Este post foi publicado originalmente no ((o))eco.

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No dia 19 de outubro, a Comissão de Agricultura e Reforma Agrária do Senado (CRA) acatou a emenda que destina R$ 1,825 bilhão para a realização do novo Censo Agropecuário. Realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a pesquisa investiga os estabelecimentos agropecuários no país com o objetivo de detalhar as atividades econômicas desenvolvidas no campo e as características do produtor, da economia e do emprego no meio rural. O censo deveria ter acontecido no ano passado. Porém, o corte orçamentário de meses atrás inviabilizou a sua realização, prorrogando-o para 2017. No momento em que se diminuem os aportes financeiros em Educação e Saúde, direcionar quase R$ 2 bilhões em dados estatísticos no meio rural pode soar como desperdício. Mas, ao contrário do que parece, o censo vale cada centavo, semente plantada e árvore que podemos recuperar.

De 2006 – ano da última pesquisa – para cá, o Brasil se tornou o terceiro maior produtor agrícola do mundo, atrás somente dos Estados Unidos e da União Europeia. A área de plantio de soja cresceu 10 milhões de hectares, a de cana-de-açúcar quase 4 milhões e o rebanho bovino aumentou em 10 milhões de cabeças, com o valor da produção agropecuária quase que duplicando. Feijão, arroz e mandioca perderam juntos 2 milhões de hectares e nos tornamos importadores de arroz. Desde 2006, desmatamos algo em torno de 24 milhões de hectares de florestas, cerrados e outros biomas e ecossistemas, área equivalente ao Reino Unido. O PIB do Agronegócio cresceu R$ 290 bilhões, um montante financeiro que seria suficiente para financiar 159 vezes o Censo Agropecuário de 2017.

Mas porque realizar o censo se já sabemos disso tudo por outras fontes, incluindo pesquisas anuais realizadas pelo próprio IBGE? Porque só através dele conseguimos enxergar o meio rural para além de sua produção. O censo de 2006 – estamos falando de uma década atrás – revelou, por exemplo, em que trilhas seguíamos para alcançar o crescimento agrícola. Para citar algumas, a desigualdade fundiária em 2006 era 48% superior à enorme desigualdade de renda geral. A quantidade de vegetação nativa alegada como pertencente aos seus ocupantes não caberia no Brasil se descontássemos as Terras Indígenas, Unidades de Conservação e áreas oficialmente declaradas como não destinadas. Um percentual de 91% dos estabelecimentos rurais não contava com Assistência Técnica regular; e 255 mil pessoas se consideravam produtores rurais, mas não tinham área para exercer sua vocação. A produção com agricultura familiar era mais eficiente do que aquela sem esse perfil, sendo responsável por 27% do valor total da produção e mesmo dispondo de 24% da área total. Do total de estabelecimentos, 73% não usavam agrotóxico; e um terço de nossas pastagens era na verdade ecossistemas campestres. O Brasil tinha o equivalente a um território do tamanho do Uruguai em terras degradadas ou abandonadas. Pareceria mentira se não fossem os dados.

"Não saber o que está acontecendo é também uma péssima estratégia ambiental"

Em meio a tantas mudanças que ocorreram no país nessa última década, o que terá acontecido com a estrutura rural, esse pedacinho do Brasil que ocupa 99% de nosso território? Não sabemos. E o pior: talvez não saibamos por ainda mais tempo porque o censo decenal não está garantido, o que é incoerente para um país tão dependente da agricultura e que sistematicamente deteriora seus termos de troca ao exportar cada vez mais água, solo e proteína (que têm valor agregado cada vez menor) para importar relativamente cada vez menos microchips (que têm valor agregado cada vez maior). O irônico é que o país faz isso derrubando árvores centenárias com máquinas de última geração.

Por isso, não saber o que está acontecendo é também uma péssima estratégia ambiental. O Censo Agropecuário, que seria melhor chamado de Censo Rural, tem a preciosa função de nos apresentar as bases agrárias que teremos para implantar tantos compromissos assumidos, mesmo aqueles considerados modestos, como a própria NDC brasileira. O Brasil tem, por exemplo, quatro vezes mais pastagens degradadas do que o compromisso brasileiro sugere restaurar. Os mapeamentos por satélite e modelos complexos de priorização espacial além de fascinantes são capazes de indicar, por exemplo, as áreas estratégicas para restauração dos 12 milhões de hectares prometidos pela nossa NDC, bem como diagnosticar os outros 15 milhões de hectares degradados a serem recuperados. Mas ainda está por ser inventado um satélite que bata à porta do produtor rural para saber se ele conta com assistência e orientação técnicas, sem as quais não se quebra a inércia cultural que emperra a intensificação das pastagens no Brasil. Além disso, sem aumento da produtividade, diminuem as chances de muitas florestas continuarem em pé.

Ignorar a origem das receitas e destinos dos custos de produção impossibilita estimar o lucro, e daí o custo de oportunidade de se reservar áreas a serem restauradas com vegetação nativa. Sem saber a quantidade de pessoal ocupado nas atividades rurais, não dá para avaliar a capacidade de mão-de-obra disponível no campo para plantar as mudas e sementes das florestas vindouras. Desconhecer a composição dos investimentos realizados com capital próprio e de terceiros dificulta a proposição de taxas de juros especiais para créditos destinados à adequação das propriedades ao Código Florestal Brasileiro (Lei nº 12.651/2012). Dessaber o quanto de vegetação nativa é declarada como APP e Reserva Legal impede entender como anda a disposição do produtor para assumir seu compromisso com o Código Florestal Brasileiro, e inviabiliza comparações com o Cadastro Ambiental Rural (CAR).

Enfim, sem um levantamento abrangente do que se passa no chão fica difícil dar escala a qualquer coisa. E é por isso que o Censo Agropecuário é muito mais do que agrícola e agrário. Ele é rural, e nos dará a posição de onde estamos e onde podemos chegar com as políticas ambientais e compromissos assumidos pelo Brasil.