Aprimorar cobrança do estacionamento em vias públicas pode promover equidade no transporte
Quando parte das ruas é dedicada ao estacionamento, opta-se por dar uma destinação privada a um dos ativos mais valiosos da cidade. De ciclovias e faixas dedicadas para ônibus a calçadas mais espaçosas, parklets ou mesmo faixas de tráfego veicular misto, o cardápio de usos mais benéficos à coletividade é vasto. Mais do que nunca, é preciso repensar a mobilidade em nome de cidades mais prósperas e inclusivas. E a cobrança do estacionamento rotativo é um bom ponto de partida.
O transporte coletivo, a bicicleta e a caminhada são as opções mais sustentáveis na mobilidade urbana. Porém, enquanto sistemas de ônibus definham em meio à falta de recursos e à queda na demanda, e ciclistas e pedestres dispõem de infraestrutura precária em seus deslocamentos, cidades investem recursos vultosos na manutenção das vias – e ainda reservam parcela significativa para motoristas armazenarem um bem privado.
Trata-se de um investimento na mobilidade às avessas, já que um automóvel permanece até 95% do tempo estacionado. E de um incentivo a um modo de transporte que não pode ser a prioridade em um momento em que cidades buscam, além de eficiência e inclusão, a transição para o desenvolvimento de baixo carbono.
Mais carros nas ruas significam mais emissões, poluição, congestionamentos, sinistros e mortes no trânsito. Em São Paulo, por exemplo, os carros ocupam 88% das vias públicas e transportam somente 30% das pessoas. Para transportar um passageiro, um carro emite cerca de 4 vezes mais poluentes locais e 2 vezes mais poluentes de efeito estufa do que um ônibus.
A cobrança pelo estacionamento em vias públicas incentiva a migração para os modos sustentáveis. Como a maioria dos clientes do comércio local usa a mobilidade ativa, trata-se também de uma forma de estimular a economia.
Atualmente, talvez o motivo mais urgente para aprimorar as políticas de estacionamento em áreas públicas no Brasil seja a crise no transporte coletivo. É que, além de permitir a gestão da mobilidade, os valores arrecadados podem ser reinvestidos nos sistemas de ônibus urbanos.
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Bons exemplos no Brasil e no Exterior
Algumas cidades estão redesenhando as suas políticas de estacionamento rotativo para que se tornem, de fato, instrumentos de gestão e apoiem a construção de uma mobilidade mais sustentável e justa para todas as pessoas.
São José dos Campos
São José dos Campos é uma cidade pioneira na implementação de novas tecnologias e uma referência em inovação. Em 2020, a cidade paulista licitou seu estacionamento rotativo com uma sinalização clara de preocupação ambiental e de valorização do transporte coletivo e de qualidade. A outorga inicial de R$ 9,2 milhões da concessão foi revertida para a aquisição de ônibus elétricos e a cidade garantiu o repasse mensal de 38,5% da receita do estacionamento rotativo para o Fundo Municipal de Transportes.
A Zona Azul Eletrônica conta com mais de 5 mil vagas de estacionamento distribuídas pela cidade e utiliza um sistema moderno de monitoramento. A ocupação das vagas é monitorada por sensores instalados no pavimento que retornam ao sistema a taxa de ocupação em tempo real.
A informação do número de vagas é disponibilizada em sete painéis espalhados nas principais avenidas da cidade e por um app para smartphone, o que contribui para a eficiência e fluidez do tráfego, já que motoristas passam menos tempo procurando vagas ou parados em fila dupla. A fiscalização é realizada por quatro carros elétricos que capturam a imagens dos veículos estacionados, enviam para o sistema de retaguarda e permitem a autuação de veículos infratores sem necessidade de fiscais nas ruas. Recentemente, a cidade também reformulou os contratos de concessão do transporte coletivo.
São Francisco, Estados Unidos
A cidade de São Francisco implementou em 2011 o programa SFpark com um grande diferencial: a tarifa dinâmica, regulada pela demanda da hora e do local. Viabilizada por sensores que monitoram a disponibilidade de vagas, a tarifa é reajustada periodicamente com base nas taxas de ocupação. No geral, os preços são menores no período da manhã, mais caros entre 12h e 15h e menores após esse horário.
A agência de transporte da cidade tem como meta estipular preços que levem a uma ocupação de 60% a 80% das vagas por quarteirão, de forma que não haja escassez nem excesso de oferta. Quando a taxa de ocupação se enquadra nessa faixa, o preço não é alterado. As receitas de estacionamento são geridas pela agência de transporte e uma parte significativa é destinada à operação do transporte coletivo na cidade.
Após ser testado em 7 mil das 28,8 mil vagas da cidade, o programa foi expandindo em 2018 para a totalidade das vagas. Os impactos são muito positivos. Nas áreas onde vigora o SFpark, houve uma redução de 8% do tráfego e de 30% nas emissões de gases de efeito estufa. A arrecadação anual é da ordem de US$ 1,9 milhão.
Lisboa, Portugal
Lisboa conta com mais de 90 mil vagas de estacionamento pagas, geridas pela Empresa Municipal de Mobilidade e Estacionamento de Lisboa (EMEL). A tarifa horária do estacionamento varia de acordo com o local, contemplando cinco zonas tarifárias: verde, amarela, vermelha, castanha e preta – da mais barata para a mais cara. A diferenciação busca adequar a oferta à demanda e atender as diferentes realidades socioeconômicas da cidade.
A zona verde corresponde a locais predominantemente residenciais e permite um maior tempo máximo de permanência – até quatro horas. No outro extremo, estão as zonas castanhas e pretas. Por estarem localizadas em áreas mais centrais e de caráter mais comercial, onde há o maior desequilíbrio entre a procura e a oferta de vagas, estão sujeitas às maiores tarifas – 3€ por hora – e permitem permanência máxima de duas horas. Residentes em áreas de cobrança têm gratuidade para uma vaga, sendo necessário pagar por um passe anual caso possuam mais de um veículo.
O valor arrecadado em 2015 foi de cerca de 21 milhões de euros – antes da criação das zonas castanha e preta, em 2021. A EMEL investe parte do valor arrecadado no estacionamento na gestão da mobilidade integrada em Lisboa e em formas mais saudáveis de deslocamento, como o sistema de bicicletas compartilhadas GIRA.
Estacionar nas ruas brasileiras ainda é muito barato
Para o incentivo ao transporte sustentável ser efetivo, o valor pago para estacionar um carro em via pública não pode ser meramente simbólico. A tarifa de estacionamento tem de contribuir para a competitividade, mas também para a qualificação do transporte coletivo e da mobilidade ativa.
São Francisco e Lisboa são exemplos dessa prática: nos horários de maior demanda (ou nas zonas, no caso de Lisboa), o valor do estacionamento por hora chega a ser algumas vezes o preço de uma passagem de transporte coletivo. Nas capitais brasileiras, à exceção de São Paulo, é mais barato pagar pelo estacionamento rotativo do que pela passagem.
É uma distorção que, se não endereçada, tende a se agravar. Enquanto as tarifas do transporte coletivo são reajustadas anualmente, as tarifas das zonas azuis pouco aumentam com o passar do tempo.
O quanto cobramos pelo estacionamento em comparação com o transporte coletivo também pode ser um indicador de equidade no transporte urbano. O fornecimento gratuito – ou a preços módicos – de armazenamento ilimitado de carros nas vias públicas é concedido às pessoas com renda suficiente para ter carros.
O caminho para uma mobilidade mais justa e sustentável passa pela cobrança do estacionamento em vias públicas. No Brasil, ainda há muito espaço para melhorias – e modos sustentáveis são as escolhas óbvias para receber os recursos gerados por essa gestão aprimorada.