O que são as “perdas e danos” das mudanças climáticas?
O planeta já está 1,1°C mais quente devido a alterações climáticas induzidas pelos humanos, e milhões de pessoas já enfrentam consequências reais do aumento das temperaturas, da elevação do nível dos oceanos, de tempestades mais severas e de chuvas que escapam às previsões meteorológicas.
Uma redução rápida das emissões é essencial para conter o aumento da temperatura e garantir um futuro mais seguro para todos. Também são essenciais investimentos capazes de proteger as comunidades dos impactos cada vez mais severos que continuarão piorando com o tempo.
No entanto, esforços coletivos para restringir as emissões de gases do efeito estufa e promover adaptação atualmente não são suficientes para combater a velocidade e a escala em que os impactos aumentam, o que significa que algumas perdas e danos em decorrência das mudanças no clima são inevitáveis. Como os países vão enfrentar essas perdas e danos tem sido uma questão fundamental nas negociações climáticas da ONU e em outros fóruns.
Entenda o conceito de Perdas e Danos e como o mundo pode enfrentar a questão.
1) O que é Perdas e Danos?
“Perdas e danos” é um termo usado nas negociações climáticas da ONU para se referir às consequências das mudanças climáticas que vão além daquilo a que as pessoas podem se adaptar. Por exemplo, a perda de zonas costeiras devido à subida do nível do mar ou a perda de casas e vidas durante enchentes extremas. Também são incluídas situações em que existem opções, mas a comunidade em questão não conta com os recursos necessários para colocá-las em prática.
Até o momento, não existe uma definição de perdas e danos no âmbito das Nações Unidas.
Desde a formação da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre a Mudança do Clima (UNFCCC, na sigla em inglês) no início dos anos 1990, os países vulneráveis solicitam aos desenvolvidos que ofereçam assistência financeira para ajudá-los com as perdas e danos, mas suas propostas têm sido rejeitadas.
As perdas e os danos já prejudicam e continuarão prejudicando principalmente as comunidades vulneráveis, o que significa que abordar a questão é uma questão urgente de justiça climática. Mas o assunto tem sido historicamente repleto de controvérsias, tanto dentro como fora das negociações climáticas da ONU. Uma das grandes discussões entre os países é para para chegar a um acordo sobre quanto dinheiro as nações desenvolvidas devem fornecer em resposta às perdas e danos nos países em desenvolvimento - os que menos contribuíram para a crise climática, mas que são muitas vezes os mais severamente atingidos pelos seus impactos.
Quais são os exemplos de perdas e danos?
Perdas e danos podem ocorrer a partir tanto de eventos extremos como ciclones, secas e ondas de calor quanto de mudanças de evolução gradativa – como o aumento do nível do mar, processos de desertificação, diminuição das geleiras, degradação da terra e acidificação e salinização dos oceanos. Em alguns casos, os danos podem alterar a paisagem de forma permanente; é o caso, por exemplo, do avanço do mar sobre pequenas ilhas ou as secas consumindo os recursos de água doce e transformando terras agrícolas antes produtivas em poeira.
Os danos podem ser divididos em perdas econômicas e não econômicas, embora as duas categorias possam se sobrepor.
Perdas e danos econômicos são aqueles que afetam recursos, bens e serviços comercializados. Em outras palavras, impactos climáticos que atingem setores como agricultura, silvicultura, pesca e turismo ou que danificam infraestruturas essenciais e propriedades, além de prejudicar as cadeias de abastecimento. Isso pode ocorrer em uma escala internacional ou nacional, bem como a nível local, com impactos sobre comunidades ou agricultores individualmente.
Por exemplo, na zona costeira de Bangladesh, a salicultura é uma importante geradora de empregos. No entanto, nos últimos anos, ciclones frequentes, oscilações nas marés e chuvas fortes prejudicaram a produção, acabando com a autossuficiência do país e forçando-o a importar sal para suprir o déficit no mercado.
Perdas não econômicas podem ser as mais devastadoras – como o preço incalculável de perder familiares, o desaparecimento de culturas e modos de vida ou ser obrigado a deixar terras e lares ancestrais.
Considere a situação das comunidades de Kosrae, na Micronésia, por exemplo, que perderam seus cemitérios devido à erosão costeira causada pela elevação do nível do mar. Ou a perda de gelo marinho no Ártico, que afetou a identidade cultural e as práticas de caça entre as comunidades Inuit. E a temporada de furacões do Caribe em 2017, que resultou na realocação de populações insulares inteiras devido à destruição completa de diversas comunidades.
Embora mais difíceis de quantificar e monetizar, as perdas não econômicas têm efeitos graves sobre o bem-estar das comunidades afetadas.
Qual a diferença entre mitigação, adaptação e cobrir perdas e danos?
No âmbito do Acordo de Paris, os países reconheceram a importância de "reverter, minimizar e endereçar" perdas e danos. As perdas e danos podem ser “revertidas” e “minimizadas” com a redução das emissões de gases de efeito estufa (mitigação) e a implementação de medidas preventivas para proteger as comunidades das consequências das mudanças no clima (adaptação). Medidas de adaptação incluem proteger as comunidades costeiras do aumento do nível do mar oferecendo ajuda para que se mudem para áreas mais altas, preparar-se para eventos extremos investindo em sistemas de alerta, proteger os suprimentos alimentares, mudar para o cultivo de culturas mais resistentes às secas, entre outras várias ações.
"Endereçar" perdas e danos é o terceiro pilar crucial para a ação climática: oferecer suporte às pessoas e comunidades depois que elas sofreram impactos relacionados às mudanças climáticas.
As perdas e danos acontecem quando os esforços de mitigação não são ambiciosos o suficiente e quando os esforços de adaptação não são bem-sucedidos ou são inviáveis, às vezes devido aos recursos limitados de que dispõem as comunidades.
Perdas e os danos estão ligados à adaptação e à mitigação porque acontecem quando os esforços para reduzir as emissões não são suficientemente ambiciosos e quando os esforços de adaptação não são bem sucedidos ou são impossíveis de implementar. A segunda parte do 6º Relatório de Avaliação do IPCC, publicado em fevereiro de 2022, reconhece que, à medida que a magnitude das mudanças climáticas aumenta, aumenta também a probabilidade de exceder os limites de adaptação. O relatório diferencia esses limites entre “suaves” (soft) – quando existem opções de adaptação, mas não acessíveis – e “difíceis” (hard) – casos em que “não há perspectivas razoáveis de que riscos intoleráveis sejam evitados”. Esses limites têm impactos ainda mais acentuados nas comunidades vulneráveis que não dispõem dos recursos necessários para implementar medidas de adaptação.
Recifes de corais são um bom exemplo de onde a adaptação tende a atingir seus limites. O IPCC mostrou que até 90% dos recifes de corais tropicais morrerão até a metade do século, mesmo que o aumento da temperatura fique dentro do limite de 1,5°C (e serão quase totalmente perdidos no cenário de um aumento de 2°C). Uma mudança como essa vai levar a perdas irreversíveis de biodiversidade e afetará de forma significativa as comunidades que vendem e se alimentam dos peixes que vivem nestes recifes.
Embora sejam necessárias pesquisas mais aprofundadas para entender os limites da adaptação climática, está claro que as perdas e danos já estão acontecendo e que muitas comunidades não dispõem de recursos para lidar com elas. Planos e políticas climáticas devem considerar as perdas e danos, além de mitigação e adaptação.
Quando o tema de perdas e danos aparece nas negociações da ONU?
A questão das perdas e danos tem sido viva – e controversa – nas negociações climáticas da ONU há mais de três décadas.
Em 1991, quando a Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre a Mudança do Clima (UNFCCC) estava sendo desenhada, Vanuatu (em nome da Aliança dos Pequenos Estados Insulares) propôs a criação de um seguro para fornecer recursos financeiros aos países impactados pela elevação do nível do mar. Segundo a proposta, cada país contribuiria para um fundo conforme sua participação relativa nas emissões e na economia global. A proposta, porém, foi rejeitada, e a questão das perdas e danos não foi mencionada quando o texto da Convenção-Quadro foi adotado em 1992.
As perdas e danos figuraram pela primeira vez em um acordo resultante das negociações climáticas da ONU em 2007, como parte do Plano de Ação de Bali. E só em 2013 o tópico ganhou força nas negociações, quando as partes formaram o Mecanismo Internacional de Varsóvia sobre Perdas e Danos com o objetivo evitar, minimizar e enfrentar o problema. O mecanismo visava compartilhar conhecimento, fortalecer os diálogos entre as partes interessadas e mobilizar especialistas para reforçar a ação e o apoio para lidar com perdas e danos. Mas nem o mecanismo de Varsóvia nem outros estabelecidos fornecem financiamento para ajudar os países administrarem as perdas e danos.
Em 2015, as nações em desenvolvimento pressionaram com sucesso para incluir um artigo sobre perdas e danos (Artigo 8) no Acordo de Paris. No entanto, o financiamento relacionado a perdas e danos foi ignorado. Na verdade, os países desenvolvidos fizeram um esforço para garantir um texto em documento que acompanha a decisão da COP afirmando explicitamente que perdas e danos “não envolvem nem fornecem base para qualquer responsabilidade ou compensação”.
Embora as nações em desenvolvimento tenham sido bem-sucedidas na luta para incluir no Acordo de Paris a meta para limitar o aquecimento global a 1,5°C, não tiveram o mesmo sucesso em relação às perdas e danos. A questão foi incluída na versão final do acordo, mas os países desenvolvidos se asseguraram de que o texto declarasse de forma explícita que perdas e danos “não envolvem nem fornecem uma base para qualquer responsabilização ou compensação”. Essa é uma posição que os Estados Unidos e alguns outros países desenvolvidos continuam mantendo.
Na COP26, uma ampla coalizão de países vulneráveis ao clima defendeu a criação de um novo fundo ou mecanismo de financiamento dedicado a perdas e danos. Só que os países desenvolvidos, mais uma vez, rejeitaram a proposta. Em vez disso, os países estabeleceram os Diálogos de Glasgow, com duração de dois anos, para discutir possíveis arranjos para o financiamento de perdas e danos. As nações também concordaram em operacionalizar e financiar a Rede de Santiago sobre Perdas e Danos (SNLD, na sigla em inglês), criada com o objetivo de fornecer assistência técnica aos países em desenvolvimento para lidar com as perdas e danos. Alguns estados-membros da União Europeia doaram mais de US$32 milhões para essa rede.
As perdas de danos estarão mais uma vez no centro das discussões na COP27. O mundo ficará atento se os países desenvolvidos aproveitarão essa oportunidade para demonstrar solidariedade às nações vulneráveis, finalmente concordando em estabelecer um mecanismo de financiamento de alta qualidade para perdas e danos.
Na COP27, os países concordaram pela primeira vez em colocar acordos de financiamento para perdas e danos na agenda formal. Isso culminou numa decisão histórica de estabelecer um “fundo para perdas e danos”, que os governos pretendiam operacionalizar no ano seguinte. Os países também resolveram questões-chave em torno das estruturas de governança da SNLD, abrindo caminho para a sua plena operacionalização em 2023.
No primeiro dia da COP28, após meses de negociações intensas e controversas, os países deram início ao Fundo de Perdas e Danos e chegaram a um acordo sobre questões fundamentais, como colocar o fundo na estrutura do Banco Mundial. Nas duas semanas seguintes, alguns países aportaram quase US$ 700 milhões para dar início ao fundo. A Rede de Santiago sobre Perdas e Danos também foi operacionalizada, com o Gabinete das Nações Unidas para a Redução do Risco de Desastres e o Gabinete das Nações Unidas para Serviços de Projetos como anfitriões e os Estados Unidos prometendo um montante adicional de R$ 2,5 milhões.
Este foi um momento marcante para as negociações sobre perdas e danos – mas o trabalho está longe de ser concluído.
No caminho até a COP29, em novembro de 2024, os países vão buscar a confirmação de que o Banco Mundial pode cumprir as condições exigidas para receber o fundo de perdas e danos. Entre essas condições estão a capacidade de instituir proteções para garantir a independência e integridade do conselho e do secretariado do fundo; permitir aos países acesso direto aos recursos do fundo; e garantir o acesso universal a todas as partes do Acordo de Paris, mesmo que não sejam membros do Banco Mundial. Os países também estarão atentos ao Conselho do Fundo para encontrar disposições institucionais que garantam que o fundo possa fornecer recursos à velocidade e escala necessárias.
Além disso, as nações desenvolvidas devem disponibilizar muito mais financiamento para preencher o fundo de perdas e danos. Embora os US$ 700 milhões prometidos na COP28 sejam um começo, os países vulneráveis poderão enfrentar prejuízos de até US$580 bilhões em danos relacionados com o clima até 2030.
Perdas e danos são uma questão de responsabilização e compensação?
Uma das razões pelas quais o assunto têm gerado controvérsias é a preocupação das nações desenvolvidas de que a compensação por perdas e danos devido a impactos climáticos adversos seja interpretada como uma admissão de responsabilidade legal, desencadeando litígios e pedidos de indenização em grande escala. Assim, os países desenvolvidos lutaram para que a linguagem utilizada no Acordo de Paris evitasse que fossem legalmente obrigados a esse tipo de compensação.
Esta preocupação foi abordada nas discussões sobre financiamento de perdas e danos na COP27 e na decisão final da COP28, que afirma que “os arranjos de financiamento, incluindo um fundo para responder a perdas e danos, são baseados na cooperação e facilitação e não envolvem responsabilidade ou compensação”. Isso proporcionou a segurança que os países desenvolvidos procuravam para continuar as negociações e pôr em funcionamento o fundo para perdas e danos.
Quais são as possíveis fontes de recursos para cobrir perdas e danos?
Alguns países desenvolvidos apontam fundos de ajuda humanitária, gestão de riscos e seguros como fontes de financiamento para perdas e danos. Outras fontes mais inovadoras também foram propostas, como impostos sobre viagens aéreas e marítimas, impostos sobre transações financeiras, impostos sobre lucros extraordinários de empresas de combustíveis fósseis e outras fontes não públicas. Mas elas não podem funcionar separadamente. Para abordar a escala e o tamanho do problema, todos as fontes precisam fazer parte de um “mosaico de soluções”.
Por exemplo, após as inundações devastadoras no Paquistão, em 2022, o país precisava de assistência humanitária a curto prazo, bem como de apoio a longo prazo para a reconstrução. Ao mesmo tempo, Palau está preocupado com a migração de atum para fora das suas áreas de pesca à medida que o oceano aquece. Sem a capacidade de pescar atum, algumas nações insulares do Pacífico poderiam perder rendimentos equivalentes a 37% das receitas governamentais. Embora a ajuda humanitária não esteja preparada nem é obrigada a resolver esse problema, outras formas de financiamento poderiam.
Esses exemplos reforçam a necessidade de mecanismos de financiamento mais amplos, como o fundo dedicado para perdas e danos, que possa coordenar e alinhar vários tipos de financiamento, tanto dentro como fora da UNFCCC. O novo fundo facilitará a coordenação com uma ampla variedade de acordos de financiamento através de bancos multilaterais de desenvolvimento, agências relevantes da ONU, fundos climáticos multilaterais, o Gabinete Internacional de Migração, a Rede de Santiago e outros.
Fora da UNFCCC, ocorreram avanços importantes no financiamento de perdas e danos. Entre eles o Fórum de Vulnerabilidade Climática (CVF, na sigla em inglês) e o fundo de perdas e danos a partir de financiamento coletivo do bloco dos Vinte Vulneráveis (V20), assim como a iniciativa Escudo Global Contra Riscos Climáticos do G7 e V20, que visa melhorar as estruturas financeiras existentes sobre riscos climáticos e financiamento de perdas e danos.
Quais atividades poderiam financiar o apoio para perdas e danos?
Tratar as perdas e danos pode envolver diversas ações, e esse é um processo que deve ser pensado pelas comunidades afetadas. Exemplos incluem seguros associados ao clima para produtores ou uma reserva de fundos para reconstruir infraestruturas essenciais em caso de catástrofes climáticas.
Os esforços também podem envolver assistência humanitária imediata após eventos extremos, reabilitação das vítimas por meio do fornecimento de bens básicos, transferências emergenciais para as pessoas afetadas por meio dos programas de assistência social e a qualificação das instituições de microcrédito para que ofereçam opções de financiamento para a retomada dos meios de subsistência.
O financiamento para perdas e danos também poderia ajudar as pessoas a reconstruírem quando as suas casas são destruídas. Por exemplo, embora os sistemas de alerta precoce em Bangladesh tenham ajudado a reduzir drasticamente as mortes causadas por eventos climáticos extremos, as pessoas deixam os abrigos contra tempestades e descobrem que as suas casas e meios de subsistência foram destruídos e, portanto, sofreram, inquestionavelmente, perdas e danos.
E, quando necessário, os recursos para perdas e danos podem apoiar a migração e realocação das populações que tiverem de ser deslocadas de forma permanente ou ajudá-las no desenvolvimento de novas habilidades caso seus meios de subsistência não sejam mais viáveis.
8) O que precisa acontecer daqui pra frente?
Os impactos climáticos já causam perturbações generalizadas que deverão piorar com o tempo, mesmo com medidas ambiciosas de redução de emissões e adaptação. A necessidade de soluções para perdas e danos — sobretudo o financiamento que irá viabilizá-las — é mais urgente do que nunca.
Com o fundo para perdas e danos agora em funcionamento, a comunidade internacional terá de trabalhar para finalizar os detalhes dos novos acordos de financiamento e mobilizar financiamento em grande escala. Os países em desenvolvimento e as comunidades que estão na linha da frente dos impactos climáticos contam com eles.
Este artigo foi publicado originalmente no Insights em abril de 2022. O texto foi atualizado pela última vez em fevereiro de 2024 com informações mais recentes e desdobramentos da COP28.