Responsável por estruturar a área de Segurança Viária no WRI Brasil, Marta Obelheiro faz parte da equipe do WRI desde 2010. Hoje, ela coordena projetos que buscam salvar vidas nas cidades brasileiras. 

Para saber mais sobre a sua experiência com o tema, conversamos com ela sobre o planejamento urbano voltado à proteção das pessoas, sobre a responsabilidade dos gestores urbanos, entre outros tópicos trabalhados por Marta no seu dia a dia. 

 

Formada em Engenharia Civil, como você começou a trabalhar com foco em projetos de segurança viária?

Marta Obelheiro - Eu sempre tive interesse na área de transportes e de mobilidade urbana. A Segurança Viária surgiu como uma oportunidade em decorrência da declaração da Década de Ação pela Segurança Viária da ONU, que foi declarada de 2011 a 2020. Isso criou oportunidades, vários projetos começaram a surgir e foi então que comecei a trabalhar com esse tema e estruturar a área dentro do WRI Brasil.

 

A sua tese de doutorado trata da relação entre a acidentabilidade e a forma urbana. Você pode falar um pouco sobre ela?

Existem uma série de estudos que mostram como a forma urbana e o ambiente construído afetam e estão relacionados com a segurança. Diversas pesquisas mostram que cidades mais compactas, mais coordenadas, com densidades populacionais mais altas, com uso misto do solo, trazem uma série de características que favorecem a segurança viária. O que acontece é que grande parte desses estudos foram feitos em cidades de países desenvolvidos. Minha tese, então, busca ver como essas relações acontecem em uma cidade brasileira.

 

Além da forma urbana e do desenho viário, de quais outras formas o planejamento urbano pode ajudar a diminuir as fatalidades no trânsito?

O planejamento urbano está diretamente relacionado ao lugar onde as pessoas moram, onde elas trabalham, a como os deslocamentos são feitos, e já é comprovado que, quanto mais viagens por modos de transporte privado - automóvel, motocicleta -, mais acidentes e mais mortes no trânsito acontecem. A forma como a cidade é pensada tem um papel fundamental não só na qualidade de vida das pessoas, mas também na segurança, nos deslocamentos que acontecem diariamente.

 

Na sua opinião, qual o real significado de "acidente de trânsito"? Estamos considerando “acidente” fatos que poderiam ser evitados?

Os acidentes de trânsito, sim, são eventos evitáveis. No Brasil, ainda usamos a palavra "acidente" porque falta uma outra palavra que descreva esse evento, mas em outros países esse termo já não é mais usado. Os acidentes têm fatores de risco conhecidos. Se sabe quais são os elementos que contribuem com os acidentes e também como evitar que eles ocorram em qualquer cidade. É fácil identificar quais são as vias mais perigosas, as esquinas mais perigosas, onde os acidentes estão acontecendo e o que fazer para que deixem de acontecer.

Um dos principais problemas e fatores de risco para a ocorrência e também para a gravidade dos acidentes são as altas velocidades. Isso é um fator de risco amplamente conhecido e que é muito fácil de ser solucionado.

O brasileiro ainda tem o sonho de viver em uma cidade com altas velocidades e com o seu veículo privado. Só que esse sonho já deu errado. Não tem mais como se tornar realidade. Nenhuma cidade consegue manter uma escala humana se ela funcionar em altas velocidades, se todos os deslocamentos de todos os dias e de todas as pessoas forem por automóvel. Tem uma outra forma de mobilidade possível e que não inclui altas velocidades e que, ainda assim, permite que as pessoas se movam e que as cidades sejam lugares prósperos e bons de se viver. Mesmo sem as altas velocidades.

 

Como você vê os líderes urbanos brasileiros tratando da questão da segurança viária e como o WRI Brasil contribui para trazer essas questões para a agenda das prefeituras?

Nos últimos anos, temos percebido um aumento do comprometimento do poder público com as questões de segurança viária e com a redução de mortes no trânsito, mas esse interesse e esse comprometimento ainda estão muito aquém do que é necessário para a mudança que precisa acontecer.

A grande maioria das cidades brasileiras foi pensada para o carro, para lhe dar muito espaço e muito conforto. Os pedestres e ciclistas ficam com o espaço que sobra das nossas vias. Hoje, qualquer ação de segurança só acontece se não for prejudicar o deslocamento por automóvel porque essa resistência ainda é muito grande. Uma faixa de pedestre só é colocada onde atrapalha menos os veículos, o pedestre só vai ter mais tempo no semáforo se isso representar um atraso muito pequeno para os veículos. É essa mentalidade que precisa ser mudada.

Esse é o papel do WRI Brasil, mostrar que outra forma de mobilidade é possível, trazer as boas práticas e salientar que esse problema das mortes no trânsito só vai ser resolvido para muito além dos esforços tradicionais de educação e de fiscalização.

O poder público tem um papel fundamental. Isso exige uma mudança de comportamento, de paradigma, de parar de culpar o usuário, o motorista e o pedestre porque atravessou fora da faixa ou porque estava distraído. O poder público precisa assumir para si essa responsabilidade adotando metas claras, planos de ação eficientes e que tragam para o gestor daquele espaço urbano a responsabilidade de oferecer um sistema de transporte seguro. Isso é o que aconteceu em diversos países com abordagens de políticas de sistemas seguros e políticas de Visão Zero, e é isso que faz com que as mortes no trânsito caiam drasticamente.

 

Como é o dia a dia de trabalhar com segurança viária nesse contexto em que ainda vivemos no Brasil?

Trabalhar com segurança viária é um desafio, já que a cultura de que o poder público pode tomar uma série de ações para reduzir os acidentes ainda não existe como deveria. Por outro lado, é também muito gratificante porque o trabalho que temos feito nas cidades brasileiras tem dado frutos e vemos projetos sendo implementados, ruas sendo melhoradas, com mais espaço para o pedestre, mais espaço para os ciclistas. São medidas com o resultado comprovado para a redução de acidentes.

Quando pensamos que um ou dois acidentes podem ter deixado de acontecer em decorrência do nosso trabalho, isso faz todo o esforço valer a pena. É um acidente que deixou de acontecer, é uma morte que deixou de acontecer, isso tem um impacto direto na vida das pessoas, na qualidade de vida das famílias e isso é muito gratificante para o nosso trabalho.