de Tondwa.

A maioria dos projetos de créditos de biodiversidade, como o de Tondwa, ainda estão engatinhando. Para garantir que cumpram suas promessas, atividades de mercado eventualmente terão de ser administradas por organizações externas que possam verificar a credibilidade e integridade dos créditos. Essas organizações podem estabelecer padrões de desempenho para os projetos bem como indicadores para o monitoramento e medição dos resultados, além de garantias para proteger os direitos das comunidades locais.

Como os créditos de biodiversidade podem ser usados nos compromissos corporativos?

Mecanismos de mercado de biodiversidade em geral são estruturados conforme a “hierarquia de mitigação”. Essa hierarquia estabelece que as empresas devem: 1) evitar ao máximo gerar impactos ambientais negativos; 2) reduzir os danos de impactos ambientais que não podem ser evitados; e 3) apenas quando esgotadas todas as tentativas para seguir os dois primeiros passos buscar outras ferramentas, como créditos de mercado, para compensar seus impactos ou gerar ganhos líquidos.

 

Por que alguns consideram os créditos de biodiversidade como um risco?

À medida que o interesse nos créditos de biodiversidade aumenta, muitos têm olhado para o mercado de créditos de carbono em busca de comparações e aprendizados. Os dois estão intimamente relacionados: nos dois casos, o alvo são empresas focadas na sustentabilidade, que representam os principais compradores dos créditos. Em alguns casos, os dois mercados até se sobrepõem: embora os créditos de carbono se destinem principalmente a reduzir ou compensar as emissões de CO2, em vez de proteger a biodiversidade, cada vez mais acabam utilizando soluções baseadas na natureza para atingir esse objetivo – por exemplo, aproveitando o poder dos ecossistemas saudáveis para remover e armazenar carbono. Alguns projetos também utilizam os impactos positivos para a biodiversidade resultantes para criar créditos de carbono com um valor mais alto.

Considerando essas interseções, os mercados de biodiversidade tendem a enfrentar muitos dos mesmos desafios dos mercados de carbono. As empresas estão começando a ver sua participação nos mercados de carbono como um motivo fácil para acusações de greenwashing, devido à crescente preocupação em relação à integridade dos créditos de carbono em projetos de soluções baseadas na natureza. Os desenvolvedores de projetos têm lutado para manter a transparência e utilizar mecanismos de monitoramento eficazes, a fim de garantir reduções de emissões e, ao mesmo tempo, administrar a complexidade e os custos dos projetos. Outras partes também argumentam que os projetos de compensação de carbono relacionados à natureza muitas vezes não consideram de forma adequada os direitos dos povos indígenas e das comunidades locais, em cujas terras muitos desses projetos são implementados. Estabelecer mecanismos eficazes de monitoramento, divulgação e verificação, garantir credibilidade e proteger e fortalecer os direitos e meios de subsistência das comunidades locais estão entre os principais desafios para os mercados de créditos de biodiversidade.

Os mercados de créditos de biodiversidade apresentam ainda uma complexidade adicional em comparação aos mercados de carbono: no primeiro caso, não existe um equivalente à premissa de “uma tonelada é uma tonelada”, válida para o mercado de créditos de carbono. Enquanto uma tonelada de carbono é a mesma em todos os lugares, a biodiversidade, por sua vez, é diversa e carece de uma “moeda comum” que possa ser calculada, monitorada e negociada de forma consistente. Diferentes desenvolvedores de projetos já adotaram diferentes abordagens. Por exemplo, a ValueNature define um crédito como um hectare de terra administrado por pelo menos dez anos, enquanto o Wallacea Trust, no Reino Unido, estabelece linhas de base e metas únicas para cada habitat específico, calculando uma “unidade de biodiversidade” como um aumento de 1% em relação à mediana. A complexidade inerente desses mercados reforça a necessidade de transparência e responsabilização, boa governança e garantias sociais à medida que o mercado continua se desenvolvendo.

Ao mesmo tempo, é possível pensar em métricas mais padronizadas. “Uma tonelada é uma tonelada” talvez seja mais um lema do que uma prática de fato. A maioria dos projetos de créditos de carbono não mede diretamente os átomos de carbono – consideram, em vez disso, medições indiretas e médias, modelos e indicadores industriais. No caso do mercado de créditos de biodiversidade, embora tecnicamente possa não existir um equivalente para uma tonelada de carbono, a terra é amplamente considerada uma mercadoria e um ativo. Logo, as áreas naturais e as mudanças de uso do solo mais associadas às perdas de biodiversidade (como o desmatamento) podem ser diretamente monitoradas por meio de tecnologias de sensoriamento remoto. A criação de uma moeda comum (ou moedas) para a biodiversidade ou a natureza pode estar mais perto do que parece.

Um morador local pesca na Reserva Natural Pacaya-Samiria, na floresta amazônica do Peru
Um morador local pesca na Reserva Natural Pacaya-Samiria, na floresta amazônica do Peru. Os créditos de biodiversidade e outros programas baseados na natureza precisam envolver e beneficiar as populações locais e indígenas que vivem e dependem desses ecossistemas (Foto: Patricia Marinelli/iStock)

O futuro dos mercados de créditos de biodiversidade

Ainda não está claro como os créditos de biodiversidade podem (ou devem) desempenhar um papel para cumprirmos as metas globais de financiamento para a biodiversidade. Até agora, a demanda parece restrita. Embora metade das empresas na Fortune 500 reconheçam a perda de biodiversidade em seus relatórios de sustentabilidade, apenas 5% estabeleceram metas quantificadas a respeito. De acordo com o Fórum Econômico Mundial, mesmo com o avanço e uma governança eficaz desses mercados, a procura poderá atingir apenas US$ 2 bilhões por ano – apenas 1% do financiamento total necessário para cumprir as metas de 2030.

O que é evidente, porém, é que os US$ 200 bilhões anuais prometidos no Marco Global de Biodiversidade precisam aumentar rápido – e de forma eficiente. Com os governos buscando a ajuda do setor privado, alguns já estão apoiando esses mercados para cumprir seus compromissos.

O Reino Unido e a França anunciaram uma iniciativa conjunta para lançar um roteiro de créditos de biodiversidade a fim de apoiar as contribuições das empresas para a natureza. Como parte da Lei Ambiental de 2021, o governo do Reino Unido também está desenvolvendo um arranjo legal de créditos de biodiversidade. Será um último recurso para que incorporadores do setor imobiliário atendam ao ganho de biodiversidade de 10% exigido pelo país em todos os projetos do setor. Em 2023, o governo australiano também apresentou um projeto de lei chamado Commonwealth Nature Repair Market Bill, que fornece uma estrutura para a criação de certificados de biodiversidade negociáveis. Os certificados podem ser emitidos para proprietários de terras e vendidos a empresas, indivíduos e governos.

Diversas coalizões também têm desenvolvido orientações e estruturas de governança para construir mercados de créditos de biodiversidade de alta integridade, incluindo o Fórum Econômico Mundial, a Força-Tarefa sobre Mercados da Natureza e a Aliança de Créditos de Biodiversidade. Essas coalizões reúnem cientistas, pesquisadores, profissionais envolvidos com atividades de conservação, especialistas em políticas e mercados, bem como membros de comunidades indígenas e locais. Essa diversidade de atores envolvidos tem o objetivo de garantir que mecanismos adequados e bem embasados de consentimento prévio e de compartilhamento de benefícios sejam incluídos nos mercados de créditos de biodiversidade.

Embora ainda não haja clareza a respeito de quais são as melhores ferramentas, a necessidade de mais financiamento é evidente

O debate sobre o uso ou não dos créditos de biodiversidade, quão eficazes são e qual tamanho terão tende a continuar. No entanto, a necessidade urgente de aumentar o financiamento para a natureza e a biodiversidade é um ponto sobre o qual todos já podemos concordar. À medida que governos, empresas e outros atores trabalham para esse fim, a atenção aos mercados de créditos de biodiversidade e suas alternativas é necessária e bem-vinda. Isso pode incentivar os esforços em prol das metas globais de biodiversidade e garantir que o financiamento seja direcionado aos instrumentos mais capazes de alcançá-las.


Este artigo foi publicado originalmente no Insights.