Uma epidemia silenciosa que mata cerca de 51 mil brasileiros todos os anos e para a qual a vacina são políticas públicas bem desenvolvidas e implementadas. A poluição do ar não pode continuar como um problema silencioso, com uma política nacional que não tem metas de redução das emissões de poluentes, não é implementada, além de ter fragilidades jurídicas. Hoje, o Brasil não monitora o ar de maneira aceitável, os padrões de base são mais permissíveis do que os recomendados pelo Organização Mundial da Saúde e não há penalidades caso sejam descumpridos. Para piorar, estudo feito nos Estados Unidos indica que a taxa de mortalidade por Covid-19 pode aumentar em até 15% em cidades onde as pessoas estão expostas por muitos anos a altas concentrações de poluentes.

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A ciência traz evidências para que o assunto seja tratado com a devida seriedade, além de possíveis caminhos para solucionar a questão. Um grupo de 14 especialistas realizou a sistematização mais abrangente de estudos sobre qualidade do ar no país, reunindo as melhores evidências disponíveis. O estudo O Estado da Qualidade do Ar no Brasil, coordenado pelo WRI Brasil, mostra o quanto esse tema negligenciado torna os brasileiros vulneráveis.

Além disso, revela como os impactos da poluição vão muito além da questão ambiental e de saúde, afetando também a economia, a agricultura, a mudança do clima, entre outros. Embora o ar seja aparentemente o mesmo para todos, assim como no caso da Covid-19, os efeitos são desiguais: em geral, a exposição de crianças, idosos e dos mais pobres à poluição é maior.

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Ameaça à saúde em meio a uma crise de saúde

Vivemos uma crise de saúde sem precedentes na história recente e, para agravar o quadro, a Covid-19 tem uma correlação importante com a exposição à poluição do ar. Antes da pandemia, a qualidade do ar já era o maior risco ambiental à saúde humana no planeta. Caso a vacinação seja executada em larga escala com sucesso, tudo indica que a poluição do ar voltará à liderança deste ranking ameaçador.

Os impactos da poluição do ar na saúde estão conectados com a incidência de mortes prematuras, doenças pulmonares, cardiovasculares, acidentes vasculares cerebrais, disposição ao câncer e ao diabetes, além de prejuízo do desenvolvimento cognitivo em crianças e demência em idosos.

Em apenas seis regiões metropolitanas brasileiras, onde vive 23% da população do país, se os padrões de poluição continuarem os mesmos de 2016, ocorrerão cerca de 128 mil mortes precoces entre 2018 e 2025, que representarão um custo de R$ 51,5 bilhões em perda de produtividade, segundo estudo do Instituto Saúde e Sustentabilidade. Haverá ainda 69 mil internações públicas a um custo de R$ 126,9 milhões para o Sistema Único de Saúde (SUS). A estimativa foi feita antes dos efeitos da pandemia de Covid-19, que pode inclusive agravar esse quadro.

Inimigo silencioso e ainda ignorado

Embora os impactos da poluição do ar na saúde estejam bem descritos e sejam preocupantes, o Brasil enfrenta um inimigo que em grande parte desconhece. A estimativa é de que a poluição mate cerca de 51 mil brasileiros anualmente, mas apenas 1,7% dos municípios do país apresentam cobertura de monitoramento da qualidade do ar, a maioria deles na região Sudeste. Na prática, isso significa que a maior parte do país não tem informações sobre as condições do ar respirado pelos cidadãos. Sem essa informação, enfrenta-se um inimigo desconhecido.

Os padrões de qualidade do ar estabelecidos pelo Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama) não são atendidos na maioria das grandes cidades brasileiras, e não há penalidades claras para o não cumprimento dos mesmos. Uma importante fragilidade é a ausência de dados que permitam uma análise mais profunda do nível de implementação das políticas, assim como dos impactos alcançados por elas. Outra fragilidade é o arcabouço jurídico existente, que na prática não configura uma política de qualidade do ar robusta e abrangente, com brechas jurídicas e incertezas que afetam sua eficácia, como veremos a seguir.


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Política nacional frágil

O Brasil possui uma série de leis e normas que estabelecem a gestão da qualidade do ar e o controle da poluição, mas grande parte da base normativa que dá sustentação ao Programa Nacional de Controle de Qualidade do Ar (Pronar) é infralegal, pois consta apenas em resoluções do Conama. Isso significa que novas resoluções podem gerar retrocessos, como a discussão em andamento para adiar fases do Programa de Controle de Emissões Veiculares (Proconve).

De acordo com o estudo, a realidade da implementação dos instrumentos do Pronar mostra falhas importantes de efetividade. Entre elas, dificuldades de atualização periódica dos padrões nacionais de qualidade do ar, as carências financeiras e de recursos humanos para a sustentação de uma rede nacional de monitoramento e a ausência de um abrangente inventário nacional de emissões.

Parte das fragilidades da política nacional está na distribuição das competências em relação à gestão da qualidade do ar. A competência legislativa é concorrente entre a União e os Estados, ou seja, à União cabe estabelecer o regramento geral básico, podendo os Estados definir regras próprias, desde que mais protetivas. O programa não oferece recursos nem incentivos claros para os Estados. Aos municípios, cabe o estabelecimento de normas de interesse eminentemente local, mas sem responsabilização explícita no Pronar, embora sejam as cidades as responsáveis por políticas relevantes que afetam a qualidade do ar. Em resumo, o arcabouço jurídico existente tem brechas e incertezas que afetam a eficácia das políticas.

Os impactos vão muito além das cidades

O estudo ajuda a mostrar que os impactos da poluição vão além dos centros urbanos. Na região amazônica, por exemplo, os níveis de poluentes gerados pelas queimadas chegam a atingir valores de material particulado (MP 10) de 500 microgramas por metro cúbico, o que representa cerca de 25 vezes mais poluição do que a média histórica da região (20 microgramas por metro cúbico).

De acordo com levantamento do Human Rights Watch, de julho a outubro de 2019 foram mais de 2 mil internações por doenças respiratórias diretamente relacionadas às queimadas, sendo que os mais afetados foram bebês e pessoas com mais de 60 anos, respondendo por 21% e 49% do total de internações, respectivamente. Dados da Secretaria Municipal de Meio Ambiente de Rio Branco, no Acre, mostram que apenas três dos 22 municípios do Acre não registraram piora na qualidade do ar no comparativo entre 2020 e 2019. Até setembro de 2020, pelo menos 12 cidades permaneceram por mais de 30 dias com concentrações de material particulado (MP 2.5) – substância ultrafina que afeta profundamente o sistema respiratório – acima do recomendado pela Organização Mundial de Saúde (OMS), que é de 25 ug/m3.

<p>Imagem de porto velho coberta de fumaça</p>

Porto Velho, em Rondônia, é uma das cidades que sofre com a poluição resultante de queimadas. Na imagem, vista do Rio Madeira (foto: Ésio Mendes/Secom/RO)

Esse material particulado também se movimenta seguindo as correntes de ar que atuam na Amazônia, as mesmas que levam a umidade da região para o Centro-Oeste, Sul e Sudeste, conhecidas como rios voadores. Sendo assim, a fumaça das queimadas não somente polui a zona rural e as principais cidades da Amazônia, como também afeta o clima e a qualidade do ar em cidades de outras regiões do país.

Os efeitos podem chegar também na agricultura. Estimativas mostram que uma concentração de ozônio entre 65 e 100 partes por bilhão pode gerar perdas entre 15% e 62% na produtividade da soja, respectivamente.

Nas cidades a qualidade do ar se torna mais visível

Os efeitos da poluição do ar vão além dos grandes centros urbanos, mas é neles que ficam mais evidentes. Também nas cidades, enfrentar o desafio de melhorar a qualidade do ar pode impulsionar o combate às mudanças climáticas e melhorar a qualidade de vida das pessoas.

Pesquisas de opinião mostram que o brasileiro está disposto a mudar: 67% das pessoas trocariam seus carros ou motos por alternativas de transporte mais limpas. Essa transformação, no entanto, passa não apenas pelo avanço de opções de mobilidade limpas, como a eletrificação do transporte coletivo, por exemplo, como também pelo incentivo a modos ativos, como bicicleta e caminhada. Uma ferramenta lançada pelo WRI Brasil ajuda a estimar os ganhos econômicos e de saúde da substituição de ônibus a diesel por elétricos.

<p>Imagem de ciclovia em Paris</p>

Paris está direcionando atenção aos modos ativos de transporte, com muitas novas ciclovias que permitem deslocamentos seguros durante a pandemia (foto: Jerome Labouyrie/Shutterstock)

Diversas cidades, especialmente na Europa, estão estabelecendo metas para banir veículos a combustão das ruas, muitas delas até 2030 – apenas 9 anos de transição. Além disso, estão usando o planejamento urbano para devolver as ruas às pessoas, restringindo os espaços nos quais hoje os carros têm prioridade, e incentivando a caminhada e as bicicletas. Paris, por exemplo, está adotando o conceito de cidade de 15 minutos, no qual serviços e oportunidades ficam disponíveis em distâncias que não exigem transporte por veículos. Amsterdam, já reconhecida pelo transporte por bicicletas, pretende se ver livre de emissões veiculares também até 2030 – criando zonas livres de emissão que começam na região central até chegar a zonas mais afastadas. É a busca pelo fim dos canos de escapamento.

Muitos países também têm metas para zerar as emissões de todos os veículos, incluindo os pesados, como caminhões e ônibus. Uma mudança sistêmica que parecia impensável há alguns anos agora tem prazo para acontecer em muitos lugares. Enquanto isso, nossa indústria automotiva tenta adiar fases do Proconve para veículos pesados, que já são menos ambiciosas do que as de muitas nações, inclusive de países em desenvolvimento.

Para reverter o cenário, muitas mudanças precisam ocorrer ao mesmo tempo e exigem uma visão ambiciosa dos gestores públicos. Quanto antes acelerarmos a transição rumo a uma mobilidade urbana sustentável, mais vidas serão salvas.

Mudar faz sentido para a economia

A boa notícia para o país, em especial para os tomadores de decisão, é que combater a poluição do ar faz sentido também do ponto de vista econômico. Estima-se que os custos associados a mortes prematuras em função do ar poluído equivaleram, em 2015, a 3,3% do Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro. O impacto negativo na economia brasileira ocorre em função da queda de produtividade de trabalhadores, das mortes prematuras, das limitações para a aquisição de habilidades cognitivas relevantes para educação causada pela exposição aos poluentes e das perdas na produtividade agrícola.

Estudo da Nova Economia para o Brasil mostrou que os ônibus elétricos, tanto para mobilidade urbana quanto para potencial exportação, representam uma oportunidade para o desenvolvimento de baixo carbono e competitividade no Brasil. A cadeia produtiva de ônibus elétricos, incluindo baterias, estações de recarga, geração de energia renovável e melhorias na infraestrutura de distribuição de energia elétrica, resultaria na geração de empregos diretos e indiretos. A implementação de políticas públicas adequadas poderia atrair investimentos do setor privado, aumentar a produção em escala e reduzir barreiras de alto custo. É, portanto, um exemplo de oportunidade sustentável e de implementação factível que pode gerar um salto de inovação na indústria brasileira. Esse movimento está entre os pilares dos planos de recuperação econômica pós-Covid-19 da China e da Europa, por exemplo.

Caminhos para reverter o cenário

Com base nas evidências levantadas pelo estudo, os pesquisadores apontaram 10 prioridades para o avanço das políticas de melhoria da qualidade do ar no Brasil. São avanços políticos e científicos que devem acontecer de forma simultânea:

  1. Criar uma política nacional sistêmica de qualidade do ar garantida por lei;

  2. Definir um cronograma claro para a execução das próximas fases dos padrões nacionais de qualidade do ar, assim como punições explícitas para o não cumprimento das mesmas;

  3. Criar políticas e incentivos que busquem reduzir as assimetrias regionais na gestão de qualidade do ar no país, como o aprimoramento técnico das equipes dos órgãos estaduais de meio ambiente;

  4. Fortalecer a ciência de dados por trás das políticas de qualidade do ar, principalmente pela ampliação e pelo aperfeiçoamento do sistema de monitoramento atmosférico nacional, priorizando áreas críticas e uso de novas tecnologias;

  5. Alinhar, de forma estratégica, as políticas nacionais de controle de poluentes atmosféricos e de redução de emissões de gases de efeito estufa (GEE);

  6. Fortalecer sinergias e compatibilização entre políticas de qualidade do ar e políticas estruturantes de planejamento urbano, como o plano diretor e os planos de mobilidade urbana;

  7. Promover pesquisas sobre a economia da qualidade do ar e a análise de implementação de políticas públicas, incluindo desafios de governança;

  8. Promover pesquisas sobre a interface entre a qualidade do ar e a desigualdade socioeconômica no Brasil;

  9. Desenvolver políticas regionais e nacionais para gestão de queimadas e prevenção aos riscos à saúde;

  10. Incluir de forma mais equitativa representantes da sociedade civil e do setor de saúde na governança da qualidade do ar, com poderes de decisão e participação plena equivalentes aos representantes do meio ambiente.